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A árdua tarefa de reescrever o Direito Internacional Privado brasileiro
Valerio Mazzuoli
27/04/2017
A centenária Companhia Editora Forense encomendou-me, há alguns anos, um dos livros que maior sacrifício pessoal me daria, e que, finalmente, recebeu o seu ponto final há poucas semanas.
Dividido em duas partes, Parte Geral e Parte Especial, o Curso de Direito Internacional Privado que escrevi para a Editora Forense virá finalmente à luz. Nele pretendi reescrever o Direito Internacional Privado brasileiro, tal como venho fazendo, há mais de dez anos, com o Direito Internacional Público. Há anos faltava quem reescrevesse o Direito Internacional Público no Brasil, tarefa a que me lancei desde 2006 (meu Curso de Direito Internacional Público está, hoje, na 10ª edição pela Editora Revista dos Tribunais). O Curso de Direito Internacional Público é reconhecido internacionalmente, tendo ganhado recente edição para o espanhol, com o selo do Editorial Cuscatleca (El Salvador).
Depois de anos relutando, sabedor do esforço pessoal que me custaria, atendi ao chamado da Editora Forense para fazer exatamente o que fiz com o Direito Internacional Público, dessa vez com o Direito Internacional Privado. Finalmente o fiz. À custa de enorme sacrifício – sem parar a atividade advocatícia e lecionando nas turmas de graduação e de mestrado na Universidade Federal de Mato Grosso e no mestrado da Universidade de Itaúna – concluí este trabalho, que, não obstante, foi capaz de me trazer incomensurável alegria.
Tive prazeres indescritíveis ao dialogar com autores esquecidos do direito brasileiro e citados apenas retoricamente nos trabalhos mais recentes de Direito Internacional Privado publicados no Brasil; autores que fizeram a disciplina no país, desde Pimenta Bueno, passando por Clovis Bevilaqua, Rodrigo Otávio, Pontes de Miranda, Eduardo Espinola, até os mais recentes Oscar Tenório e Haroldo Valladão e a atual doutrina brasileira pós-Jacob Dolinger. As doutrinas francesa, italiana e portuguesa pretendi, também, esgotar nos temas de centralidade, bem assim naquilo que nos aproveita à Parte Especial do Direito Internacional Privado brasileiro. Revisitei tudo o que era possível revisitar, sem esquecer dos autores norte-americanos, espanhóis e dos alemães, dentre tantos outros.
No estudo atento desse guarda-chuva doutrinário pude perceber fragilidades e certa a falta de sistematização no trato dos temas, notadamente da Parte Especial da matéria. Esse foi um desafio que tive que superar: passar a limpo o Direito Internacional Privado brasileiro, tanto no método quanto na substância; refazer o caminho da disciplina de modo operante, vivaz e com soluções concretas. Esse o propósito mais complexo e determinante, mais penoso para o jurista e, também, mais angustiante. Por isso não me coloquei tempo, e como alertou Dirceu Galdino Cardin não haveria mesmo de colocar. Nada às pressas sai a contento. A digestão foi lenta, mas quando assim é a saúde não enfrenta fraquezas.
A ideia central de todo o trabalho foi demonstrar o caminho a ser perseguido pelo juiz para a (correta) aplicação do direito estrangeiro indicado pela regra de Direito Internacional Privado da lex fori, mas com toque de dialogismo e à luz de soluções pro homine; a teoria geral fixada na extensa Parte Geral refletiu nas teses propostas para a interpretação das normas da LINDB atinentes à Parte Especial. Tudo foi (quero crer) bem interligado, concatenado, pensado, sempre com calma e digerindo lentamente os institutos sob investigação. O resultado me agradou muitíssimo, devo confessar. Pude avançar em pontos-chave da matéria, ir além; superar limitações que desde Bevilaqua pareciam ainda presentes, instransponíveis. Mas não são. Há soluções, sim, desde que bem pensadas e organizadas, cientificamente, sem casuísmos.
O Direito Internacional Privado brasileiro é riquíssimo, repleto de nuances que poucos notam; é direito com soluções criativas, porém justas, notadamente à luz da ordem que provém do Direito Internacional Público. O Direito Internacional Privado tolera a diversidade, aceita as diferenças, une as pessoas. Por isso deve ser abertamente compreendido, sem amarrações e à luz da ordem do dia relativa aos direitos humanos. Sua aplicação, entretanto, há de ser jurídica, legal lato sensu, com critérios sólidos, sem invencionismos; não há livre convencimento na aplicação das normas do Direito Internacional Privado, senão aplicação das normas conflituais internas ou internacionais, pautadas nos valores constitucionais e/ou internacionais. O que deve haver é respeito às ordens estabelecidas e à lei estrangeira indicada, se não operar qualquer corte de efeitos, evidentemente (v.g., ordem pública). Um desses critérios consiste em seguir o estabelecido pelo Direito Internacional Público no que tange aos Estados-partes dos tratados uniformizadores, que, é verdade, não são muitos, mas, quando existentes, auxiliam o juiz na decisão correta dos casos concretos. Percebi que a falta de conhecimento de muitos jusprivatistas internacionais sobre princípios elementares do Direito Internacional Público gera confusões de toda ordem quando da aplicação de tratados contrários às leis internas de Direito Internacional Privado. Não se pode, evidentemente, deixar cair o leitor em equívocos dessa ordem. Por isso o trabalho em fazer compreender como deve agir o juiz em situações tais, sem titubeios.
Ao escrever a Parte Especial do Direito Internacional Privado brasileiro, me deparei, de início, em meio a verdadeiro caos. Posições díspares e jurisprudência (que jurisprudência?) sem qualquer solidez. A primeira meta a traçar foi seguir uma ordem própria no trato dos temas, distinta da ordem temática estabelecida pela LINDB, não obstante suas regras conflituais terem sido completamente estudadas. Em vez de se investigar o direito de família (art. 7º), os bens (art. 8º), as obrigações (art. 9º), o direito das sucessões (art. 10) e o estatuto das pessoas jurídicas (art. 11) nessa exata ordem, iniciei o percurso analisando os bens (Cap. I), posteriormente o direito de família (Cap. II) e dassucessões (Cap. III), passando pelas obrigações e contratos (Cap. IV) e findando com o estatuto das pessoas jurídicas (Cap. V). Essa a correta ordem do caminho a seguir, não a da LINDB, menos exata e precisa da que deveria ser.
Não lecionei, por outro lado, história do direito ao meu estimado leitor, como fazem inúmeros manuais de Direito Internacional Privado no Brasil. Todos já sabem do valor de Savigny para a matéria, mesmo os mais neófitos; desnecessária a repetição. Já se sabe, da mesma forma, o que pensavam os estatutários, e não se pode mais cansar o estudante com a história dessas escolas. Não que a história de um instituto ou disciplina não seja importante. Apenas não foi o critério que se empreendeu para levar a cabo o nosso estudo. Inventário inútil de institutos passados também não se fez. Fez-se, sim, doutrina; aquela que resolve (ou ao menos pretende resolver, com certa pretensão) os problemas de Direito Internacional Privado apresentados ao juiz do foro. Essa a missão a que me propus realizar, espero que com êxito.
Faço votos de que o Direito Internacional Privado brasileiro possa avançar mais e que o nosso país, continental que é, passe a valorizar os temas à disciplina relativos. O caos pode transformar-se em ordem, e o Poder Judiciário, por sua vez, resolver criteriosamente os casos concretos interconectados, com o auxílio de sólida doutrina. O tempo dirá se avançamos.
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