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Ricardo Lucas Calderón

Ricardo Lucas Calderón

05/09/2017

A afetividade é um dos principais vetores dos relacionamentos interpessoais contemporâneos (Lipovetsky, 2007: 148). A sociedade adotou o vínculo afetivo no estabelecimento das relações familiares, o que se percebeu com mais intensidade a partir do final do século XX (Villela, 1979:401). Mesmo com o avanço científico na apuração dos vínculos biológicos, identificados pela técnica do exame em DNA, a ligação afetiva foi adotada como socialmente suficiente. O ditado popular brasileiro “pai é quem cria” é uma demonstração do que se está a sustentar. Hodiernamente, as situações existenciais intersubjetivas estão caracterizadas pela indelével marca da afetividade, de modo que a importância que lhe foi paulatinamente conferida no plano fático implicou na sua subsequente assimilação jurídica (Oliveira, 2003:436). Em um período não muito distante imperavam  outros critérios no reconhecimento jurídico de uma relação familiar de conjugalidade ou de parentalidade (os conhecidos vínculos matrimoniais, biológicos e registrais).

No cenário atual, figura ao seu lado também o elo afetivo, identificado como merecedor de tutela (Perlingieri, 2002:244). A jurisprudência brasileira desempenhou um papel fundamental na valoração jurídica da afetividade, pois anteriormente a qualquer previsão legislativa diversas decisões judiciais a acolheram na solução de casos concretos. O Superior Tribunal de Justiça foi o protagonista na sua consolidação jurisprudencial, principalmente no reconhecimento do vínculo parental decorrente da denominada socioafetividade (STJ, REsp nº 878.941/DF, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. em 21.08.2007, disponível aqui

Outra demonstração da proeminência dos tribunais nesse percurso pode ser percebida na emblemática decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu as uniões homoafetivas como uniões estáveis (STF, ADIN 4.277/DF e ADPF 132/RJ, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, j. em 05.05.2011, unânime, aqui). Ainda que lastreada em outros princípios e valores constitucionais é possível perceber uma contribuição da afetividade para o resultado final obtido neste caso, visto que foi citada em quase todos os votos proferidos, inclusive vindo a fazer parte do vocábulo eleito para definir as relações entre pessoas do mesmo sexo (homoafetividade).

A literatura jurídica brasileira foi profícua em contribuir no avanço dos contornos jurídicos que deveriam ser conferidos à afetividade, exercendo papel de vanguarda nesta relevante temática. Sem embargo persistam alguns autores contrários ao seu reconhecimento jurídico (Silva, 2011: 35), parte substancial da doutrina confere valor jurídico à afetividade. A principal discussão doutrinária atual envolve a qualificação da afetividade na categoria de princípio do direito de família ou, então, apenas como um valor relevante. Embora seja crescente a assunção do seu perfil principiológico esta ainda não é uma questão pacificada. Tramita no Congresso Nacional Brasileiro projeto de lei que propõe o Estatuto das Famílias (PLS 470/2013 do Senado Federal), o qual prevê expressamente a afetividade no rol dos princípios do direito de família.

Uma hermenêutica do Direito Civil à luz da Constituição Federal parece indicar, desde logo, que a classificação da afetividade como princípio é a mais acertada para o nosso atual estágio jusfamiliar (Simão/Tartuce 2010:50).

No espectro legislativo, a Constituição Federal de 1988 foi, sem dúvida, o marco inicial desse novo tema no Direito brasileiro, sendo possível constatar o reconhecimento implícito da afetividade nas suas disposições (art. 226, § 4º, 227, caput, §§ 5º e 6º, CF). O Código Civil, por sua vez, tutela situações afetivas em diversos dos seus dispositivos (por exemplo: art. 1511, 1583, § 2º, 1584, § 5º, 1593, CC).

A legislação esparsa subsequente é recorrente na remissão à afetividade quando da regulação dos conflitos familiares, o que pode ser percebido claramente na Lei ‘Maria da Penha’ (nº 11.340/2006), na Lei da Adoção (nº 12.010/2009), na Lei da Alienação Parental (nº 12.318/2010) e também na denominada Lei ‘Clodovil’ (nº 11.924/2010).

A alteração processada com a inserção da afetividade no meio jurídico mostrou-se de tal monta que a virada do século protagonizou uma verdadeira transição paradigmática no direito de família brasileiro: no momento anterior vigia a legitimidade; atualmente, crescem os defensores da tese de que o que se estabelece é a afetividade (Fachin, 1992:169; Veloso, 1997:221; Hironaka, 2006: 436; Lobo, 2008: 454). Uma das exigências que decorrem desse novo contexto é a busca por uma apuração escorreita do sentido jurídico da afetividade. Aspecto basilar, que não pode ser ignorado, tange à definição que o Direito atribuirá a afetividade, certamente distinta do conceito que outras áreas lhe conferem (tais como a psicologia, a psiquiatria e até mesmo a psicanálise).

