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A Função Econômica e Social da Propriedade: uma visão crítica sobre o SFH e a tutela do bem de família
Leonardo Vizeu Figueiredo
09/08/2016
Introdução
Um dos principais fatores de riqueza e, consequentemente, de aceitação e status social indubitavelmente se traduz na condição de proprietário. A faculdade de individualização de determinado bem imóvel na esfera de domínio privado do cidadão dá ao mesmo a possibilidade de participar de forma mais atuante na vida econômica da sociedade. Como corolário lógico, o mesmo adquire voz mais ativa no processo de escolhas da vida política da Nação.
Por tais fatores, não há como se dissociar o estudo jurídico da propriedade dos aspectos econômicos e sociológicos que a mesma possui, quando individualizada no patrimônio jurídico de um indivíduo. Portanto, o papel que a propriedade exerce na sociedade assume aspectos interdisciplinares e multifacetados não havendo como se focar a análise do campo social das conseqüências econômicas que lhes são inexoráveis.
Destarte, o presente trabalho objetiva promover uma visão da teoria da função social da propriedade, associando-a ao aproveitamento econômico e aos benefícios que daí poderão advir, tendo por base o Sistema Financeiro Habitacional.
Para tanto, no primeiro capítulo, analisar-se-á o tratamento jurídico dispensado à propriedade nos principais sistemas de direito do mundo contemporâneo, com a finalidade de demonstrar a associação da função social da propriedade com o aproveitamento econômico a ser dado a mesma.
No capítulo segundo, estudar-se-á a evolução da doutrina da função social da propriedade tanto no direito comparado quanto no direito pátrio. Objetiva-se, assim, verificar quais os principais institutos concebidos pelo direito para aliar o aproveitamento econômico da propriedade com a consecução de metas previamente estabelecidas e socialmente desejáveis pela Nação.
O terceiro capítulo destina-se à análise dos custos de alocação e relocação para o acesso à titularidade da propriedade na sociedade brasileira, tão-somente na via urbana. Não se levará em conta, no presente estudo, o sistema de reforma agrária no que se refere à propriedade rural, limitando-se ao estudo da aquisição da propriedade urbana. Assim, verificar-se-ão os resultados do Sistema Financeiro de Habitação no exercício financeiro de 2007, como forma de se analisar os ônus financeiros em cotejo com os bônus sociais almejados.
O capítulo quarto será dedicado à análise dos custos financeiros oriundos da tutela jurídica dispensada ao bem de família, nas transações econômicas da sociedade, mormente no que se refere ao custo de acesso ao crédito. Objetiva-se demonstrar que o tratamento jurisprudencial dispensado à proteção do bem de família é fator de majoração indesejável no que tange ao acesso ao crédito.
Feita esta breve apresentação, passa-se ao estudo do tema proposto, dentro das diretrizes apresentadas.
Capítulo 1 – A propriedade nos sistemas de direito contemporâneos
1.1. Noções preambulares
O estudo da propriedade e de sua função social está intrinsecamente relacionado ao estudo do aproveitamento econômico desta em face dos indivíduos que a detém e de suas conseqüências jurídicas no meio em que vivem, no sentido de se avaliar:
a) os ganhos econômicos advindos da utilização e fruição do bem imóvel;
b) a eficácia dos institutos jurídicos que operacionalizam o devido aproveitamento da propriedade; e
c) os benefícios sociais oriundos do devido aproveitamento e dos eventuais ganhos econômicos.
Há que se ter em mente que a propriedade se traduz em bem de necessidade primordial na sociedade. Sua utilização e sua fruição são, portanto, condições inexoráveis para a atendimento das necessidades tanto do indivíduo quanto da coletividade, conseqüentemente, para realização do bem estar social que está ligada ao devido aproveitamento econômico da mesma.
Nessa linha, mister ressaltar que a propriedade tem papel fundamental no atendimento das necessidades humanas individuais e coletivas, bem como para possibilitar o efetivo exercício de atividade econômica, uma vez que é imprescindível para no meio social para as seguintes finalidades:
a) moradia;
b) comércio;
c) agricultura;
d) pecuária; e
e) indústria.
1.2. O papel da propriedade nos sistemas de direito
Por meio do estudo do Direito Comparado, depreende-se que o fenômeno jurídico varia de acordo com o contexto histórico, político e cultural de cada época, sendo característico de cada sociedade e de cada época. Por sistemas de direito, podemos entender o conjunto de normas, princípios e regras que regem as diversas relações travadas em sociedade, seja entre os entes públicos, seja entre os particulares.
