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Unidunitê – escolhi salvar você!
Henderson Fürst
30/11/2016
Recentemente, tivemos mais uma (pseudo)polêmica nas redes sociais e, por isso, achei que seria apropriado esquadrinhar um pouco acerca dela: a enquete sobre quem se deveria salvar, um policial levemente ferido ou um traficante em estado grave.
Jogos que apresentam dilemas são bastante utilizados como forma de compreender paradigmas de resolução de problemas por determinadas culturas em momentos específicos.
Um bom exemplo que demonstra isso é o caso do trem descontrolado. Suponhamos um trem descontrolado que vá atingir fatalmente 5 pessoas que trabalham desprevenidas sobre a linha. É possível evitar a tragédia se acionar uma alavanca que leva o trem para outra linha, na qual ele atingirá apenas uma pessoa. O que você faria? Mudaria o trajeto e salvaria 5 pessoas matando aquela 1? Se sim, você estaria ao lado de 97% das pessoas que participaram de estudo sobre motivação e emoção na resolução de dilemas morais, conduzidos por Joshua Greene, professor de psicologia da Universidade de Harvard[1].
A base dessa análise é o utilitarismo, proposta no Século XIX por John Stuart Mill e com profunda influência nos nossos tempos. Grosso modo, deve-se optar pela atitude que resulta na maior felicidade para o maior número de pessoas. Simples, não? Nem sempre. E se falarmos em matar 1 milhão de pessoas para beneficiar 5 milhões? A situação se complica, e pode-se começar a buscar outras formas de justificar ou restringir a aplicação do utilitarismo. E se os 5 indivíduos fossem criminosos condenados à sentença perpétua e o indivíduo sozinho fosse o Papa? Sabe-se lá o que Sua Santidade estaria fazendo na linha do trem, mas serve apenas para exercitar os limites da argumentação.
No direito, o utilitarismo possui limites impostos por direitos fundamentais e direitos humanos, que possuem função contramajoritária, ou seja, ainda que a maioria da população pense uma coisa, os direitos fundamentais são oponíveis a tal posição para evitar um retrocesso no processo humanizatório em que estamos. Exemplificando: pesquisa feita pelo DataFolha em 2007 revelou que 55% da população brasileira votaria a favor da existência da pena de morte no Brasil.[2] Se essas pessoas todas se organizassem, colhessem assinaturas pedindo alteração constitucional para possibilitar a pena capital, elas conseguiriam? Não. Por que? Porque a vedação a essa pena é um direito que qualquer indivíduo tem para opor contra qualquer maioria que se forme – e por isso, no nosso caso, é inclusive uma cláusula pétrea.
Voltemos à questão dos dilemas. Eles são tão interessantes que dão até boas cenas de filmes. Veja-se que o “dilema dos prisioneiros” foi utilizado em Batman – o Cavaleiro das Trevas. Para quem não se lembra (e aqui faço um alerta de spoiler!), em determinando momento do filme o Coringa coloca explosivos em dois barcos, sendo que em um deles estão “civis inocentes” (terminologia utilizada no filme – se fosse brasileiro, provavelmente diriam “cidadãos de bem”…) e, em outro, indivíduos condenados pelos mais diversos crimes. O detonador dos explosivos de cada barco ficou com o barco oposto, e Coringa orienta ambos que às 00:00h ele explodirá ambos se, até lá, um deles não estiver já destruído. Ou seja, o barco que destruir o outro, estará livre. A hora chega e nenhum barco destrói o outro, a despeito das tentativas e desistências recíprocas.[3]
Nesses dois dilemas apresentados, temos a pergunta “a quem salvar?”, e neles testamos paradigmas e identificamos bases axiológicas ocultas, inclusive preconceitos.
Mas o que esses dilemas se diferem da polêmica enquete proposta?
