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Efeitos Civis da Lava Jato

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Os Efeitos Civis da Lava Jato

EFEITOS CIVIS

LAVA JATO

Anderson Schreiber

Anderson Schreiber

27/02/2018

A Operação Lava Jato tornou-se um marco no combate à corrupção no Brasil. A população em geral aplaude suas conquistas, embora penalistas critiquem frequentemente seus “excessos”, como o vasto emprego do instituto da prisão temporária e certa espetacularização em conduções coercitivas e prisões, além da divulgação de conversas telefônicas objeto de monitoramento. Tudo isso frequenta, de tempos em tempos, os jornais. O que tem sido pouco discutido são os efeitos civis da Lava Jato, especialmente no tocante à reparação dos danos causados ao erário e à sociedade. Muito se fala da responsabilidade penal dos envolvidos, recordando-se, vez por outra, a responsabilidade administrativa de servidores públicos envolvidos nos escândalos. Pouco ou nada se fala sobre a sua responsabilidade civil.

O tema é importantíssimo. Embora a atuação diligente do MPF tenha logrado recuperar somas milionárias, tais valores mostram-se, ainda, muito baixos se comparados à totalidade do dano sofrido pelo erário, pelas empresas públicas e pela sociedade. Tome-se o caso da Petrobras: até o momento, a companhia recebeu, por força da Lava Jato, cerca de 500 milhões de reais de restituição. Isso equivale a cerca de 8% (oito por cento) de todo o prejuízo material que sofreu, estimado na ordem de 6 bilhões de reais. O percentual restituído ainda é pequeno diante do dano monumental. Ao mesmo tempo, há pessoas diretamente responsáveis por esse desfalque que, por força da celebração dos chamados acordos de delação premiada, receberam benefícios na esfera penal, como a concessão de prisão domiciliar, gozada não raro em residências bem fornidas, com confortos aos quais a imensa maioria da população brasileira não tem acesso, despertando algum sentimento de revolta popular. É, portanto, de se perguntar: qual o efeito da chamada delação premiada sobre a responsabilidade civil? Podem os delatores ser chamados a indenizar o dano causado, mesmo após a celebração de acordo de delação premiada e justamente com base nele? Há solidariedade entre os diversos coautores do ilícito que, além de penal, é também civil?

A interação entre a responsabilidade criminal e a responsabilidade civil é contemplada no artigo 935 do Código Civil, que afirma: “A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.” Embora a responsabilidade civil e a responsabilidade penal não se confundam, atendendo a finalidades diversas (reparação do dano x punição do ofensor) e assentando em pressupostos distintos, é inegável que a condenação criminal representa “meio caminho andado” para a responsabilização civil do causador do dano, pois a existência do fato e a sua autoria não poderão mais ser discutidas pelo juízo cível.

O que há de novo aí são os acordos de delação premiada. A Lei 12.850/2013, que regulamentou o tema sob a denominação de “colaboração premiada”, autoriza o juiz a “conceder o perdão judicial, reduzir em até dois terços a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal” (art. 4o). Autoriza, ainda, o Ministério Público a deixar de oferecer denúncia se o colaborar “não for o líder da organização criminosa” e “for o primeiro a prestar efetiva colaboração” (art. 4o, §4o). Se houver mera mitigação ou substituição da pena, aplica-se o artigo 935 do Código Civil: a existência do fato e sua autoria não poderão mais ser discutidos, facilitando em muito a responsabilização civil. Se não houver denúncia, a responsabilidade criminal deixará de se caracterizar, mas a ação indenizatória ainda poderá ser proposta, justamente pela independência entre as esferas de responsabilidade.