Ainda que se parta de uma análise transdisciplinar é inarredável aportar em uma tradução jurídica, que não deve restar atrelada a aspectos subjetivos ou inapreensíveis concretamente. Face o Direito laborar com fatos jurídicos concretos estes devem ser os alicerces que demarcarão a significação jurídica da afetividade. Dito de outro modo, a leitura jurídica da afetividade  efetiva-se com uma lente objetiva, a partir da persecução de fatos concretos que permitam sua averiguação no plano fático: uma afetividade jurídica objetiva. A partir disso parece possível distinguir os sentidos de alguns significantes muitas vezes confundidos: amor, afeto, afetividade e socioafetividade.

Há que se afastar qualquer confusão com o amor quando da significação da afetividade, posto ser o primeiro um sentimento subjetivo que escapa ao Direito, enquanto a afetividade se manifesta por intermédio de uma atividade concreta exteriorizadora que é cognoscível juridicamente. Essas manifestações de afeto podem ser captadas pelos filtros do Direito, pois fatos jurídicos representativos de uma relação afetiva são assimiláveis. Por outro lado, é inegável que o afeto em si é efetivamente um sentimento anímico, inapreensível pelo sistema jurídico, o que desaconselha que os juristas se aventurem na sua apuração.

Consequentemente, resta tratar juridicamente apenas com as atividades exteriorizadoras de afeto (afetividade), afastando-se das temáticas do amor. Corolária disso, a percepção que o princípio da afetividade jurídica possui duas dimensões: a objetiva é retratada pela presença de eventos representativos de uma expressão de afetividade, ou seja, fatos sociais que indiquem a presença de uma manifestação afetiva; e a subjetiva refere ao afeto anímico em si, o sentimento propriamente dito. A verificação dessa dimensão subjetiva certamente foge ao Direito e, portanto, será sempre presumida, o que permite dizer que constatada a presença da dimensão objetiva da afetividade, restará desde logo presumida a sua dimensão subjetiva. A partir destes pressupostos é possível sustentar que a socioafetividade representa o reconhecimento no meio social de manifestações afetivas concretas.

Em que pese inicialmente possa parecer árduo ao Direito lidar com um tema tão subjetivo, não raro alguns institutos jurídicos igualmente subjetivos são apurados de maneira similar (v.g. a boa-fé). Eventos que podem evidenciar a afetividade são manifestações especiais de cuidado, entreajuda, afeição explícita, comunhão de vida, convivência mútua, mantença alheia, coabitação, projeto de vida em conjunto, existência ou planejamento de prole comum, proteção recíproca, acumulação patrimonial compartilhada, dentre outros.

Evidentemente, estes caracterizadores deverão se manifestar com intensidade inerente aos referidos relacionamentos familiares, seja de parentalidade (como na análise da posse de estado de filho) ou seja de conjugalidade (como na apuração de uma união estável) – (Calderón, 2013:301-328). Os efeitos da inserção da afetividade no direito de família são diversos e seguem se revelando, por vezes, até mesmo de forma inovadora. Alguns exemplos: a ressignificação do conceito de família, a consolidação do parentesco socioafetivo (Lobo, 2008), a distinção entre ascendência genética e filiação (Madaleno,  2008:35), a viabilidade ou a inviabilidade do reconhecimento da filiação post mortem apenas para fins sucessórios (Supremo Tribunal Federal: STF, ARE 692186 RG/PB – Rel. Min. Luiz Fux), a possibilidade do reconhecimento da multiparentalidade (Cassettari, 2014:187), as soluções demandadas pelos casos de reprodução assistida e os novos litígios do biodireito (Gama, 2003), as controvérsias resultantes da temática do abandono afetivo (STJ, REsp 1.159.242/SP, Relª. Minª. Nancy Andrigui, Terceira Turma, j. em 24.04.2012) e os debates sobre a poliafetividade (Dias, 2013:187).

Remissão: Afeto – Família – Socioafetividade – Princípio – Filiação – Ascendência genética – multiparentalidade – biodireito – Abandono afetivo – Homoafetividade – Poliafetividade


Referências:
CALDERÓN, Ricardo. Princípio da Afetividade no Direito de Família. 2 ed. rev. atual. amp. Rio de Janeiro: Forense.2017
CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: efeitos jurídicos. São Paulo: Atlas, 2014.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
FACHIN, Luiz Edson. Estabelecimento da Filiação e Paternidade Presumida. Porto Alegre: Fabris, 1992.
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação. O biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Sobre Peixes e Afetos – Um Devaneio Acerca da Ética no Direito. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. São Paulo: IOB Thompson, 2006.
LIPOVETSKY, Gilles. A Felicidade Paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Socioafetividade no Direito de Família: a Persistente Trajetória de um Conceito Fundamental. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre, Magister; Belo Horizonte, IBDFAM, v. 5, ago./set. 2008.
MADALENO, Rolf. Filiação Sucessória. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre, Magister/ Belo Horizonte, IBDFAM, v. 01, dez./jan. 2008. p. 25-41).
OLIVEIRA, Guilherme de. Critério Jurídico da Paternidade. Reimp. Coimbra: Almedina, 2003.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao direito civil-constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
SILVA, Regina Beatriz Tavares; MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 2: Direito de Família. 41. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
SIMÃO, José Fernando; TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito de família. 6. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011. v. 5.
VELOSO, Zeno. Direito Brasileiro da Filiação e Paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997.
VILLELA, João Baptista. A Desbiologização da Paternidade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, UFMG, ano XXVII, n. 21, maio 1979.

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