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Política de Drogas: Dimensão Jurídico-constitucional do Problema
Leonardo Martins
08/09/2016
Preliminarmente: O Estado e a sociedade devem, eficazmente, coibir o acesso de crianças e adolescentes a qualquer substância que potencialmente cause dependência. Adultos devem ser constantemente esclarecidos quanto aos riscos de dependência e à própria saúde derivados do seu uso e abuso. Saudado dever ser o livre e esclarecido debate sobre a política de drogas.
O problema tem três principais dimensões: jurídico-constitucional; ético-moral como pressuposto da política legislativa; e macroeconômica/financeira. Enfrento aqui só a primeira. O pouco que há de debate sóbrio a respeito, concentrou-se, até hoje, na segunda e, com menos consequência, na terceira dimensão do problema. Reconhece-se a falência da política atual em razão de sua ineficácia. Mas o debate, carregado de pathos e moralidades, ignora que o parâmetro constitucional para uma avaliação da política é norma que consagra a liberdade individual. Afinal, a lei penal em vigor é constitucional? Uma resposta fundamentada pressupõe os três passos metodologicamente orientados dados a seguir.
I. O uso de substâncias definidas pela legislação ordinária como “drogas” é, como expressão da autodeterminação individual, prima facie protegido pelo art. 5°, caput da CF. Corresponde aos elementos típico-normativos da liberdade, tal qual constante naquele dispositivo da CF, dotado de supremacia no ordenamento jurídico nacional; sendo, portanto, parâmetro de controle da legislação repressora.
II. Ao prever penas privativas de liberdade para condutas de atendimento da demanda de consumo de drogas (indústria e comércio), o legislador penal intervém no livre exercício do direito fundamental à liberdade.
III. Questionável é se tal intervenção restaria justificada. Uma intervenção seria justificada, se pudesse ser fundada em um limite constitucional ao direito fundamental à liberdade (v. a seguir: 1.); e se tal limite fosse concretamente traçado mediante observância do limite recíproco da liberdade, metodologicamente orientado pelo princípio da proporcionalidade (2.).
1. Como o direito fundamental à liberdade do caput do art. 5° se submete a todas as reservas legais do art. 5°, alternativamente a direitos constitucionais colidentes, a legislação penal na espécie, Lei 11.343/2006, poderia representar tal limite constitucional à liberdade. A referida lei visa à proteção da saúde pública, como bem jurídico abstrato, cominando condutas individuais que, mesmo abstratamente, impliquem sua afetação. Trata-se, portanto, de uma hipótese legítima da configuração infraconstitucional do dever estatal de proteção da saúde pública como bem jurídico-constitucional.
2. Justificada restaria uma intervenção tão somente se o limite constitucional observasse o seu limite recíproco. Caso contrário, o específico vínculo do legislador penal não seria observado. Critério de aferição de sua observância é a proporcionalidade da intervenção.
Proporcional seria a legislação penal interventora no direito fundamental à liberdade, na acepção de autodeterminação se, como meio lícito (a seguir: 2.2), pudesse ser considerada adequada (2.3) e necessária (2.4) ao alcance de um propósito igualmente lícito, constitucionalmente falando (2.1).
2.1 O Propósito da intervenção é a promoção da saúde pública. Esta restaria abstratamente comprometida com o abuso das drogas ilícitas segundo a lei em tela. Reconhecidamente, as substâncias nela classificadas como drogas têm, em geral, o condão de causar dependência psíquica. Seu simples uso pode gerar certo impacto na saúde pública. Trata-se de um propósito não apenas lícito, mas cuja persecução também fora ordenada pelo constituinte no art. 196 da CF.
2.2 Dúvidas recaem sobre a licitude constitucional do meio de intervenção, notadamente quanto à sua constitucionalidade formal, uma vez que o legislador delegou ao MS o poder de definir o rol das drogas, no seu art. 1°, parágrafo único c.c. art. 66 da Lei 11.343/2006, chocando-se contra o princípio da essencialidade da reserva legal. Não obstante, deve-se avançar no exame, porque, em restando refutado o reconhecimento da adequação e proporcionalidade (método epistemológico da falsificação de Popper), o resultado do exame da licitude do meio tornar-se-ia despiciendo.
2.3 Adequado seria o meio de intervenção se houvesse uma relação entre a situação efetivamente criada pelo Estado a partir de sua utilização e a situação esperada em caso de alcance do propósito que repousasse sobre hipóteses comprovadas sobre a realidade empírica. Em estando presente as condições de realização de tal hipótese abstrata, o prognóstico do Estado-legislador penal restaria fundamentado. A adequação do meio deve ser afirmada a partir do método epistemológico da falsificação, que visa a superar o problema (dilema fundamental) do método indutivo. Em suma, adequado será o meio de intervenção enquanto não estiverem presentes fundamentos empíricos para sua refutação.
A política de repressão criminal com a tipificação de condutas relacionadas ao complexo “tráfico de drogas”, timidamente iniciada na década de 1940 durante a ditadura do Estado Novo, foi intensificada pela Lei 6.368/1976. Tratou-se da resposta do legislador brasileiro ao crescimento vertiginoso do abuso de substâncias estupefacientes no Brasil como em todo o mundo ocidental, ocorrido notadamente no final da década de 1960 (Guerra do Vietnã, contracultura etc.). O Presidente norte-americano republicano Nixon declarou sua célebre “war on drugs”: uma campanha internacional, principalmente na AL e Europa pela repressão ao tráfico internacional.
Estatísticas apontam para uma explosão do consumo de drogas a despeito e, principalmente, após a implementação das políticas repressivas (concomitantemente ao aumento do lucro do tráfico internacional de drogas). Esse reconhecimento empírico já é suficiente para refutar a hipótese da adequação. Acresçam-se as muitas mazelas sociopolíticas como o concomitante crescimento do crime organizado, com cada vez maior inserção no Estado, erodindo suas estruturas constitucionais. Também há um grande impacto negativo sobre a saúde pública derivado de drogas misturadas, de cada vez maior potencial viciante e ofensivo da saúde pública (surgimento do crack e outras drogas mais nocivas), a tal ponto de termos de, seriamente, considerar se a tal guerra iniciada no início da década de 1970 por um corrupto presidente norte-americano; no Brasil, por um Congresso subordinado a um regime de exceção; já não estaria perdida.
De resto, a experiência comparativa revela que a liberação progressiva do comércio e uso de drogas para fins não apenas medicinais, inclusive em Estados norte-americanos, não vem sendo acompanhada por um incremento do consumo e número de dependentes. A lista de fundamentos da refutação da adequação do meio de intervenção estatal escolhido poderia se tornar bem mais extensa.
Portanto, o meio de intervenção penal não é adequado ao alcance do propósito pretendido. Não é sequer razoável, pois a experiência, historicamente sedimentada, revelou que ele não apenas não fomenta o propósito de proteger in abstrato a saúde pública, como também a corrompe in concreto.
2.4 Em não sendo adequado o meio escolhido pelo legislador, não há porque buscar alternativas igualmente adequadas, mas menos onerosas, pois a necessidade do meio escolhido pressupõe sua adequação.
3. Logo, a intervenção estatal no direito fundamental à autodeterminação não restou justificada. A Lei 11.343/2006 viola o art. 5°, caput da CF.
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