Por causa do fator manejo de recursos escassos em saúde pública, num sistema universalista. Vamos por partes: (1) nosso sistema de saúde pública é universalista, ou seja, estabelece como princípio que todos tem o direito a ele, em qualquer estágio de qualquer doença, ou em atuação preventiva, ou ainda em situações eletivas relacionadas à saúde pública, como o planejamento familiar, cirurgias plásticas corretivas e afins; (2) Invariavelmente a mídia não especializada faz reportagens sobre a escassez de recursos na saúde pública e suas trágicas consequências, basta assistir a qualquer jornal em qualquer dia que se terá uma boa e triste amostra da realidade, a despeito de muitas conquistas.
Estamos tão anestesiados à realidade da falta de recursos que um dilema desses é normal, um pressuposto aceitável. O dilema, na verdade, não está entre salvar esse ou aquele, mas sim em porquê está faltando recursos num sistema de saúde pública universalista.
Em relação aos médicos, linha de frente cotidiana e anônima da escassez de recursos, enfrentando situações complexas como essa, a eles é vedado qualquer consideração acerca da pessoa do paciente no momento de escolher como empregar recursos. O Código de Ética Médica é bem claro nisso em seu Capítulo I.I:
I – A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.(grifei)
Com isso, não pode ser feita objeção de consciência por qualquer juízo de valor quanto ao paciente atendido, se não houver outro médico que possa atender o paciente ou quando a recusa possa trazer danos à saúde do paciente. Está bem claro isso no Capítulo I.VII do mesmo Código de Ética Médica:
“VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.”
Assim, se há apenas um médico diante dessa situação, a alocação de recursos não pode ser feita com base em qualquer característica profissional, social, criminal ou afim dos pacientes, mas em relação ao estado de saúde de cada qual – e a lógica “qual tem mais chances de sobrevivência” só se aplica quando ambos estão em igual situação de gravidade, o que não é o caso.
Há sistemas de saúde pública universalistas que admitem a possibilidade de colegiados regionais decidam acerca da alocação de recursos. Ou seja, se uma comunidade entender que pacientes com câncer de pulmão decorrente de tabaco não serão atendidos pelo sistema de saúde público porque assumiu os riscos da doença ao seguir fumando por décadas em vez de se submeter a um processo de recuperação, tais pacientes não serão contemplados por aquele sistema de saúde. Nesse caso, talvez poderia a população estabelecer que pessoas em situação de conflito com a lei não serão atendidas pelo sistema de saúde pública por problemas decorrentes desse conflito, tal como o traficante gravemente ferido.
Mas esse não é o caso brasileiro pois todos, inclusive o traficante gravemente ferido, tem direito à saúde. Isso faz parte do movimento de humanização da saúde, movimento paralelo e análogo à tomada de consciência de direitos humanos e consolidação de direitos fundamentais que aconteceu no Direito. E, se em matéria de direitos humanos se ouvem trocadilhos como “direitos dos manos” ou “direitos humanos para humanos direitos”, certamente que o movimento de humanização da medicina também passa por tentativas de retroatividade.
Pensar a ética e a bioética não é fácil, especialmente quando o sentimento de um contexto nos faz querer decidir de outra forma, e talvez por isso mesmo essas disciplinas sejam malditas. Mas os avanços no processo humanizatório só acontecem quando conseguirmos nos conscientizar de mecanismos que evitam retrocessos à barbárie, afinal “ninguém é uma pessoa se não for toda a humanidade”[4].
Fonte: Análise Jurídica
[1] Greene, J. D., Sommerville, R. B., Nystrom, L. E., Darley, J. M., & Cohen, J. D. (2001). An fMRI investigation of emotional engagement in moral judgment. Science, 293(5537), 2105–2108.
[2] Cf.: http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2007/04/1226739-aumenta-apoio-de-brasileiros-a-pena-de-morte.shtml
[3]BATMAN cavaleiro das trevas. Direção: Christopher Nolan. Produção: Emma Thomas, Charles Roven, Christopher Nolan, Los Angeles: Warner Bros. Entertainment, 2008, DVD 1 (152 min).
[4] Dito de Nkokolani. In: COUTO, Mia. A espada e a azagaia. São Paulo: Leya, 2016.
Veja também: