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Guilherme de Souza Nucci

Guilherme de Souza Nucci

29/05/2017

Denomina-se testamento vital a chamada diretiva antecipada de vontade, ou seja, um documento assinado pelo paciente, antes de atingir eventual grau de inconsciência, estabelecendo a quais procedimentos médicos, em caso de doença grave (e terminal), estaria disposto a se submeter e quais seriam vedados. Ilustrando, costuma-se proibir o uso de ventilação mecânica, cirurgia para prolongamento da vida (sem perspectiva de cura), uso de medicamentos inúteis para a cura, reanimação após a parada cardíaca, intubação para alimentação forçada e/ou respiração etc.

Ao mencionar o termo testamento quer-se demonstrar apenas a disposição de última vontade; o termo vital significa algo concernente à vida humana. Logo, cuida-se da disposição de última vontade relativa à própria vida. Inexiste lei prevendo-o expressamente ou regulamentando-o, razão pela qual, no tocante à sua formação, pode ser elaborado de próprio punho pelo testador ou registrado em cartório.

Sob outro aspecto, a única norma que disciplina o tema é a Resolução do Conselho Federal de Medicina n. 1995/2012, em seus artigos 1o e 2o: há de se respeitar a vontade do paciente acima de qualquer outra (inclusive da família e de outros médicos), mesmo estando ele inconsciente, quando tenha deixado as diretivas antecipadas de sua vontade quanto à morte. Quer-se crer que, em tese, desrespeitar o testamento vital seria uma conduta antiética do médico, passível de punição pelo órgão de classe. No entanto, teria o CFM a atribuição legal de disciplinar a disposição de última vontade no tocante à vida?

Verificando-se o teor das Leis 3.268/57 e 11.000/2004, o Conselho Federal de Medicina, no art. 5o da primeira Lei somente tem atribuição para regular questões administrativas internas. Na realidade, verifica-se no art. 15 da mesma Lei, alínea d, caber ao Conselho Regional de Medicina “conhecer, apreciar e decidir os assuntos atinentes à ética profissional impondo as penalidades que couberem”. Não deixa de ser algo paradoxal, pois as leis brasileiras, mormente as que abrangem o exercício de certas profissões, têm alcance nacional (vide o Estatuto de Advocacia), não se compreendendo a razão pela qual as questões de ética médica sejam delegadas aos Conselhos Regionais. Por acaso cada Conselho teria uma ética própria, resultando em diversos caminhos éticos para os médicos, dependendo do Estado da Federação onde exercer sua atividade? Cremos inadequada essa hipótese, merecendo-se conferir credibilidade e legitimidade ao Conselho Federal de Medicina para regular a conduta ética, em particular as mais relevantes, para valer em todo o Brasil.

Mesmo que se acolha a viabilidade legal de o Conselho Federal de Medicina disciplinar temática relativa à ética médica, é mais que sabido a inviabilidade de uma simples resolução possuir a mesma validade que uma lei federal. Logo, o testamento vital encontra-se previsto na Resolução CFM n. 1.995/2012, mas não encontra paridade em nenhuma lei brasileira. Pode-se afirmar, então, não haver o direito consagrado de se elaborar essa diretiva de última vontade.

Em nosso entendimento, entretanto, a referida resolução do CFM pode – e deve – servir de diretriz para o Parlamento brasileiro estudar e editar lei a respeito do assunto. No mais, se o médico respeitar a vontade do paciente, conforme o caso concreto, pode, em tese, sofrer investigação e processo criminal, mormente se caminhar contra o desejo da família. A situação do profissional da medicina é delicada, pois ele teria autorização do seu Conselho de classe para o respeito ao testamento vital, mas não da sociedade, que se manifesta por meio de lei.

Continuam, por isso, os médicos consultando a família a respeito das medidas a tomar quando o paciente está inconsciente. Poucos respeitam a diretiva de última vontade, a menos que coincida com o desejo da família do paciente. Justamente por isso, saiu artigo no jornal Folha de S. Paulo, de 22 de maio de 2016, no caderno Saúde (B6), de autoria de Cláudia Collucci e Philippe Watanabe, com o seguinte título: “cinco anos após entrar em vigor testamento vital não é utilizado”. Concordamos, por certo, com a última parte (não é utilizado), mas a primeira parte inexiste legalmente (entrar em vigor, como se fosse lei).

Alterando o enfoque e levando-o para o ambiente da ortotanásia (morte no tempo certo), verifica-se que os médicos vêm praticando o que a família do paciente deseja e mesmo a diretiva de última vontade deixada pela pessoa enferma, porque já se ingressou no campo da adequação social, uma causa eficiente para excluir a tipicidade material. Existe lei regulamentando a ortotanásia? A resposta é negativa e, mesmo assim, ela é realizada todos os dias em inúmeros hospitais e clínicas brasileiras, sem que o Estado-investigação tome qualquer atitude. Não há qualquer persecução penal para esse cenário. A explicação é simples: a sociedade tem encarado com naturalidade a opção pela morte digna, sem prolongamento artificial e forçado, gerando sofrimento inútil ao paciente.

Chega-se, pois, à conclusão que o Parlamento brasileiro tem fechado os olhos para assuntos polêmicos (uso de droga, aborto, morte digna, disposição de última vontade nesse campo etc.), pois nem mesmo encontram tempo para debruçar-se sobre temas tão relevantes, já que, hoje, tudo parece girar em torno de corrupção, organização criminosa, lavagem de capitais e correlatos.

Enquanto o Congresso Nacional não toma seu lugar nesse contexto, embora inexista lei expressa, os médicos devem continuar seguindo a recomendação feita pela Resolução CFM 1.995/2012, além de estarem instruídos de que a ortotanásia tem ampla aceitação social, o que serve para tornar atípica a conduta de não prolongar artificialmente a vida de qualquer paciente, desde que coincida com a vontade do enfermo. Quando este estiver inconsciente, deixando testamento vital, há de se cumprir seu desejo. Se não houver o referido testamento, ouve-se a família. Ausentes o testamento vital e a família, o próprio médico toma a decisão, embora a Resolução 1.995/2012 (art. 2o, § 5o.) determine deva ele recorrer ao Comitê de Bioética da instituição; na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional de Medicina. O Parlamento brasileiro é tão atrasado em vários aspectos importantes que, além de sentirmos o ativismo judicial, captamos, igualmente, a ânsia de mudanças em outros setores da sociedade civil, como no caso dos médicos e suas resoluções acerca da vida humana. Que possa valer a norma socialmente adequada em lugar da lei formalmente editada, quando esta se mostrar em franca oposição àquela.


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