Por sua vez, ordenamento jurídico é o conjunto de institutos e instrumentos legitimados pelo sistema de direito para serem aplicados nas relações sociais produtoras de conseqüências vinculantes entres os indivíduos e entre estes e o Poder Público.
As peculiaridades referentes aos valores tutelados em cada meio social a ser estudado são oriundos do processo de legitimação da autoridade estatal, que é uma variante axiológica que encontra diversos fatores de modulação no que tange à participação da vontade popular.
Em que pese a diversidade de características e valores que encontramos nos mais variados sistemas de direito, podemos identificar que, por mais diferentes e peculiares que sejam, todos tem objetivos em comum, dentre os quais destacamos:
a) legitimação política da autoridade estatal;
b) criação de mecanismos de participação social no processo de condução política do Estado;
c) estabelecimento das formas adequadas de comportamento e condução social;
d) normatização das formas de relação, individual e coletiva, da sociedade com as riquezas e os fatores de produção.
Do estudo do Direito Comparado, podemos identificar pelo menos três grandes sistemas de direito, a saber:
a) o Romano-germânico (Civil Law);
b) o Socialista;
c) o Common Law.
Além destes, identifica-se ainda e com certo destaque, os seguintes sistemas de direito: o Muçulmano, o Hindu e o do Extremo Oriente, os quais não será objeto de análise no presente trabalho, ante a ausência de pertinência com o tema proposto.
O papel da propriedade no meio social varia de acordo com a sistematização jurídica adotada para se regular as diversas formas pelas quais os indivíduos relacionam-se entre si, com o Estado e com os bens dotados de valor econômico agregado. Assim, podemos destacar, dentro dos três grandes sistemas jurídicos do mundo moderno, as seguintes diferenças no que se refere à fruição da propriedade, a fim de lhe dar o devido aproveitamento econômico, dentro do sistema adotado.
1.2.1. Sistema Romano-germânico
O Sistema Romano-germânico (Civil Law) permite e assegura, via de regra, a titularização da propriedade na esfera de domínio privado de um indivíduo, seja pessoa natural, seja pessoa jurídica de direito privado ou público, com status de direito fundamental, tanto de bens móveis e imóveis, quanto de imateriais. Assim, passam a compor o patrimônio jurídico dos indivíduos, permitindo, inclusive, a transmissão para futuras gerações dentro do mesmo grupo familiar ou fora dele.
Outrossim, condiciona a utilização e fruição da liberdade ao respeito de uma série de condutas negativas, sob pena de expropriação forçada, via de regra, precedida da justa e prévia indenização. Assegura, ainda, a livre disposição da propriedade, permitindo que esta seja alienada de acordo com a autonomia de vontade das partes contratantes.
1.2.2. Sistema Socialista
No Sistema Socialista o conceito de propriedade privada para a pessoa física é substituído pela propriedade pessoal, a qual pode ser individualizada na titularidade de um cidadão, sendo-lhe vetada a exploração com finalidade lucrativa.
Por sua vez, a propriedade privada para a pessoa jurídica é substituída pela propriedade coletiva, na qual a gestão administrativa é efetuada de forma participativa com todos os trabalhadores, garantindo-lhes voz ativa nas decisões gerenciais, bem como participação financeira nos resultados obtidos.
Neste sistema o exercício da propriedade limita-se a sua utilização, sendo vedada a fruição com persecução lucrativa em caráter individual. No que se refere à coletivização da propriedade na atividade produtiva, está é condicionada ao atendimento das necessidades dos trabalhadores, sendo, via de regra, indesejável a geração de excedente.
Assim, o tratamento jurídico dispensado à propriedade traduz-se na imposição de condutas positivas a serem obrigatoriamente observadas pelos indivíduos, sob pena de expropriação forçada, sem qualquer direito à prévia indenização.
