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Condomínio e Incorporação. 30 Anos
Caio Mário da Silva Pereira
04/11/2016
Fez 30 anos, em 16.12.94, que entrou em vigor a L. n. 4.591, dispondo sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias.
Neste ensejo, é bom recordar, posto que sumariamente, o regime anterior, os acontecimentos contemporâneos, o conteúdo socio-filosófico desse diploma e sua influência no desenvolvimento urbanístico.
Não vou, evidentemente, remontar à história remota do condomínio especial. Não se pode omitir, contudo, que no Direito Romano só se admitia a divisão dos edifícios por planos verticais, não sendo reconhecida, nas fontes, a repartição por planos horizontais.
Não posso, todavia, deslembrar que, não obstante a lógica dos princípios, já os problemas habitacionais afloravam na então capital do mundo, onde, nas fraldas do monte Aventino, foi permitido que o proprietário de estreita faixa de terra levantasse uma casa (por certo modesta) com a denominação de crypta, e sobre ela se erigisse uma edificação, apelidada de insula, formando ali uma superposição habitacional, estruturada sob forma de “servidão”.
Não é, contudo, o problema jurídico o que mais emerge. E sobretudo a questão social, retratada na habitação plebéia, que reflete o drama de todos os tempos, atormentando os que não têm moradia própria em confronto com os bafejados pela sorte de possuírem casa certa. O historiador Tácito (Anais, Livro XV, n. 41) depõe da existência destes tipos habitacionais, quando descreve, de forma dramática, o incêndio de Roma, ao que se diz mandado atear nos delírios do imperador Nero.
Não cabe reviver a polêmica travada pelos romancistas, na hermenêutica dos textos, a debaterem como se configurava o direito do habitante da crypta em confronto com o morador do cenáculo que ali habitasse. O que me atrai é o problema social que já naquele tempo, recuado de dois mil anos do nosso, aflorava então e se projetava no Direito Bizantino, quando o problema atraiu ainda mais a atenção e o estudo dos escritores, juristas e leigos, como depõe a documentação rica e segura coligida e ordenada pelo prof . Eduardo C. Silveira Marchi, em obra especializada (A Propriedade Horizontal no Direito Romano).
Passando por todo um largo período histórico, que atravessa a época medieval e chega à chamada Idade Moderna do Direito, eu me concentro, posto que em apanhado sinóptico, sobre o panorama brasileiro.
E, desde logo, me volto para o grande monumento legislativo que é o C. Civ. de 1916. A exemplo de outros Códigos modernos, nele se desconhece o condomínio por planos horizontais, apegado que se encontra à concepção clássica romana de divisão da terra por glebas e das casas divididas por planos verticais, de onde afloram as habitações “parede-meia”.
O problema cresceu entre nós, como alhures, no período após a Primeira Grande Guerra. E com ele os edifícios de vários andares.
Numa perspectiva histórico-econômica, pode-se mencionar como eclodiu nas grandes cidades. Surgiram os grandes edifícios divididos em apartamentos, sem correspondência com a idéia condominial. Um indivíduo de grandes recursos financeiros realizava a construção de um prédio de vários andares, em propriedade exclusiva, e alugava os apartamentos em que o mesmo se dividia, conservando, contudo, a propriedade sobre o todo, não obstante a utilização coletiva. A atividade prosperou e a idéia se desenvolveu. E nasceram então empresas com o mesmo objetivo e explorando o mesmo ramo de negócios.
Esta primeira fase, eu diria puramente “individualista”.
Foi a necessidade e a simultânea valorização dos terrenos que suscitou a construção vinculada à divisão dos edifícios por apartamentos, dotados de autonomia, suscitando o conceito condominial nas partes de utilidade comum, sem embargo da propriedade particular e exclusiva sobre as respectivas unidades.
