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Breves reflexões sobre o efeito do suicídio no seguro de vida

SEGURO DE VIDA

SUICÍDIO

Marco Aurélio Bezerra de Melo

Marco Aurélio Bezerra de Melo

13/09/2016

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Segundo estudos da Organização Mundial de Saúde (OMS), o suicídio (sui – si mesmo + caederes – ato de matar) é apontado como um caso de saúde pública que em 2012 ceifou 804 mil vidas no mundo, sendo o 15º gênero de óbito mais importante e entre as mortes violentas, é responsável por 56% dos casos. Estima-se que são 2200 por dia e a cada quarenta segundos uma pessoa se suicida. No ano da pesquisa, em números absolutos, o Brasil ocupou a oitava posição com 11.821 óbitos[1], sendo de lamentar o pouco caso que as autoridades destinam a tão delicado tema, merecendo destaque o excelente trabalho dos Centros de Valorização da Vida (CVV), instituição desvinculada de religião ou governo que conta exclusivamente com voluntários para, com métodos científicos de persuasão, tentar evitar essa lamentável forma de se despedir da existência física por meio da autoeliminação.

Pode ser identificado como uma doença da alma, na situação segundo a qual uma pessoa imagina que o próprio extermínio é a única forma de fazer cessar a dor que o acomete. Pode ter como estopim uma doença física, mas será sempre um mal psíquico como, por exemplo, a depressão, mal extremamente perigoso e que pode estar por trás desse ato brutal de aniquilamento da vida.

Na seara jurídica, sempre existiu discussão se diante do suicídio, a seguradora deveria ser obrigada a pagar o capital estipulado para o beneficiário pelo segurado suicida ou apenas a reserva técnica formada com os depósitos do segurado a fim de evitar o enriquecimento sem causa.

A indagação, sinteticamente, é a seguinte: será justo a pessoa fazer um seguro de vida, atentar definitivamente contra a sua vida e mesmo assim, o contrato produzir os seus efeitos e obrigar a seguradora a realizar o pagamento do capital estipulado na apólice em favor do beneficiário? Ora, não seria o suicídio um meio de retirar a álea do incertus quam que marca o termo da morte, desvirtuando dos fins do contrato de seguro? O acaso ou casualidade do sinistro não estará descaracterizado por um ato próprio do segurado, responsável único pela sua ocorrência?

O artigo 1440 do Código Civil de 1916 entendia pela possibilidade de que a vida e as faculdades humanas fossem objeto segurável para o caso de morte involuntária, estabelecendo, por outro lado, que se considerava morte voluntária aquela que decorresse de duelo, assim como a que decorresse de suicídio premeditado.

Em que pese a equivocidade que pode trazer, o entendimento jurídico da expressão “suicídio premeditado” gira em torno da ideia de afastar o dever de pagar o capital estipulado ao beneficiário quando ficar patente que o segurado agiu dolosamente ao contratar um seguro de vida, já trazendo previamente em sua mente que após o aperfeiçoamento do contrato, iria dar fim à sua existência, tomando de surpresa o mutualismo e a análise do risco que fora realizado pela seguradora, a partir do perfil do segurado. De fato, o suicídio rompe qualquer possível expectativa da seguradora e desequilibra, de certa forma, a economia do contrato.

Ao tempo da vigência do Código Civil de 1916, as cortes superiores do Supremo Tribunal Federal pelo verbete sumular nº 105[2] (1963) e do Superior Tribunal de Justiça pelo de nº 61[3] (1992) estavam em harmonia no sentido da defesa de que a seguradora estaria obrigada a cobrir o suicídio não premeditado e que a prova da premeditação incumbia a ela.

O Código Civil atual seguiu a concepção do Código Civil Italiano que em seu artigo 1723 fixa um critério temporal de dois anos para dizer que se o segurado se suicidar nesse lapso de tempo a contar da celebração do contrato, o suicídio foi premeditado, desobrigando a seguradora do pagamento. Nessa esteira, o artigo 798 do Código Civil brasileiro reza que o beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, ao passo que afirma a nulidade textual de cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do segurado após o referido período.

A entrada em vigor desse dispositivo tem desafiado a doutrina e a jurisprudência, sendo possível detectar três linhas de defesa sobre a melhor interpretação do dispositivo.

A primeira e mais óbvia é a de simplesmente entender que o direito brasileiro cria um critério objetivo temporal, qual seja, dois anos para fixar quando há premeditação. Se o suicídio se der antes desse tempo, significa, pela dogmatismo frio da lei que houve premeditação e não haverá o dever de pagar o capital estipulado, apenas a reserva matemática que, porventura, exista. Por outro lado, se o suicídio ocorrer após esse prazo, não houve premeditação e o beneficiário terá direito ao capital segurado, sendo nula de pleno direito a estipulação contratual que afaste o direito ao seguro nesse caso[4]. Esse raciocínio é extraído da interpretação literal da norma jurídica que seria cogente e não permitiria ao intérprete diferente compreensão.