1.2.3. Sistema Common Law
O Sistema conhecido como Common Law adota tratamento jurídico semelhante ao romano-germânico. É de se destacar que a proteção jurídica à propriedade privada foi criada nos países que deram origem a este sistema de direito, em destaque a Inglaterra. Em 1215, como conseqüência a edição da Constituição de João, o sem terra, foi estipulado que nenhum membro do baronato inglês poderia ser expropriado de suas terras sem o obediência ao determinado no estatuto da terra (art. 39 – law of land). Em 1352, o Rei Eduardo III alterou o termo para o devido processo legal (due process of law), ampliando o rol de proteção individual tanto de propriedade para liberdade, bem como quaisquer outros direitos passíveis de individualização e expropriação por parte do Estado.
O devido processo legal, portanto, é instituto jurídico que se traduz no direito fundamental que tutela, disciplina, limita e procedimentaliza a forma pela qual o Poder Público irá interferir na esfera de domínio privado do indivíduo. Segundo Carlos Roberto Siqueira Castro trata-se do “direito público subjetivo à tutela jurisdicional isonômica e imparcial”[1].
Todavia, até então a propriedade privada era atributo inerente ao baronato, sendo sua proteção exclusiva à casta de nobres ingleses. Somente em 1787, a Convenção da Filadélfia consagrou o modelo federativo e a soberania da União dos 13 Estados Independentes, antigas colônias britânicas, ampliando a proteção à propriedade privada a todo e qualquer cidadão, membro da sociedade, na qualidade de titular de direitos e obrigações.
A 1ª emenda incorporou ao texto constitucional o direito de petição e a liberdade de expressão. A 2ª emenda, o direito ao porte de arma. A 5ª emenda introduziu ao Direito Constitucional norte-americano os seguintes direitos fundamentais: a) due process of law: ninguém será privado de seus bens ou liberdade sem o devido processo legal (garantia da justa indenização na desapropriação para uso público); b) trial by jury (jury trial): direito ao julgamento por júri independente e imparcial; c) no self incrimination: vedação à auto incriminação forçada (produção de provas contra si mesmo); d) doble jeopardy: proibição ao duplo julgamento pelo mesmo fato; e) ex post facto law: proibição da retroatividade das leis; f) bill of attainder: vedação a julgamentos sumários.
1.3. Conclusões parciais
Do estudo feito acima, depreende-se que, em que pese as diversidades constantes nos sistemas de direito analisados, o tratamento jurídico dispensado à propriedade está intimamente ligado ao aproveitamento econômico que se pretende destinar à mesma.
Em sistemas jurídicos que primam pela proteção às liberdades individuais, como o são o Romano-germânico e o Common Law, o ordenamento jurídico confere à propriedade um tratamento limitativo de utilização e fruição, impondo condutas negativas ao proprietário, sob pena de expropriação forçada, precedida do devido processo legal e do pagamento da justa e prévia indenização.
Por sua vez, no sistema de direito que prima pelo atendimento das necessidades coletivas, ainda que em detrimento das capacidades individuais, o tratamento jurídico dado à propriedade é condicionante da utilização do mesmo, o qual impõe a observância inafastável de condutas de utilização do bem, sob pena, igualmente, de expropriação sumária, sem qualquer garantia de defesa ou de ressarcimento.
Capítulo 2 – A função social da propriedade
2.1. Noções preambulares
Historicamente, o direito surgiu como um instrumento legitimação de autoridade política, bem como de contenção e conformação de exercício de poder.
Os movimentos do baronato britânico iniciado em 1215 e consolidado em 1689 serviram como forma de se mitigar a autoridade política do rei e fortalecê-la em torno do Parlamento, inicialmente, unicameral (House of Lords), adotando-se, a posteriori, um modelo bicameral (House of people).
Até então, em face da Ordem Econômica, vigia a doutrina do liberalismo econômico, uma vez que acreditava-se que, pela persecução do interesse individual no mercado, os consumidores realizariam seus anseios, alcançando-se o bem estar econômico.
Todavia, ante a ausência de mecanismos, à época, que garantissem o devido processo competitivo, mister se fez utilizar o direito como instrumento de realização de justiça, possibilitando a relocação dos bens em circulação na sociedade, de maneira a disponibilizá-los aos indivíduos sem recursos para, per si, titularizá-los em sua esfera de domínio privado.
A ideia de se dar ao direito uma função social, utilizando-o como instrumento de realização de justiça, teve como marco normativo a Constituição mexicana de 1917 e a Constituição alemã de 1919.