O fenômeno ocorreu quase simultaneamente em vários países: na Itália em 1934; na França em 1938; no Chile em 1937; na China em 1929-31; no Uruguai em 1946; na Grécia em 1946; em Portugal em 1955; na Venezuela em 1957.
Foi neste período, que eu chamo de “especulativo”, que veio à luz o nosso D. n. 5.481, de 29.6.1928, precedido (ao que conheço) da Lei Belga de 1924 e do Código Mexicano, também de 1928.
Nossa lei, de notório pioneirismo pelo seu propósito e pelos seus efeitos, apresenta aspectos merecedores de atenção, nos seus pontos capitais.
Para permitir a alienação de unidades (ali qualificadas como “alienação parcial”) tinha a Lei em vista edifícios de dois ou mais pavimentos. Exigia fosse a construção de concreto armado ou material similar incombustível. Os apartamentos haveriam de ser isolados entre si, e deveriam conter pelo menos três peças. Seria designada cada unidade numericamente.
A originalidade situava-se em que o terreno e instalações seriam de uso comum dos condôminos ou ocupantes, constituindo coisa alienável pertencente a todos os proprietários. Subordinado, ainda, aos princípios do condomínio tradicional, se o proprietário de um apartamento pretendesse vendê-lo, era mister que obtivesse a anuência de todos, salvo se fosse esta dispensada previamente.
Sorrindo-lhes a perspectiva de bons negócios e ocorrendo o financiamento pelos Institutos e pela Caixa Econômica, surgiram os que se qualificavam como “incorporadores”. Na falta de definição legal e padronização, mesmo contratual, coube aos Tribunais construir a figura do incorporador – um misto de corretor, de construtor, de agenciador de financiamentos e, sobretudo, de aproximador de interessados na aquisição de unidades -, como analisei em todos os aspectos em meu livro Condominio e Incorporações (n. 120).
Esta fase consolidou e fez prosperar os “incorporadores” que muito concorreram para o desenvolvimento urbano, posto que entre eles despontavam alguns especuladores e aventureiros inescrupulosos.
A ausência de regulamentação específica gerou um sem número de prédios nas grandes cidades, muitos dos quais não chegavam a bom termo, e outros paravam nas estruturas de concreto, chegando alguns a se paralisarem apenas com as fundações.
Sob o império, ainda, do D. n. 5.481, de 1928, e havendo, como advogado, dado assistência a clientes envolvidos nos labirintos desoladores de empreendimentos inacabados, fui convidado para pronunciar conferência no Congresso Jurídico de Fortaleza (Ceará) ao ensejo da Comemoração do Centenário de nascimento de Clóvis Beviláqua, realizado de 4 a 10 de outubro de 1954. Teve ela por objeto e por título a “Propriedade Horizontal”.
Discorri longamente sobre o tema, elaborando tese que mereceu publicação na RF, vols. 185 e 186, 1959.
Daí resultou o meu livro Propriedade Horizontal (Ed. Forense, 1960), no qual procurei estabelecer as bases doutrinárias do instituto do condomínio especial dos edifícios de apartamentos e outros tipos de unidades autônomas. Sem a existência de uma dogmática legislativa, pois que vigia naquele tempo apenas o D. n. 5.481/28, tive de me valer de duas ordens de informações: de um lado os provimentos jurisprudenciais, naturalmente vacilantes; e de outro lado a minha experiência profissional, alimentada por situações conflituosas, que colocavam frente a frente construtores ousados e adquirentes otimistas, todos vivendo a crença de que empreendimentos imobiliários eram fonte de receita para uns e esperança de bons investimentos para outros. Nesse livro, já eu esboçara a “natureza jurídica da propriedade horizontal” (Capítulo IH, ns. 24 e segs.).
Como teria de acontecer, veio a inevitável crise no setor.
Diminuíram ainda mais os financiamentos e se reduziram conseguintemente as construções. À procura de candidatos, alguns incorporadores de então ofereciam apartamentos por preços que não cobriam os custos, sacrificando as esperanças, ao mesmo tempo que provocavam conflitos entre incorporadores e adquirentes.
