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PROCESSO PENAL
Inafiançabilidade constitucional e liberdade provisória: pluralidade normativa e unidade de sentido
Eugenio Pacelli
10/01/2018
O pequenino texto que se segue ocupar-se-á do conteúdo da decisão proferida pela Suprema Corte no julgamento da ADI 3.112/DF, na qual se reconheceu e se afirmou a inconstitucionalidade dos parágrafos únicos dos artigos 14 e 15 e do artigo 21 da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, também conhecida como o Estatuto do Desarmamento.
A aludida decisão, quanto ao que decidido, não merece reparos, se esclarecido o sentido quanto à inconstitucionalidade dos arts. 14 e 15.
Mas algumas questões levantadas durante a votação podem precipitar conclusões não alinhadas com a essência da decisão e menos ainda com o próprio texto constitucional, relativamente à inafiançabilidade prevista na Constituição da República para os crimes de racismo (art. 5º, XLII); de tortura, de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, de terrorismo; de crimes hediondos (art. 5º, XLIII); e as ações de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito (art. 5º, XLIV).
A tese que gostaríamos de discutir, em razão de sua insinuação em alguns votos proferidos na decisão da ADI 3.112/DF, Relator o Min. Ricardo Lewandowski, resume-se às seguintes indagações: As normas constitucionais relativas à inafiançabilidade impedem a concessão de liberdade provisória aos acusados ou suspeitos da prática dos crimes ali mencionados? E, também: o constituinte teria retirado do legislador a possibilidade de instituir outras modalidades de liberdade provisória a tais crimes?
A nossa resposta a ambas indagações é em sentido negativo. Seguem as razões.
E que não se iluda o leitor que traga para cá os olhos já posicionados sobre a Lei 12.403/11, que deu nova redação ao art. 283, CPP, no sentido de deixar esclarecido não ser mais possível a
Em primeiro lugar, porque já há Projeto de Emenda Constitucional
E, em segundo, por que, independentemente da citada PEC, as
Por último, como a objeto central de nossas indagações gira em torno das inafiançabilidades previstas na Constituição da República, também a Lei 12.403/11 não seria suficiente para impedir interpretações que buscassem ou busquem legitimar as referidas previsões.
Aliás, cumpre anotar que também a citada legislação (Lei 12.403/11)
Prisão e liberdade antes da ordem constitucional de 1988
Não é desnecessário dizer: o Código de Processo Penal de 1941 não se presta a fundamentar escolhas e interpretações de sistemas processuais compromissados com a realização de direitos fundamentais. E nem teve esse
Eis sua estrutura
Evidentemente, não se pretendia buscar qualquer
E,
Do ponto de vista de uma teoria do conhecimento, o
Como se sabe, na aplicação judiciária do direito há sempre a necessidade de esclarecimento de duas questões: a de
Ora, para além do fato das conhecidas dificuldades inerentes à formação de qualquer juízo de certeza
Esse estado de coisas, no entanto, não durou tanto quanto se esperava de um novo Código. Já em 1973 e depois em 1977, as Leis 5.941/73 e 6.416/77
Com isso, e desde então, os crimes para os quais era exigida a prestação de fiança e mesmo para aqueles para os quais a fiança
Essa regra somente veio a ser limitada no ano de 1990, quando a Lei 8.035/90, determinou a exigência de fiança para a concessão de liberdade provisória exclusivamente nos crimes contra a economia popular e de sonegação fiscal.
Em síntese: a partir dali (já chegaremos às legislações impeditivas de quaisquer formas de liberdade provisória), sempre era possível a concessão de liberdade provisória: a) sem fiança (art. 310, parágrafo único, CPP); b) com fiança, para os crimes de sonegação fiscal e contra a economia popular. Assim, também os crimes contra a fauna, para os quais se dizia serem
Havia e ainda há (vigentes!), contudo, exceções.
A Lei 8.072/90 (crimes hediondos); a Lei 9.034/95 (criminalidade organizada); Lei 9.613/98 (crimes de lavagem de dinheiro), bem como as leis sobre o tráfico de drogas e entorpecentes (Lei 10.409/2002 e Lei 11.343/2006), na contramão da história e não disfarçando o simbolismo da alternativa parlamentar, vedavam a concessão de liberdade provisória,
E a moda pegou. Outras vieram na mesma direção, caso, inclusive, da Lei 10.826/2003, o Estatuto do Desarmamento, precisamente o objeto da ADI 3.112/DF.
A vedação legislativa da liberdade provisória: transcendência e conhecimento
Ao longo da história processual penal, tem sido freqüente o descompasso entre o exercício do poder – ato de autoridade – e a respectiva fundamentação.
E, por incrível que pareça,
Tanto bastaria para que se evitasse, o quanto possível, a antecipação de suas consequências. Afinal, porquê razão
Porque – dizemos nós – nada há, pelo menos como
Com efeito, uma coisa é a confissão
Veja-se que, até aqui, estamos a nos referir ao conhecimento da questão penal, de fato e de direito, apenas para fins de justificação da formação de um juízo de convencimento judicial. Sequer estamos discutindo a possibilidade de estar ou não o juiz autorizado pela ordem constitucional a antecipar esse convencimento e, assim, a determinar a aplicação da lei penal antes do trânsito em julgado.