Há vários precedentes jurisprudenciais[5], inclusive proferido, ainda que não unânime, pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça em Embargos de Divergência[6] nessa linha, além de importante apoio doutrinário[7]. Pontes de Miranda[8], ainda que tenha escrito o seu Tratado de Direito Privado antes do Código Civil de 2002, parece se afinar a essa linha de raciocínio, pois ao comentar o direito italiano, no qual o nosso seguiu à risca, declara que se o suicídio ocorrer no que chama de “período de carência” de dois anos previsto no artigo 1927 do Código Civil italiano a seguradora não ficará obrigada ao pagamento. Essa parece ser a posição predominante.

A segunda orientação entende que a lei mais não fez do que estabelecer o prazo de dois anos para que houvesse uma presunção relativa de premeditação do suicídio. Se o suicídio acontecer antes do referido lapso temporal, caberá ao beneficiário o ônus de provar que o suicídio não foi premeditado a fim de ter direito ao recebimento do seguro[9]. O enunciado nº 187 da III Jornada de Direito Civil[10] adotou esse posicionamento. Após o prazo de dois anos a seguradora sempre estaria obrigada ao pagamento.

A terceira corrente continua prestigiando as antigas súmulas de jurisprudência dos tribunais superiores, entendendo que o Código Civil prevê o prazo de dois anos para que a seguradora possa provar que o suicídio foi premeditado, ou seja, cabe a ela esse ônus, pois há em favor do segurado, ainda que tenha suicidado dentro do aludido lapso temporal, presunção de boa fé[11].

Caio Mário da Silva Pereira[12] que já trilhara esse caminho em seu anteprojeto de obrigações apresentado em 1963, diante da norma jurídica posta teve oportunidade de se posicionar no sentido de que a prova da premeditação por parte da seguradora é “imprescindível, sob pena de o segurador obter enriquecimento sem causa, diante das pesquisas da ciência no campo da medicina envolvendo a patologia da depressão.”.

Essa interpretação do artigo 798 do Código Civil se funda nos princípios da função social do contrato, da boa fé que se presume e com as diretrizes protetivas de índole constitucional prevista no Código de Defesa do Consumidor e ao mesmo tempo possibilita a que a seguradora prove a premeditação se o suicídio se der no prazo de dois anos a contar da celebração do contrato, respeitando a força obrigatória dos contratos e preservando a legítima expectativa do falecido contratante e do beneficiário. Assim, a possibilidade de não conseguir provar a premeditação dolosa se o suicídio ocorrer no prazo de dois anos é uma álea que deve ser considerada como tantas outras doenças que podem acometer o segurado dentro desse período de tempo, posto que o suicídio, antes de ser um ato doloso e de má fé, se apresenta como uma doença grave que culminou nesse ato absolutamente insano que há de encontrar uma causa patológica de ordem psíquica que o justifique.

Com todas as vênias, o critério objetivo temporal não nos parece adequado e o artigo 798 do Código Civil merece uma interpretação mais humanizada pelos princípios do direito das obrigações e menos literal, pois nada obsta que a pessoa faça um seguro de vida sem imaginar o suicídio, mas diante de uma prova severa imposta pela vida como desilusão amorosa, desemprego, perda de ente querido, drogadição, alcoolismo, depressão ou outro fato grave, resolva pôr fim à sua vida sem que se possa apontar nenhuma má fé.

Admitindo-se a judicialização da questão e diante da premissa hermenêutica da presunção relativa de boa fé do segurado, a má fé, isto é, a premeditação configura um fato extintivo do direito do autor e, sendo assim, ao menos como regra, tal prova competirá ao réu (art. 373, CPC), salvo se o magistrado, em decisão fundamentada, entender que diante das peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou excessiva dificuldade de cumprir o encargo, promova a inversão de tal ônus em homenagem à teoria da carga dinâmica da prova (art. 373, § 1º, CPC).

Em suma, a nosso viso, em regra, o ônus de provar a má fé do segurado, no prazo legal, com a premeditação dolosa de contratar o seguro para em seguida, promover o autoextermínio, é da seguradora, mas a dinâmica do caso concreto pode levar a que, na forma da lei processual, seja de competência do beneficiário provar que não houve premeditação do suicídio por parte do segurado.