As grandes cidades foram povoadas de esqueletos de concreto, atestando a insegurança do mercado.
O resultado não se fez esperar: o desabastecimento; a procura por unidades a alugar; a alta dos preços.
Nessa hora não faltam medidas governamentais ilusórias, culminando em Decreto baixado pelo então Presidente da República -João Goulart -, determinando compulsoriamente o aluguel de apartamentos, tal como ocorrera em alguns países da Europa nos anos que se seguiram ao término da Segundo Mundial, onde o proprietário não tinha liberdade de escolha do locatário, sujeitando-se a aceitar o que lhe fosse imposto pela autoridade administrativa.
Trata-se do D. n. 53.702, de 14.3.64, o qual, entre outras disposições, definia (no art. 32) como contravenção à Lei da Economia Popular (L. n. 1.521, de 1951) ter prédio vazio por mais de 30 dias, havendo pretendente que oferecesse, como garantia da locação, importância correspondente a três meses de aluguel.
Em intervenção arbitrária na liberdade de contratar e autêntico atentado ao direito de propriedade, este mesmo Decreto dispunha que o “Comissariado de Defesa da Economia Popular”, dentro de 90 dias, enviaria ao Ministério da Justiça a relação dos prédios e apartamentos desocupados, para estudo das providências necessárias à desapropriação por interesse social (art. 59).
Esse Decreto jamais veio a se aplicar, aniquilado pela eclosão do movimento revolucionário de 31.3.64.
Tudo ilusório. Como tenho proclamado muitas vezes, é enganoso pretender a solução dos problemas sociais a golpes de leis.
Com o advento da Revolução de 1964, entendeu o primeiro Governo Revolucionário ser conveniente voltar suas vistas para este problema.
Fui então incumbido de elaborar Anteprojeto de lei que disciplinasse as “incorporações imobiliárias”.
Enxergando-o de perto, tomei a deliberação de associá-lo ao ordenamento das relações condominiais. Elaborei, portanto, um projeto abrangendo as duas matérias.
Ao entregá-lo ao Presidente Castelo Branco, e a uma indagação sua, tive de explicar por que razão, se encarregado de redigir normas referentes às incorporações, eu o ampliara ao condomínio.
Aceito o esclarecimento, o meu projeto foi submetido ao Congresso.
Não lhe faltaram resistências. Pessoas interessadas chegaram a sugerir a sua retirada, o que não ocorreu porque o Ministro da Justiça, Milton Campos, resistiu, com um argumento simples e democrático: se se entendesse que o projeto não satisfazia às exigências do momento, o Poder Legislativo, em pleno funcionamento, poderia completar as suas falhas e emendar suas imperfeições.
Aprovado, foi convertido na L. n. 4.591, de 16.12.64.
Ao termo das três décadas de aplicação, cabe-me dizer que, na elaboração do meu trabalho, tivera em vista a necessidade premente de compor conflito entre a idéia individualista e as imposições do social, entre os interesses privados de uns, e os anseios coletivos. A nova lei haveria de imprimir ordem às incorporações, assegurando o direito dos verdadeiros incorporadores, reprimir a especulação dos aventureiros e inescrupulosos, reconhecer os direitos dos condôminos, estabelecer normas de convivência nos condomínios e especialmente definir direitos e deveres de todos. Não poderia deixar de atender ao objetivo das boas leis. Não lhe faltariam normas punitivas para coibir abusos dos construtores infiéis e ao mesmo tempo policiar as inadimplências dos adquirentes recalcitrantes.
Com estes objetivos ambiciosos, a Lei entrou em vigor.
