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Repensando o Direito civil Brasileiro (24): O caso de LynLee Hope e o problema do ini?cio da personalidade da pessoa natural
CURSO DIDÁTICO DE DIREITO CIVIL
PERSONALIDADE DA PESSOA NATURAL
PESSOA NATURAL: O INÍCIO DA PERSONALIDADE
Felipe Quintella
15/09/2017
O Repensando de hoje decorre de uma pesquisa que tive a honra de realizar com Rafael Fontes Viana na Faculdade de Direito Milton Campos. Rafael foi meu aluno em Direito das Sucessões.
Escrevemos o texto a seguir em coautoria, Rafael e eu, e o apresentamos na XIII Semana de Iniciação Científica da Milton Campos, em 2016. O trabalho foi originalmente publicado nos anais no evento, em 2017.
Introduc?a?o
O Direito Civil contempora?neo ainda trabalha, para a definic?a?o do ini?cio da personalidade juri?dica da pessoa natural, com as velhas teorias natalista e concepcionista, e com a teoria mista — personalidade condicionada — adotada pelo art. 2º do Co?digo Civil, que seguiu a orientac?a?o natalista quanto ao marco inicial da personalidade — o nascimento com vida —, mas que optou por resguardar os direitos que o nascituro teria adquirido se ja? fosse considerado pessoa desde a concepc?a?o, inclinando-se, assim, para a teoria concepcionista.
Logo, se uma crianc?a nascer com vida, a partir de enta?o sera? considerada pessoa, mas adquirira? retroativamente todos os direitos que ja? teria adquirido, se sua personalidade tivesse comec?ado da concepc?a?o.
Ocorre, entretanto, que a vida contempora?nea, sobretudo em raza?o dos avanc?os da cie?ncia e da tecnologia, ja? na?o pode ser enquadrada nos vetustos moldes dessas antigas teorias. Sa?o muitas as dificuldades teo?ricas e pra?ticas de todas elas.
O recente caso ocorrido nos Estados Unidos envolvendo a bebe? que ganhou o nome de LynLee Hope demonstra a necessidade de se repensar a questa?o do ini?cio da personalidade da pessoa natural no caso do marco natalista, e deixa em du?vida se, caso a histo?ria tivesse ocorrido no Brasil, LynLee Hope teria ou na?o adquirido personalidade juri?dica ao ser separada do ventre materno com vida.
O caso LynLee Hope
Em 6 de junho de 2016, a bebe? norte-americana LynLee Hope Boemer nasceu com 2.4 kg na cidade de Plano, Texas, nos Estados Unidos da Ame?rica. Seu parto cesariano com 36 semanas de gestac?a?o foi considerado um milagre por me?dicos e familiares, pois, enquanto ainda estava em desenvolvimento no u?tero, o feto precisou ser operado para remoc?a?o de um tumor em sua coluna (UOL NOTI?CIAS, 2016).
Durante a gestac?a?o, na 16ª semana, em um exame ultrassom de rotina, foi constatada a presenc?a de um tumor localizado pro?ximo ao co?ccix, diagnosticado como sendo um Teratoma sacrococcigeo. Este tumor — enta?o bastante desenvolvido — ja? estava quase do mesmo tamanho do feto, o que ameac?ava seu desenvolvimento, competindo por sangue, correndo o risco de causar a interrupc?a?o da gravidez por inviabilidade do feto, caso na?o fosse removido a tempo (BBC NEWS, 2016).
Diante dessa realidade, foi oferecida aos pais da crianc?a a possibilidade de submeter a gestante, Margaret Boemer, a uma cirurgia de alto risco — cuja chance de sucesso era avaliada em 50% —, em que a crianc?a seria removida do u?tero, operada, e reinserida no ventre materno para prosseguimento da gestac?a?o.
Sendo essa a u?nica esperanc?a de salvar a crianc?a, os pais optaram por realizar a cirurgia na 23a semana de gestac?a?o, quando LynLee Hope pesava apenas 550 gramas, no Texas Children’s Hospital, em Houston. O encarregado de coordenar a operac?a?o foi o Dr. Darrel Cass, codiretor do Texas Children’s Fetal Center e professor de cirurgia, pediatria, obstetri?cia e ginecologia na Faculdade de Medicina da Universidade Baylor (TEXAS CHILDREN`S HOSPITAL, 2016).
A operac?a?o durou um tempo total de cinco horas, tendo LynLee Hope Boemer permanecido inteiramente fora do u?tero materno por vinte minutos, para que fossem removidos 90% do tumor, sendo o restante do tempo dedicado a abrir o u?tero, remover o feto e depois recoloca?-lo de forma a na?o compromete?-lo e nem a ma?e.