2.2. A Constituição do México de 1917
Em relação aos direitos de propriedade, a Constituição mexicana representou o marco jurídico no que se refere à individualização e a relocação da propriedade na sociedade, a teor de seu art. 27:
Art.27. A propriedade das terras e águas, compreendidas dentro dos limites do território nacional, pertence originalmente à Nação, a qual teve e tem o direito de transmitir o domínio delas aos particulares, constituindo assim a propriedade privada. As expropriações somente poderão fazer-se por causa de utilidade pública e mediante indenização. A Nação terá, a todo tempo, o direito de impor à propriedade privada as determinações ditadas pelo interesse público, assim como o de regular o aproveitamento de todos os recursos naturais suscetíveis de apropriação, com fim de realizar uma distribuição eqüitativa da riqueza pública, cuidar de sua conservação, alcançar o desenvolvimento equilibrado do país e o melhoramento das condições de vida da população rural e urbana. Com esse objetivo, serão ditadas as medidas necessárias para ordenar os assentamentos humanos e estabelecer adequadas previsões, usos, reservas e destinos de terras, águas e florestas, para efeito de executar obras públicas e de planejar e regular a fundação, conservação, melhoramento e crescimento dos centros de população; para preservar e restaurar o equilíbrio ecológico; para o fracionamento dos latifúndios; para dispor, nos termos da lei, sobre a organização e exploração coletiva dos ejidos e comunidades; para o desenvolvimento da pequena propriedade agrícola em exploração; para a criação de novos centros de povoamento agrícola com terras e água que lhes sejam indispensáveis; para o fomento da agricultura e para evitar a destruição dos recursos naturais e os danos que a propriedade possa sofrer em prejuízo da sociedade. Os núcleos de população que careçam de terras e água ou não as tenham em quantidade suficiente para as necessidades de sua população, terão direito de ser dotadas destas, tomando-as das propriedades próximas, respeitada sempre a pequena propriedade agrícola em exploração. – minha livre tradução, grifos não constantes no original.[2]
Resta claro que a Constituição mexicana de 1917 representou uma nova concepção sobre o direito, transmutando-lhe de mero instrumento de contenção de poder para instrumento operacionalizado de justiça, no sentido de permitir a devida realocação de rendas e riquezas entre os cidadãos.
A existência do indivíduo na sociedade somente será digna, na condição de pessoa humana, se este tiver acesso a um trabalho digno e uma propriedade que viabilizem a que o homem, dela, possa extrair os bens, para sobreviver e estabelecer sua residência e moradia.
No plano do direito de propriedade, a Constituição mexicana estabeleceu duas formas de propriedades, a propriedade da União e a propriedade privada. A propriedade da União é a propriedade originária, absoluta e pública, compondo-se das terras e das águas existentes dentro do território nacional. Essa propriedade uma vez transferida ao particular faz nascer a propriedade derivada, relativa e privada.
A propriedade privada mexicana, até então havida como direito absoluto, esbarra em um novo modelo, a partir de uma concepção socializada da propriedade, por que o Estado passa a disciplinar esse direito, a partir do interesse público. Há, portanto, um viés irremediavelmente superior ao interesse particular.
Some-se a isso, que a Constituição mexicana passou a proteger a relação de trabalho, criando uma série de mecanismos para garantir uma gama de direitos sociais ao empregado.
Na lição de Fábio Konder Comparato:
“O que importa, na verdade, é o fato de que a Constituição mexicana em relação ao sistema capitalista, foi a primeira a estabelecer a desmercantilização do trabalho, ou seja, a proibição de equipará-lo a uma mercadoria qualquer, sujeita à lei da oferta e da procura no mercado. Ela firmou o princípio da igualdade substancial de posição jurídica entre trabalhadores e empresários na relação contratual de trabalho, criou a responsabilidade dos empregadores por acidentes do trabalho e lançou, de modo geral, as bases para a construção do moderno Estado Social de Direito, e, portanto da pessoa humana, cuja justificativa se procurava fazer, abusivamente, sob a invocação da liberdade de contratar”.[3]
Portanto, a Constituição mexicana traduziu, para sua época, uma verdadeira revolução no plano normativo, dada a realidade axiológica. O contexto fático foi o elemento nuclear das transformações sociais, exigindo do Estado uma estrutura normativa que amparasse os trabalhadores. Isso se deu como vimos, no plano dos direitos individuais, como o trabalho, a saúde e a propriedade.