Na qualidade de autor do Projeto, realizei conferências e participei de seminários. Expliquei a Lei e as suas finalidades. Efetuei um trabalho pedagógico. E não faltou mesmo, em algumas oportunidades, quem me indagasse como se poderia proceder para fugir do que chamavam “os rigores da nova lei”. Ao que respondia eu que esclareceria o seu funcionamento e orientaria a sua aplicação. Mas não conhecia procedimentos para burlar a sua incidência. Mostrava, ou tentava mostrar que o objetivo do novo diploma era extinguir o caos reinante no setor imobiliário.
Ao falar sobre a L. n. 4.591/64, cabe-me lembrar os princípios fundamentais de seu contexto e os elementos que a caracterizam.
Desde logo, vale caracterizar a natureza jurídica do condomínio em edifícios coletivos, sejam residenciais, profissionais ou comerciais.
Não obstante possíveis divergências doutrinárias e jurisprudenciais, a essência do novo condomínio decorre do que dispõem os dois primeiros artigos desta lei.
A substância desse condomínio é a simbiose orgânica da propriedade exclusiva da unidade, com todos os atributos do direito de propriedade, e a co-propriedade sobre as partes e coisas comuns do edifício. Sem esta configuração, inexiste o condomínio nos edifícios coletivos. A L. n. 4.591/64 deixou-o bem claro no art. 1º, § 2º:
“A cada unidade caberá, como parte inseparável, uma fração ideal do terreno e coisas comuns, expressa sob forma decimal ou ordinária”.
O conceito encontrou, contudo, certa oposição. Ao ser elaborado o Projeto de C. Civ. de 1975 (Projeto 634-B), já aprovado pela Câmara dos Deputados e presentemente em tramitação lenta no Senado Federal, a Comissão redigiu o dispositivo definidor (que é o art. 1.331) em termos que suscitam dúvidas. Efetivamente, o projetista de 1975 assim se expressou:
“Pode haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condôminos”.
Tenho sempre criticado esta redação, porque, ao dizer que “pode haver”, levanta no espírito do aplicador ou do intérprete o argumento contrário. Se o Legislador do condomínio diz que “pode haver”, está admitindo que “pode não haver”. Isto é inexato. O condomínio tradicional comporta a idéia da coexistência de alguma parte que se não comunica. A propriedade horizontal, ao revés, é incompatível com a exceção. O edifício coletivo somente se configura, como tal, em regime peculiar. A unidade pertencerá a cada titular, em propriedade exclusiva, ao mesmo tempo que das partes e coisas comuns são titulares todos em co-propriedade. Somente pode subsistir o regime jurídico do edifício coletivo na convivência das duas situações jurídicas: propriedade exclusiva sobre cada unidade e condomínio sobre as partes e coisas comuns. Correta é a linguagem da L. n. 4.591/64, correta e positiva.
Outra peculiaridade desse novo condomínio é a perpetuidade. O condomínio tradicional é transitório por natureza. É temporário, qualquer que seja a sua origem ou causa.
“A todo tempo será lícito ao condômino exigir a divisão da coisa comum” (C. Civ., art. 629).
Esta transitoriedade é milenar. Planta suas raízes no Direito Romano, onde se cultiva a ação divisória – actio communi dividundo, de plena ancianidade.
Se os consortes acordarem ou o doador ou testador determinar que a coisa fique indivisa, não poderá a indivisão prevalecer por mais de cinco anos, embora possa ser prorrogada (art. 629, parág. único e art. 630 do C. Civ.). Vale dizer: qualquer declaração de vontade em contrário não prevalecerá por duração maior de cinco anos.
Uma terceira idéia-força, dominante do condomínio especial, é a indissolubilidade. Aí está a própria razão existencial. Se pudesse cessar, seria a propriedade horizontal mesma que desapareceria.
Outra inovação trazida pela L. n. 4.591/64 foi a obrigatoriedade da Convenção do Condomínio.
No regime do D. n. 5.481/28, era livre a sua elaboração. Edifícios construídos antes da Lei do Condomínio e Incorporações ainda subsistem sem Convenção ou Regulamento, o que cria enormes dificuldades para a solução de qualquer questão surgida, ou qualquer pendência entre os consortes.
