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Decodificando o Co?digo Civil (25) – A ordem de vocac?a?o heredita?ria e o inacredita?vel art. 1.829 (Parte I)

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SUCESSÃO LEGÍTIMA

VOCAÇÃO HEREDITÁRIA

Felipe Quintella

Felipe Quintella

27/06/2017

Admito que não tenho boa-vontade com o Código de 2002, o que se deve a muitos estudos da história da nossa codificação, e à triste constatação de que depois de tantos debates e de tanta reflexão sobre qual seria o melhor Código Civil para o país, tornou-se o Código Civil atual, na aurora do século XXI, justamente — ou injustamente, melhor dizendo — o pior e menos refletido de todos os projetos desde o século XIX.

Alguns dirão, certamente, que sou por demais radical.

Todavia, até quem me considera excessivamente crítico concorda — estou certo disto — que o art. 1.829, o qual estabelece no Direito em vigor a ordem de vocação hereditária, é, no mínimo, inacreditável

Não é preciso ter feito Direito das Sucessões, nem ser professor da matéria, nem trabalhar na área, para estranhar o dispositivo. No caso do art. 1.829, a primeira impressão já é má. Senão, vejamos.

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I — aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II — aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III — ao cônjuge sobrevivente;
IV — aos colaterais.

Não há leitor que não tenha dificuldade ao ler e tentar compreender o inciso I. Afinal, em que casos o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes?

Se você está refletindo sobre o assunto pela primeira vez e não conseguiu encontrar no preceito resposta para essa simples — e tão importante — pergunta, não se preocupe. É que, até hoje, nem doutrina nem jurisprudência conseguiram também não…

Pois bem. Ordem de vocação hereditária é como se denomina, no Direito das Sucessões, a ordem de preferência entre os herdeiros a quem a lei atribui direito de suceder, chamados de herdeiros legítimos.

Augusto falece casado com Maria, e deixando filhos, netos, pais ainda vivos, irmãos, tios, sobrinhos, tios-avós, muitos primos e até um sobrinho-neto. Todas essas pessoas — cônjuge, descendentes, ascendentes e colaterais até o 4º grau — têm, por lei, direito sucessório. Mas, obviamente, a herança de Augusto não será divida entre todos eles.

Para que, havendo pluralidade de herdeiros legítimos, descubra-se quais vão herdar — serão chamados à sucessão, como de diz na linguagem técnica —, é preciso consultar a ordem de preferência conhecida como ordem de vocação hereditária.

No Direito brasileiro anterior à codificação, a ordem que se depreendia das Ordenações Filipinas era: 1º, descendentes; 2º ascendentes; 3º colaterais até o 10º grau; 4º cônjuge. Vale lembrar que as Ordenações Filipinas eram de 1603, e que a ordem nelas contida fora inspirada pelo Direito Romano do tempo do Imperador Justiniano (séc. VI d.C.).

No século da codificação do Direito Civil, não só no Brasil como nos demais países de tradição romano-germânica em geral, buscou-se uma melhor posição para o cônjuge, vez que já não se aceitava que este somente herdasse após todos os colaterais.

No Direito brasileiro, a Lei Feliciano Pena, de 1907, consagrou a ordem simples, clara e justa pensada entre nós por Joaquim Felício dos Santos — autor do terceiro projeto de Código Civil brasileiro, e primeiro a ser concluído —, que a Câmara dos Deputados adotara no lugar da ordem constante no projeto de Clovis Bevilaqua originariamente.[1] Tal lei foi promulgada justamente por se sentir que o assunto não podia aguardar a aprovação do Código Civil, que demorava no Senado, e por se considerar que a ordem aprovada pela Câmara era a melhor. Posteriormente, o Código Civil de 1916 a manteve.

E qual era tal ordem simples, clara e justa? Descendentes, ascendentes, cônjuge e colaterais.

A simples alteração da posição do cônjuge da quarta para a terceira ordem fazia uma grande diferença. O cônjuge continuava não sendo herdeiro se o falecido deixasse descendentes ou ascendentes, mas herdava sozinho na falta desses, não cabendo nada aos colaterais.

Veja que, na ordem anterior, o cônjuge somente herdava se além de descendentes e ascendentes o morto também não deixasse vivo nenhum irmão, tio, sobrinho, tio-avô, sobrinho-neto, primo nem qualquer outro colateral até o 10º grau; observe que na minha enumeração só cheguei até o 4º grau.[2]

O Código de 2002, por sua vez, querendo melhorar ainda mais a situação do cônjuge — e nisso, que fique claro, não vejo qualquer problema — conseguiu criar a inacreditável situação de que trataremos na semana que vem.[3]


[1] Essa foi uma das maiores descobertas da minha pesquisa de Doutorado, concluída com a defesa da minha tese em março de 2017 na Faculdade de Direito da UFMG.
[2] Irmãos são parentes de 2º grau na linha colateral; tios e sobrinhos, de 3º; tios-avós, sobrinhos-netos e primos, de 4º grau.
[3] Na coluna Repensando o Direito Civil Brasileiro, já explorei as diversas divergências sobre a sucessão do cônjuge no regime do Código de 2002: Repensando o Direito Civil brasileiro (2) – A absurda situação da sucessão do cônjuge em concorrência com os descendentes.

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