2.3. A Constituição da Alemanha de 1919
A Constituição germânica de 1919, fruto das lutas sociais enfrentadas pela sociedade alemã teve na classe operária sua maior realidade e seu maior foco. Foi o primeiro documento jurídico-constitucional, na Europa, que impôs veto à atividade liberal exacerbada pelo liberalismo econômico clássico.
Este documento jurídico representa, no cenário europeu, o marco inicial do Estado Social de Direito. Esse modelo de ordem jurídica cria, no direito constitucional, valores antes negados pelo liberalismo econômico. Na lição de Fábio Konder Comparato:
“A estrutura da Constituição de Weimar é claramente dualista: a primeira parte tem por objeto a organização do Estado, enquanto a segunda parte apresenta a declaração dos direitos e deveres fundamentais, acrescentando às clássicas liberdades individuais os novos direitos de conteúdo social”.[4]
No que se refere à propriedade, o art. 153 da referida Constituição estabelece que:
Art. 153. A propriedade é garantida pela Constituição. Seu conteúdo e seus limites resultam das disposições legais. A propriedade obriga. Seu uso deve, ademais, servir ao bem comum. – minha livra tradução.
Em que pese a Constituição alemã de 1919 ter inaugurado na Europa uma nova concepção sobre o papel do direito na Ordem Econômica e Social, o pensamento dominante, fortemente permeado pelo liberalismo econômico de Adam Smith ainda se fazia presente, como se faz nos dias atuais, uma vez que a sociedade ainda se baseava em geração de excedente e acúmulo pessoal, em crescimento econômico como meio de se garantir o desenvolvimento social.
As doutrinas socialistas que representaram uma forte ruptura no pensamento econômico vigente, uma vez que se pautavam no estabelecimento da produção na exata medida da sociedade, sem primar pela geração de excedente. Conforme leciona Paulo Bonavides:
“O Estado Social representa efetivamente uma transformação superestrutural por que passou o antigo Estado liberal. Seus matizes são riquíssimos e diversos. Mas, algo, no Ocidente, o distingue, desde as bases, do Estado proletário, que o socialismo marxista intenta: é que ele conserva sua adesão à ordem capitalista, princípio cardeal a que não renuncia. (…) A Alemanha nazista, a Itália fascista, a Espanha franquista, o Portugal salazarista foram “Estados Sociais”. Da mesma forma,’Estados sociais’ A Inglaterra de Churchil e Attlee, os Estados Unidos, em parte, desde Roosevelt; a França, com a Quarta República, principalmente; e o Brasil, desde a Revolução de 1930”[5].
Com base na lição desse jurista, podemos dizer que o Estado Social, no Ocidente, foi o resultado das profundas transformações sociais, que ocorreram a partir da Europa e ecoaram por todo o Ocidente. Portanto, há que se reconhecer que, independentemente, dos regimes totalitários, que eclodiram após a Primeira Guerra Mundial, o Estado social ganhou corpo e se amoldou à realidade nacional de cada país.
Ainda na lição de Paulo Bonavides:
“À medida, porém, que o Estado, tende a desprender-se do controle burguês de classe, e este se enfraquece, passa ele a ser, consoante as aspirações de Lorenz von Stein, o Estado de todas as classes, o Estado fator de conciliação, o Estado mitigador de conflitos sociais e pacificador necessário entre o trabalho e o capital. (…) Nasce, aí, a noção contemporânea de Estado social.”.[6]
2.4. A função social da propriedade no direito comparado
Objetiva-se fazer uma breve explanação sobre a função social da propriedade no direito comparado, procurando trazer algumas considerações das constituições alienígenas e de alguns doutrinadores estrangeiros.
No atual estágio da vida social e política, o instituto da propriedade alcançou uma dimensão extraordinária, na medida em que passou a ser um direito fundamental, judicializado pela tutela do Estado Social de Direito, consagrado em diversas constituições.
Assim, apresenta-se alguns elementos históricos de algumas constituições européias, onde a propriedade foi, aos poucos, sendo sedimentada como um direito individual, mas que sobrepujada por uma função social.
2.4.1. O direito francês
O Direito Constitucional, o Direito Civil, e ainda, a grande maioria dos juristas ocidentais reconhecem no mestre francês Léon Duguit, a concepção de que os direitos só se justificam, se houver uma vertente social para cumprir. No pensamento desse autor, a propriedade deixaria de ser um direito subjetivo e passaria a ser uma função social, e, nesse sentido, a propriedade passaria a ser uma instituição. A doutrina de Léon Duguit, ainda que tenha ressoado em todas as legislações do mundo ocidental, não pode no nosso sentir, ser admitida com plenitude, especialmente, no ponto em que desconsidera a propriedade como o direito subjetivo.