Com efeito, o caráter normativo da Convenção é pacificamente reconhecido em doutrina, disse em meu livro Condomínio e Incorporações (n. 66) como pelos Tribunais (RF, 165/168). Impõe ela uma norma de conduta para todos os comunheiros, e se estende a quem quer que adentre na comunidade, em caráter permanente (locatários, sucessores dos condôminos), como também aos que eventualmente ingressem no complexo condominial (empregados, visitantes, entregadores de encomendas etc). Seu fundamento, originariamente contratualista, é hoje proclamado como norma estatutária. Tal qual as leis que têm efeito coercitivo geral e permanente (Clóvis Beviláqua, Teoria Geral do Direito Civil, n. 3), também as normas condominiais se enriquecem de efeito obrigatório como fonte de direito, pertencente a essa comunidade (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. I, n. 9; Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil, ns. 24 e segs.; Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, n. 18; Brethe de La Gressaye et Laborde Lacoste, Introduction Générale à l’Etude du Droit, ns. 207 e segs.; Leon Duguit, Traité de Droit Constitutionnel, vol. I, §§ 30 e segs.; Gaston Jèze, Princípios Generales dei Derecho Administrativo, vol. I, ps. 29 e segs.).
O que, em verdade, é especialmente relevante na Convenção do Condomínio é a sua notória projeção no aspecto social as relações intercondominiais.
A lei, em sentido global, a par de seu caráter disciplinar e até repressivo, é sem nenhuma dúvida um fator de harmonização na sociedade. Reprimindo os excessos e limitando as ambições descontroladas, é elemento de paz entre os homens.
Projetada a idéia para o plano mais reduzido de uma comunidade menor, e como seu instrumento normativo, a Convenção contém os comunheiros nos limites da convivência pacífica. Ao impor a todos os membros da comunidade condominial os limites de sua conduta, concorre a Convenção para a vida harmônica de todos, no respeito aos direitos de cada um.
Assim sendo, a L. n. 4.591/64 encerra uma das suas mais significativas propostas: acentuar a predominância do “social” no complexo indivíduo/comunidade.
Outra contribuição grandemente significativa da Lei do Condomínio foi sem dúvida a criação institucional da Comissão de Representantes, de categorização jurídica.
Merece atenção o cuidado do legislador de 1964 com os contratos de construção, intimamente ligados aos de incorporação. De um lado o de empreitada, que pode ser a preço fixo ou a preço reajustável (art. 55), este mais compatível com a flutuação dos valores monetários; e de outro lado o da “construção por administração” (art. 58), que ganhou foros de maior aceitação. Foi minuciosa no seu desenvolvimento, embora dê muita ênfase à atuação da Comissão de Representantes, que, levada ao extremo, muitas vezes cria problemas para os adquirentes, quando aprova alterações que muitos condôminos consideram gravosas. E freqüente, ao ser organizada uma incorporação, o empreendedor designar desde logo a Comissão, composta de pessoas de sua confiança, e mais tarde, no curso da construção, os adquirentes têm de se sujeitar às suas deliberações, de certo modo indefesos. É certo que a L. n. 4.591/64 investe a Assembléia de poderes revocatorios das suas decisões (art. 50, § 2-), conforme observei em meu livro Condomínio e Incorporações, n. 153, lembrando, contudo, as dificuldades de fazê-lo. Caberia dotar os condôminos de um poder de veto mais eficaz, naqueles casos em que seus interesses são mais comprometidos.
Dando ênfase à incorporação, institucionalizou a figura do “incorporador”.
“É o incorporador que nem a L. n. 5.481/28, sobre condomínio de apartamentos, mencionava em nenhum momento, nem o C. Civ. conheceu. Sua aparição deve-se à generalização do negócio e à proliferação de edifícios em todas as grandes cidades. Pouco a pouco foram surgindo pessoas que realizavam uma atividade peculiar, ligada a estes empreendimentos, e com o tempo constituiu-se a figura, que se batizou com o nome de incorporador, gostou do apelido e ficou” (Condomínio e Incorporações, n. 120).
