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Decodificando o Código Civil (15): O (nebuloso) fim da personalidade da pessoa natural (parte 1)
Felipe Quintella
18/04/2017
Depois de termos enfrentado a complexa temática da início da personalidade da pessoa natural, passemos ao tema do seu fim. Trata-se de outro desafio criado pelo Código Civil.
Conforme o art. 6º do Código, “a existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva”.
A princípio, a primeira parte do comando parece cristalina: o fim da personalidade da pessoa natural ocorre por ocasião da morte.
Todavia, ao contrário do que parece, o tema é extremamente intrincado, sobretudo quando são levados em conta os avanços da medicina contemporânea. Sabe-se, hoje, que a morte constitui, na verdade, um processo, e não um evento que acontece em um único instante. O corpo humano morre aos poucos. (E alguns ainda acrescentariam: desde o dia em que nascemos…)
Quando da promulgação do Código Civil de 1916, cujo art. 10 foi a fonte do atual art. 6º, o assunto não suscitava maiores dificuldades. Ao comentar o preceito, tanto em sua obra de comentários ao Código Civil, quanto em seu livro de Teoria Geral, Clovis Bevilaqua apenas reforçou que a legislação brasileira não acolhera a morte civil do Direito antigo.[1]
Mais tarde, ao longo do século XX, a doutrina passaria a complementar a regra, esclarecendo que a morte a que se referia o art. 10 do Código de 1916 era a morte cerebral, ou encefálica. Não seria determinante o momento em que o coração para de funcionar, ou em que a pessoa para de respirar. Mas o momento em que se encerram os processos cerebrais. É o que ainda se encontra nos livros de Direito Civil até hoje. E, confesso, é o que ainda faz mais sentido para mim.
Tal entendimento, atualmente, encontra respaldo na Lei nº 9.434/97 – Lei de Transplantes —, a qual, tangenciando o assunto, determina, em seu art. 3º, que:
Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.
Atualmente, o ato do CFM que estabelece os critérios para apuração da morte encefálica é a Resolução nº 1.480/97.
No entanto, ao se esmiuçar o assunto, percebe-se que não se trata de tema tão simples, nem do ponto de vista médico — o que é a morte encefálica —, nem do ponto de vista jurídico — quando se encerra a personalidade da pessoa natural.
Primeiramente, porque, a despeito de com frequência nos referirmos ao encerramento da atividade cerebral como morte encefálica, o caso não é propriamente de sinonímia, mas de metonímia.
Veja, por curiosidade, o que consta em um artigo informativo publicado em um portal médico:
Morte cerebral, mais corretamente chamada de morte encefálica, corresponde à perda total, definitiva e irreversível das funções do tronco cerebral, que faz parte do encéfalo. O encéfalo, por sua vez, é constituído pelo diencéfalo, cérebro, cerebelo e tronco encefálico, onde estão o mesencéfalo, a ponte e o bulbo.[2]
O trecho é bem curioso e ilustrativo do fato. Inicialmente, afirma-se que a morte cerebral é mais corretamente denominada morte encefálica. Na sequência, porém, explica-se que o cérebro é apenas um dos órgãos que compõem o encéfalo.
Eis, aí, um primeiro ponto relevante. Ao se consultarem fontes científicas médicas, a distinção entre a morte do cérebro e a morte encefálica ganha complexidade. E, em casos recentemente relatados, ocorreu a morte do cérebro sem a morte encefálica imediata. Ademais, chamaram atenção, também recentemente, casos de mulheres grávidas com diagnóstico de morte cerebral “mantidas vivas” — para se utilizar a expressão geralmente empregada nas narrativas — para que a gestação pudesse prosseguir. O mais recente de que se tem notícia foi o da jovem Frankielen da Silva Zampoli, ocorrido no Paraná, entre o fim de 2016 e o início de 2017.
Prosseguiremos na decodificação deste assunto na semana que vem.
[1] BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. Vol. I. 3. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p. 196-198; Teoria Geral do Direito Civil. Ed. especial. Campinas: Red Livros, p. 159-161.
[2] Disponível em: <http://www.abc.med.br/p/sinais.-sintomas-e-doencas/564197/morte+cerebral+ou+morte+encefalica+o+que+e.htm>. Acesso em: 06 abr. 2017.
Veja também:
- Decodificando o Co?digo Civil (14) – Pessoa, personalidade e suscetibilidade para adquirir direitos (Parte 3)
- Decodificando o Código Civil (13): Pessoa, personalidade e suscetibilidade para adquirir direitos (parte 2)
- Repensando o Direito Civil brasileiro (16): Efeitos sucessórios da pluriparentalidade
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