Chegando ao texto constitucional, as coisas e as palavras se esclarecem.
A começar com a norma do art. 5º, LXVI, que estabelece que
Acaso poderia a Lei não admitir a liberdade provisória?
Sim. Se e desde que fundada em razões cautelares e/ou acautelatórias, justificadas pela tutela de interesses da mesma estatura normativa que o princípio da não-culpabilidade, como ocorre com as prisões em flagrante e a prisão preventiva – prisões cautelares, em suma.
Exatamente por isso, outra norma constitucional:
É dizer: a lei poderá recusar liberdade provisória
III- Inafiançabilidade e o STF:
No julgamento da ADI 3.112/DF, decidiu-se pela inconstitucionalidade da inafiançabilidade prevista para os crimes definidos nos arts. 14 e 15 da Lei 10.826/08 (porte de arma de fogo de uso permitido e disparo de arma de fogo), bem como da vedação de liberdade provisória contida no art. 21 da citada Lei (relativamente aos crimes definidos nos arts. 16, 17 e 18).
Em relação aos primeiros, arts. 14 e 15 – imposição de inafiançabilidade – houve inegável divergência nos votos quanto ao significado do termo
No voto do ilustre Relator, Min.
Partindo de outra perspectiva, e com sólida fundamentação jusfilosófica – ou no âmbito da teoria do direito – o Min. Gilmar Mendes demonstrou a necessidade de se esclarecer o sentido e o alcance da expressão
Nossa pretensão, em espaço tão curto, é apenas a de demonstrar que o reconhecimento da inconstitucionalidade da regra da inafiançabilidade prevista nos arts. 14 e 15 pode dar origem à interpretações incompatíveis com o sistema dos direitos fundamentais abrigado na própria Constituição da República.
E isso porque deixa em aberto a possibilidade de prevalência de entendimento, já alardeado em doutrina, segundo o qual a
E esse entendimento, não explicitado, mas aparentemente cogitado, não pode prevalecer, com o devido respeito àqueles que pensam o contrário. Muito menos aquele que impediria a legislação superveniente ao texto flexibilizar o tratamento prisional acautelatório.
Primeiro: sequer a Constituição – que é obra dos homens de seu tempo – poderia impedir a concessão de liberdade provisória, enquanto mantivesse em seu texto o princípio da não-culpabilidade.
Mas não é só: prevê ela que, à exceção do flagrante, toda prisão dependerá de ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária (art. 5º, LXI); e, se ainda não bastasse, que ninguém será mantido preso quando a lei previr a liberdade provisória, com ou sem fiança (art. 5º, LXVI).
Supondo que a interpretação desta última garantia individual ressalvasse a possibilidade de a lei
Segundo: a Constituição não impede a concessão de liberdade provisória; antes a afirma. A inafiançabilidade diz respeito à vedação de aplicação de
De se
Nesse sentido, a previsão atual de vedação da fiança aos crimes de racismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo,
Ora, durante muito tempo, e, mais precisamente, até a chegada da Lei 12.403/11,
Por isso, dizíamos que,
Mas, todavia, não foi o que ocorreu, lamentavelmente!
A Lei 12.403/11, repetindo antigos erros sobre a matéria,
Obviamente, e com os olhos postos na inafiançabilidade prevista na Constituição, o legislador (da Lei 12.403/11) pretendia, em verdade,
No entanto, e como os demais dispositivos da Lei 12.403/11 se orientavam por critérios totalmente diferentes, com a instituição de um grande número de alternativas ao cárcere, ninguém hoje sustenta a impossibilidade de restituir-se a liberdade daqueles que forem presos em flagrante nos delitos arrolados no citado art. 323, CPP. Ao menos, em sede doutrinária.
No julgamento de que estamos a cuidar, deixa-se, aqui, assentado, que a interpretação que ora se questiona não veio explicitada nos votos dos eminentes Ministros da Suprema Corte. O ilustre Min. Cezar Peluso, por exemplo, que também reconheceu a inconstitucionalidade dos art. 14 e 15, registrou, expressamente, que a liberdade provisória constitui direito do preso, com ou sem fiança.
De outro lado, estão presentes no julgamento algumas ponderações acerca da menor gravidade dos delitos dos art. 14 e 15, e que, a nosso aviso, não se relacionam com a questão da impossibilidade legal de vedação da liberdade provisória
A
No entanto, não se poderá afirmar que a previsão constitucional de
É por isso que a Lei 12.403/11, embora mereça todos os encômios pela restauração da força normativa do princípio da não-culpabilidade, há de ser criticada no particular. Se a Constituição da República insistiu no erro de se valer de expressões absolutamente incompatíveis com o sistema de direitos e de garantias individuais de seu texto, como
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Veja também:
- O Parlamento e as cautelares pessoais no processo penal
- Delação: De direito popular e decisionismos técnicos
- Crimes Tributários e Extinção da Punibilidade
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