[1] Maiores dados da OMS e do Ministério da Saúde podem ser colhidos no excelente livro de André Trigueiro: Viver é a melhor opção. A prevenção do suicídio no Brasil e no mundo. 2015, p. 17/39.
[2] Súmula 105 – Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio do segurado no período contratual de carência não exime o segurador do pagamento do seguro.
[3] Súmula 61 – O seguro de vida cobre o suicídio não premeditado.
[4] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. Contratos. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 395/396.
[5] Ação de cobrança – Seguro de vida em grupo – Suicídio do segurado – Contrato firmado na vigência do Código Civil de 2002 – Suicídio cometido dentro do lapso temporal de dois anos de vigência do seguro – incidência do art. 798 do CCB/2002 – Beneficiários que não têm direito ao recebimento da indenização – Norma cogente e inafastável – Sentença reformada. A nova disciplina dos contratos de seguro trazida pelo Código Civil de 2002 deve, sim, ser aplicada em consonância com os princípios e com as normas do CDC, para que se evitem abusos, mas isso não significa que possa o direito consumerista ser deturpado a fim de aniquilar artigo de lei também de finalidade pública e fito garantidor. Recurso provido. (TJPR, 9ª Câm. Cív., Ac. 9155, Rel. Des. Eugenio Achille Grandinetti, DJ: 20/06/2008).
Agravo regimental. Agravo regimental. Agravo de instrumento. Seguro de vida. Suicídio dentro do prazo de dois anos do início da vigência do seguro. Critério objetivo. Direito ao ressarcimento do montante da reserva técnica já formada. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça possui entendimento no sentido de que durante os dois primeiros anos de vigência do contrato do seguro de vida, o suicídio é risco não coberto, devendo ser observado o direito do beneficiário ao montante da reserva técnica já formada. Precedente da 2ª Seção (REsp 1.334.005/GO). 2. O art. 798 do Código Civil adotou critério objetivo temporal para determinar a cobertura relativa ao suicídio do segurado, afastando o critério subjetivo da premeditação. Após o período de carência de dois anos, portanto, a seguradora será obrigada a indenizar, mesmo diante da prova mais cabal de premeditação. 3. O valor da reserva técnica já formada deve ser acrescido de correção monetária a partir da data de contratação do seguro e juros de mora a partir da citação. 4. Agravo regimental parcialmente provido. (AgRg no AgRg no Ag 1320229/MG, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 01/09/2015, DJe 08/09/2015).
[6] Direito civil. Seguro de vida. Suicídio ocorrido antes de completados dois anos de vigência do contrato. Indenização indevida. Art. 798 do código civil. 1. De acordo com a redação do art. 798 do Código Civil de 2002, a seguradora não está obrigada a indenizar o suicídio ocorrido dentro dos dois primeiros anos do contrato. 2. O legislador estabeleceu critério objetivo para regular a matéria, tornando irrelevante a discussão a respeito da premeditação da morte, de modo a conferir maior segurança jurídica à relação havida entre os contratantes. 3. Agravo regimental provido. (AgRg nos EDcl nos EREsp 1076942/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi, rel. P/ acórdão Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Seção, julgado em 27/05/2015, DJe 15/06/2015).
[7] NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Vol. 3. Contratos. 7ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2013, p. 404; MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Vol. 3. Contratos. 7ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2013, p. 357/358, ALVES, Jones Figueirêdo. Código Civil Comentado. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 673.
[8] MIRANDA, Pontes. Francisco Cavalcanti Pontes. Tratado de Direito Privado.  Vol. 46. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 19.
[9] Nesse sentido: PASQUALOTTO, Adalberto. Contratos Nominados III. São Paulo: RT, 2008, p. 169; TZIRULNIK, Ernesto; Cavalcanti, Flávio de Queiroz B.; Pimentel, Ayrton. O Contrato de Seguro de acordo com o Novo Código Civil Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Roncarati Editora, 2016, p. 287.
[10] Enunciado 187 da III Jornada de Direito Civil do CJF/STJ: No contrato de seguro de vida, presume-se, de forma relativa, ser premeditado o suicídio cometido nos dois primeiros anos de vigência da cobertura, ressalvado ao beneficiário o ônus de demonstrar a ocorrência do chamado “suicídio involuntário.”.
[11] Informativo 470/2011. Terceira Turma. Seguro. Vida. Suicídio. Prova. Premeditação. Trata-se, na origem, de ação de cobrança objetivando receber indenização pelo suicídio de filho, que havia contratado seguro de vida com a recorrida. A questão consiste em saber se, nos termos do art. 798 do CC/2002, o cometimento de suicídio no período de até dois anos após a contratação de seguro de vida isenta a seguradora do pagamento da respectiva indenização. A Turma deu provimento ao recurso por entender que as regras concernentes aos contratos de seguro devem ser interpretadas sempre com base nos princípios de boa-fé e da lealdade contratual. A presunção de boa-fé deverá prevalecer sobre a exegese literal do referido artigo. Assim, lastreada naquele dispositivo legal, entendeu que, ultrapassados os dois anos, presumir-se-á que o suicídio não foi premeditado, mas o contrário não ocorre: se o ato foi cometido antes desse período, haverá necessidade de a seguradora provar a premeditação. O planejamento do ato suicida, para efeito de fraude contra o seguro, nunca poderá ser presumido. Aplica-se ao caso o princípio segundo o qual a boa-fé é sempre presumida, enquanto a má-fé deve ser comprovada. Logo, permanecem aplicáveis as Súmulas ns. 105-STF e 61-STJ. Daí, a Turma deu provimento ao recurso para julgar procedente o pedido e condenar a seguradora ao pagamento da indenização prevista no contrato firmado entre as partes, acrescido de correção monetária e juros legais a contar da citação. Precedente citado: REsp 1.077.342-MG, DJe 3/9/2010. REsp 1.188.091-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 26/4/2011.
[12]PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Contratos. Vol. III. 17ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2013, p. 429/430; GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. vol. 3. Contratos e Atos Unilaterais. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 525/526; CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 491/492; RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 13ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2013, p. 866; TARTUCE, Flávio. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. 10ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Método, 2015, p. 711/712.

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