No decorrer da cirurgia, houve a total remoc?a?o do feto de dentro do u?tero, que se manteve conectado com a ma?e apenas pelo corda?o umbilical. Durante o procedimento a crianc?a chegou a ter paradas cardi?acas, devido a? fragilidade de seu organismo, tendo sobrevivido devido ao trabalho a?gil e competente da equipe do hospital, que ministrou medicamentos e procedimentos para reanima?-la e poder concluir a operac?a?o, reinserindo-a novamente no u?tero materno (HEIN, 2016).
Encerrada a cirurgia, o feto continuou a se desenvolver normalmente, com a ma?e, Margaret Boemer, se mantendo em absoluto repouso na cama durante treze semanas, ate? a 36a semana de gestac?a?o, quando LynLee Hope foi retirada definitivamente do ventre materno em um parto por cirurgia cesariana.
Apo?s seu nascimento, LynLee Hope foi encaminhada para a unidade de tratamento intensivo po?s-natal, onde ficou ate? seu oitavo dia de vida para remoc?a?o da parte remanescente do tumor. Hoje ela passa bem e se desenvolve como qualquer crianc?a que na?o teve nenhuma complicac?a?o pre? ou po?s-natal.
Pois bem. Considerando-se que para o Co?digo Civil brasileiro a personalidade juri?dica comec?a do nascimento com vida, seria possi?vel afirmar que, tivesse o caso LynLee Hope ocorrido por aqui, a menina teria se tornado pessoa ao ser extrai?da do u?tero materno para a realizac?a?o da cirurgia para remoc?a?o do tumor?
A se interpretar literalmente o art. 2º do Co?digo Civil, sim.
Na?o obstante, algue?m podera? alegar que o corda?o umbilical na?o chegou a ser cortado naquela ocasia?o. Pore?m, o marco adotado pelo Co?digo, o nascimento com vida, na?o se confunde com o do corte do corda?o umbilical.
Por outro lado, interpretando-se teleologicamente o dispositivo, constata-se que a finalidade da norma e? atribuir personalidade ao ente a partir do momento em que passa a ter existe?ncia auto?noma, o que ocorre a partir do nascimento. Ainda que o bebe? dependa de cuidados de terceiros, sua vida, a partir do nascimento, existe independentemente da ma?e.
Destarte, seria o caso de se afirmar que LynLee Hope na?o teria adquirido personalidade logo naquele momento, mas somente apo?s a conclusa?o da gestac?a?o.
Conclusa?o
O caso LynLee Hope, impensado ate? recentemente — que dira? cem ou duzentos anos atra?s — coloca em xeque a orientac?a?o natalista quanto ao ini?cio da personalidade da pessoa natural — ainda que se prefira denominar a teoria brasileira de teoria da personalidade condicionada, porquanto o marco adotado foi o nascimento com vida.
Ante os avanc?os da cie?ncia e da tecnologia, que permitem a remoc?a?o tempora?ria do bebe? do ventre materno, antes da conclusa?o da gestac?a?o, indaga-se se o nascimento ainda se presta a determinar o momento em que se adquire personalidade juri?dica. Pois, se e? possi?vel a operac?a?o por atuac?a?o de equipe me?dica, o momento da aquisic?a?o da personalidade da pessoa natural poderia ser manipulado — mesmo muito antes de o bebe? estar preparado para existir fora do u?tero —, sobretudo quando houvesse interesse e ma?-fe? por parte de um ou de ambos os pais.
Ademais, como o nascimento com vida se comprova pela certida?o do assento do nascimento, o que, mesmo em casos como o de LynLee, provavelmente so? ocorreria apo?s a conclusa?o da gestac?a?o, o que provaria o marco inicial da personalidade se esta se adquirisse quando da remoc?a?o tempora?ria?
Sa?o muitas as reflexo?es que o interessante caso provoca. E? preciso discuti-lo — e e? isso o que este breve ensaio pretende fomentar.
Refere?ncias
Uol Noti?cias, Disponi?vel em: <http://noticias.uol.com.br/saude/ultimas- noticias/redacao/2016/10/21/conheca-a-bebe-norte-americana-que-se-livrou-de-tumor-e- nasceu-duas-vezes.htm> Acesso em: 30 out. 2016.
BBC News, Disponi?vel em: <http://www.bbc.com/news/world-us-canada-37750038> Acesso em: 30 out. 2016.
HEIN, Alexandria. FOX News, Disponi?vel em: <http://www.foxnews.com/health/2016/10/26/texas-baby-born-twice-meeting-growth- milestones-4-months-later.html> Acesso em: 30 out. 2016.
Texas Children`s Hospital, Disponi?vel em: <https://www.texaschildrens.org/find-a- doctor/darrell-l-cass-md> Acesso em: 30 out. 2016.
Veja também:
- Decodificando o Código Civil (35): A disciplina das obrigações de dar coisa certa (parte 4)
- Decodificando o Código Civil (34): A disciplina das obrigações de dar coisa certa (parte 3)
- Decodificando o Código Civil (33): A disciplina das obrigações de dar coisa certa (parte 2)
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