Para o doutrinador francês a propriedade é um instituto jurídico que se forma segundo as necessidades econômicas, como alias todas as instituições jurídicas que evoluem de acordo com as necessidades econômicas delas mesmas. Na nossa sociedade moderna, a necessidade econômica conforme a propriedade jurídica se transforma profundamente; por conseqüência, a propriedade como instituição jurídica deve ela mesma se transformar.
Analisando comparativamente os modelos adotados em regimes de intervencionismo social e socialista, Duguit destaca que a evolução do instituto da propriedade se deu em maior sentido, dentro da concepção coletiva que caracteriza o socialismo. Isto porque, a propriedade individual deixa de ser um direito do individuo para assumir uma função social, pertencente a um conjunto de riquezas inerentes à coletividade, que devem ser juridicamente protegidas.
2.4.2. O direito italiano
O direito constitucional italiano, fortemente influenciado pelo Direito Canônico, mormente a doutrina social da Igreja Católica, concebeu a propriedade condicionada a uma função social, a partir do final do século XIX. Atualmente, a Constituição italiana de 27 de dezembro de 1947, em seu art. 42, a seguir transcrito, imprimiu verdadeiro mandamento fundamental, adotando a função social da propriedade:
A propriedade é pública ou privada. Os bens econômicos pertencem ao Estado, a instituições ou a particulares. A propriedade particular é reconhecida e garantida pela lei, que lhe determina os meios de aquisição e gozo, assim como os limites, com o objetivo de assegurar sua função social e torná-la acessível a todos. A propriedade particular poderá ser expropriada, nos casos previstos pela lei, e contra indenização, por razões de interesse geral. A lei fixa as regras e os limites da sucessão legal ou testamentária, assim como os direitos do estado sobre as heranças. – minha livre tradução.[7]
Segundo o pensamento de Eros Roberto Grau:
“Distingue-se, assim, o tratamento conferido à propriedade, pela Constituição Italiana, daqueles atribuídos à matéria pela generalidade de diversas Constituições que, em regra, muito menos expressivamente, definem, basicamente, que ninguém pode ser privado de sua propriedade ou vê-la limitada, senão em razão de utilidade pública ou social (v.g. Constituição da República Federal da Alemanha, art. 15; constituição belga, art. 11; Constituição mexicana, art. 27; constituição venezuelana, ats. 99 e 105)”.[8]
Assim, no sistema de direito italiano, o princípio da função social da propriedade não pode ser visto como um mero conjunto de limitações ao exercício do direito de propriedade, posto que, na realidade, a função social se traduz no conteúdo da norma jurídica.
A doutrina italiana defende a tese de que a propriedade tem uma função social impulsiva, que decorre do poder-dever, que tem o proprietário do imóvel, de utilizar a coisa, para atender e satisfazer às necessidades do bem comum da coletividade.
2.4.3. O direito espanhol
A Constituição espanhola reconhece o direito à propriedade privada, no artigo 33, disciplinando:
Art. 33.1- São reconhecidos o direito à propriedade privada e o direito à herança. 2-A função social desses direitos delimitará o seu conteúdo nos termos da lei. 3- Ninguém poderá ser privado dos seus bens e direitos a não ser por causa justificada de utilidade pública ou interesse social, mediante a correspondente indenização e em conformidade com o disposto nas leis. – minha livre tradução.[9]
Depreende-se que, em que pese o direito espanhol reconhecer a propriedade como direito de status constitucional, o mesmo condiciona seu uso e gozo aos atendimento dos requisitos de utilidade pública e interesse social, a serem estabelecidos em lei, sob pena de expropriação.
Resta claro que no direito espanhol, a função social da propriedade assume um aspecto limitativo no exercício dos direitos inerentes à propriedade privada, condicionando-a em face de seu aproveitamento econômico.
2.4.4. O direito português
A Constituição portuguesa disciplina a propriedade no capítulo referente à Ordem Econômica, dando à função social da propriedade uma forte conotação econômica, mormente no que se refere ao seu aproveitamento privado na sociedade.