Nascido de uma atividade econômica, tornou-se inequivocamente um empresário, cuja atividade é plenamente conhecida, à qual se pode estender o conceito de “empresa”, tal como exprime o art. 2º da CLT. E a ele se volta a L. n. 4.591/64.
Até então, qualquer especulador se arvorava em titular dessa qualidade. Mas veio a L. n. 4.591/64 e estabeleceu as condições legais para o seu exercício (art. 29), e declarou coercitivamente:
“Nenhuma incorporação poderá ser proposta à venda sem a indicação expressa do incorporador, devendo também seu nome permanecer indicado ostensivamente no local da construção” (art. 31, § 2º).
Das exigências formais para o lançamento de uma incorporação imobiliária, desdobradas nas alíneas do art. 32, e da sua normatividade, com efeito desponta uma atividade empresarial reconhecida, com a imposição de responsabilidades ordenatórias do empreendimento.
Do contexto da Lei Condominial resultam direitos e deveres de uma parte e de outra, em íntima correlação e correspectividade. E em conseqüência vem à tona das relações dos interessados na sua constituição a figura típica do contrato de incorporação, presente em todos os empreendimentos do gênero. Por ele, cada um conhece os seus direitos e reconhece os seus deveres.
Com essas e outras providências, a incorporação imobiliária, que se desenvolvera na quase-penumbra de uma atividade paralegal ou às vezes infralegal, ao ser acoplada no condomínio, incorpora-se na luz da juridicidade, e passa a ser legalmente reconhecida e disciplinada, oferecendo, aos candidatos à aquisição de unidades em edifícios coletivos, a segurança que permitiu o seu crescimento, e a confiança que, se não imperou no primeiro momento, é inegável que concorreu para o desenvolvimento urbano, desde as grandes e populosas capitais, até os mais modestos burgos interioranos. Para isto concorreu, também, haver o contrato de incorporação ter-se transformado em contrato típico.
Enorme, sem dúvida, a função social da incorporação imobiliária.
Já se tem dito e se tem escrito que “a estrada cria o tipo social”. Pode-se igualmente dizer que o edifício coletivo gera o “tipo social urbano”.
Foi a Lei do Condomínio e Incorporações que delineou toda a categoria habitacional moderna.
Foi esta Lei, inspirada no propósito de resolver uma grave problemática habitacional e dirimir os conflitos oriundos do relacionamento entre os moradores dos conglomerados urbanos, que se capitaliza com pretensões harmonizantes.
Ao redigir o Anteprojeto, tive a intuição de que seu objetivo iria traçar uma nova era na vida econômica e social das cidades.
Paralelamente trabalhei na elaboração de outro diploma altamente significativo, que foi a lei das locações, como depõe o Embaixador Roberto Campos, então Ministro do Planejamento, em seu valioso livro Lanterna na Popa.
O Projeto que elaborei procurava conciliar interesses de proprietários e locatários. Permitia a livre negociação dos imóveis vagos e estabelecia o reajuste dos aluguéis com base no imposto predial. Discordei do Projeto elaborado pelo Ministério do Planejamento, especialmente pelos reajustes mediante utilização de tabelas altamente técnicas, elaboradas pelo ilustre economista Paulo de Assis Ribeiro, as quais eu considerava de difícil aplicação nas ações judiciais. Foi, aliás, o que veio a ocorrer, logo depois, substituídas por critérios mais simples.
Vencido nas minhas proposições harmonizantes entre senhorios e inquilinos, nem por isto os meus propósitos se viram frustrados.