Um obstáculo que se coloca é o sigilo do acordo de delação premiada, que a Lei 12.850 assegura até o momento em que “recebida a denúncia” (art. 5o, §7o). Se não oferecida denúncia, pode o sigilo ser quebrado para fins de amparar a responsabilização civil? O STJ tem instigante precedente (REsp 1.554.986/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze), no qual entendeu que o sigilo atribuído pela legislação brasileira aos acordos de leniência celebrados junto ao CADE não impedia sua utilização pelo juízo cível em ação indenizatória. A aplicabilidade desse entendimento ao acordo de colaboração premiada é tema que vêm sendo estudado em profundidade pelos civilistas Raul Murad e Francisco Viegas, no Programa de Mestrado e Doutorado da UERJ, e que promete lançar luz sobre aspecto relevante para o tratamento do sigilo no Brasil. Outra questão importante diz respeito à solidariedade entre os coautores do ilícito, consagrada no artigo 942 do Código Civil. Trazida para a esfera da Lava Jato, a norma afirma, em outras palavras, que cada um dos condenados não é civilmente responsável apenas por restituir os valores que tenha acrescido ilegalmente ao seu patrimônio, mas é também responsável pela totalidade do dano sofrido, em caráter solidário. Assim, embora os acordos de colaboração premiada limitem-se normalmente à restituição dos valores pessoalmente auferidos pelo colaborador – como é natural em se tratando de responsabilidade penal, personalíssima –, nada impede que o mesmo colaborador venha a ser responsabilizado solidariamente, na esfera cível, pela totalidade dos danos causados, com seu auxílio, à vítima (ou seja, à companhia pública ou privada lesada em seu patrimônio ou, em caso de recursos públicos, à União Federal, ao Estado ou ao Município que sofreu o indevido desfalque). Acresça-se a isso a possibilidade de compensação dos danos morais, especialmente naqueles casos em que a entidade desfalcada perdeu credibilidade e teve seu bom nome afetado por conta das denúncias de corrupção.

Sob o prisma científico, os acordos de colaboração premiada são um instrumento sofisticado, que introduz um elemento de contratualidade na esfera penal, tradicionalmente caracterizada por uma observância rígida da lei, sem espaço formalmente reconhecido para “escolhas” do magistrado ou do Parquet. Ao mesmo tempo em que permitem avanços inéditos no combate à corrupção no Brasil, tais acordos suscitam questionamentos de legitimidade da atuação do Poder acusatório: por que tais “escolhas” resultam na mitigação da pena daquele ofensor e não do outro? Por que a delação do ladrão confesso é aceita e se lhe concede a prisão domiciliar enquanto seus comparsas – até alguns que possam ter “roubado menos” ou se beneficiado menos individualmente – continuam encarcerados? Quem legitima essas “escolhas”, inerentes ao instrumento essencialmente contratual da colaboração premiada? Para fornecer uma resposta aceitável, é preciso, de um lado, que se tenha transparência sobre os critérios empregados, informando-os, sempre que possível, à sociedade civil, que tem direito a receber todos os esclarecimentos sobre as contrapartidas que estão sendo oferecidas e os benefícios que estão sendo obtidos por meio dos acordos celebrados. De outro, é preciso prevenir o sentimento de impunidade que pode, mesmo com todos os avanços da Lava Jato, grassar na população ao ver fotos de criminosos confessos em liberdade ou prisão domiciliar. Nesse particular, a responsabilidade civil tem um papel relevante a desempenhar.

Ações indenizatórias, promovidas pelas vítimas públicas ou privadas dos danos, podem, inclusive por meio da reunião de réus solidariamente responsáveis, não apenas elevar o montante recuperado, mas também afastar qualquer impressão da sociedade civil de que os colaboradores fizeram um “bom negócio”, que todas as condutas criminosas, ao fim e ao cabo, valeram à pena em termos econômicos. É nítida, quando não expressamente declarada, a intenção dos delatores de salvar, ao menos em parte, o seu patrimônio, preservando seu próprio futuro e de seus familiares. Nesse momento em que todas as atenções estão voltadas para o noticiário criminal, a boa e velha Responsabilidade Civil pode oferecer soluções interessantes no movimento de combate à corrupção e na profunda mudança de paradigmas por que passa a sociedade brasileira.

Íntegra do precedente citado (STJ, REsp 1.554.986/SP): https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201502191117&dt_publicacao=05/04/2016


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