Nesse período de três décadas a estrutura jurídica da Nação prosperou desengañadamente. A concepção socializante de estabelecer a justiça comutativa nas avenças, que eu preconizava em meu livro Lesão nos Contratos, convalidou-se. A Lei do Parcelamento do Solo (L. n. 6.766, de 1979); o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (L. n. 8.078, de 1990); a nova Lei da Locação dos Prédios Urbanos (L. n. 8.245, de 18.10.91); o Estatuto da Criança e do Adolescente (L. n. 8.069, de 1990); e, sobretudo, a CF de 1988, completada por algumas Leis Complementares que a têm regulamentado, se bem que insuficientes: todo esse complexo legislativo, enriquecido pela elaboração pretoriana, tem procurado enfrentar os problemas cada vez mais numerosos que pontilham inevitavelmente os relacionamentos sociais em um país que se esforça para atingir estágio de “país desenvolvido”.
Embora se não refira especificamente ao condomínio e incorporações, a L. n. 8.078, de 11.9.90 (Código de Proteção e Defesa do Consumidor), percutiu indiretamente sobre o assunto. Introduziu na contratualística brasileira uma nova filosofia, marcada particularmente pela predominância do princípio de ordem pública sobre os interesses particulares, a que eu já me referia em termos gerais em minhas Instituições de Direito Civil, vol. III, n. 186, e em termos de dirigismo contratual, como no plano específico observa com toda procedência Marcelo Terra (Temas Jurídicos fios Negócios Imobiliários, ps. 203 e segs.). Esta Lei oferece um conceito mais amplo das figuras jurídicas “fornecedor” e “consumidor”, a que não podem escapar quem oferece unidades à venda (incorporador) e adquirente de unidades imobiliárias ou candidato à sua aquisição (consumidor). Reforça a idéia da responsabilidade objetiva desvinculada da “doutrina da culpa” que impera no C. Civ. Volta suas vistas para o “contrato de adesão”, que define em o art. 54. Ao cogitar da hermenêutica da vontade contratual, reforça o princípio protecionista, mandando que as cláusulas contratuais se interpretem favoravelmente ao consumidor (art. 47), e sobretudo impõe na redação dos contratos a obrigação de dar a este oportunidade de tomar pleno conhecimento do seu conteúdo, condenando aquelas cláusulas de difícil compreensão, o que não deixa de contemplar o adquirente de apartamento, muitas vezes perplexo em face da complexidade dos contratos de incorporação ou construção, cujo sentido e alcance escapa ao entendimento do público consumidor (adquirente). Protege este último contra as cláusulas abusivas e mais vantajosas para o contratante que as elabora ou redige.
Eu já tenho ouvido, não sem um certo grão de vaidade paternal, que a Lei do Condomínio e Incorporações foi um divisor de águas no desenvolvimento urbano, separando as duas eras, do “antes” e do “depois” da L. n. 4.591/64.
Reconheço com humildade que a Lei do Condomínio e Incorporações não se pode enfeitar com as galas de um diploma perfeito. Obra humana que é, traz o inequívoco selo das conjunturas humanas.
Mas não é despiciendo recordar que no ciclo das transformações por que passa o mundo econômico e jurídico dos dias que correm, e especialmente o nosso país, esta Lei tenha sobrevivido por 30 anos, cumprindo a sua função disciplinadora de comunidades marcadas por convivências conflitivas, e reguladora de uma atividade complexa.
Claro é que nos seus preceitos sempre assentou, e ainda assenta, o manancial dos princípios que permitem a construção de uma doutrina nitidamente brasileira, que abriga o condomínio especial dos edifícios e das edificações, efetuando função pedagógica de real afirmação.
Ao se fechar o ciclo de três décadas de vigência, e na perspectiva do tempo, é válida a idéia de debatê-la e complementá-la no esforço hermenêutico e construtivo, a que não falta a palavra dos tribunais e a atuação participativa dos profissionais da atividade imobiliária. E será este valioso adminículo que ainda mais contribuirá para o aperfeiçoamento do seu elevado conteúdo social.