Na lição de Ana Prata:
“Ou se concebe a função social como uma espécie de cláusula geral do direito privado, destinada a como instrumento de aferição e adequação judicial dos comportamentos proprietários, ou funcionar se entende que a lei a utiliza directamente para realizar a justiça social, isto é, que ela se resolve, primariamente, em obrigações postas a cargo dos proprietários, ou, finalmente, assume uma posição eclética, entendendo que é, primariamente, a lei que cabe dar conteúdo à noção de função social – que não deixa nunca de ter um certo grau de indeterminação – mas que, do mesmo passo, é possível, a partir das disposições legais, ter uma noção de função social que serve como instrumento judicial de apreciação das condutas dos proprietários em concreto”.[10]
Estabelece o art. 62 da Constituição de Portugal que:
1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição. 2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e, fora dos casos previstos na Constituição, mediante pagamento de justa indenização.
Ainda no magistério de Ana Prata:
“Em síntese, pode caracterizar-se a função social da propriedade na Constituição portuguesa segundo duas idéias básicas: de uma forma genérica, a proteção da propriedade – de bens de produção – resolve-se, tendencialmente, na proteção da utilidade produtiva de bens, isto é, a função social analisa-se em obrigações de utilizar o bem de acordo com a sua função produtiva, de forma a contribuir para o incremento da produção nacional, e sem lesão dos interesses dos consumidores e utentes dos bens e serviços produzidos; de uma forma mais específica, a propriedade constitui um instrumento de instauração de novas relações de produção e de novas relações sociais”.[11]
2.5. A função social da propriedade no direito pátrio
A primeira Constituição brasileira, concebida sob a égide da dinastia da Casa de Bragança, foi outorgada por Pedro I, sob forte influencia do liberalismo dominante à época. Estabelecia, no artigo 179, inciso XXII, a propriedade, como direito absoluto, disciplinando:
É garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público legalmente verificado exigir o uso, e emprego da propriedade do cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A lei marcará os casos em que terá lugar esta única exceção, e dará as regras para se determinar a indenização.
Na Constituição de 1891, a propriedade era tida como um direito individual e era a condição essencial, para a inviolabilidade dos direitos civis e políticos do cidadão. A partir da Constituição de 1934, o direito de propriedade sofreu suas primeiras mutações no cenário nacional, o que se deve à nova realidade jurídica, que o mundo contemporâneo conheceu, com a edição da Constituição mexicana de 1917 e a Constituição alemã de 1919, em que se adota o Estado Social de Direito.
O texto constitucional acerca da propriedade privada se manteve inalterado com a Constituição Outorgada de 1937. A Constituição de 1946 representou um avanço no que se refere à função social da propriedade, situando-a no capítulo referente à Ordem Econômica e Social.
A propriedade era garantida no plano dos direitos subjetivos, entretanto, tal direito subjetivo sede lugar ao interesse social, que é, sem dúvida alguma, a pedra de toque do Estado Social de Direito, já adotado pela Constituição de 1934 e resgatado na Constituição de 1946.
Assim, a exceção ao direito de propriedade é o interesse social, que se contrapõe à vontade do indivíduo e eleva a propriedade à condição de bem social relevante. Essa contraposição não é absoluta, porque impõe ao Estado o dever de indenização ao particular. Essa indenização há de ser justa e deve corresponder ao preço de mercado, quando incidir o ato expropriatório. Vale destacar o disposto no art. 147 da Constituição de 1946:
O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 6º, promover justa distribuição da propriedade para todos.
Da leitura do referido dispositivo, depreende-se que a socialização da propriedade privada objetivava, precipuamente, efetivar seu devido aproveitamento econômico junto à coletividade.
Sobre o condicionamento do uso e fruição da propriedade ao bem-estar social, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda nos dá a seguinte lição:
“O direito brasileiro sempre teve limitações ao uso da propriedade. O Código Civil mais as explicitou. Porém, uma coisa é o limite ao uso, elaborado milenarmente, ou sob a inspiração de regras entre vizinhos, e outra o limite que não precisa do elemento conceptual da vizinhança, ou, sequer, da proximidade, ou sob a inspiração de regras entre vizinhos. Bem estar social é conceito bem mais vasto que vizinhança, ou proximidade. Cumpre, porém, advertir-se em que esse conceito não dá arbítrio ao legislador. Não é ele que, a seu talante, enuncia julgamentos de valor, para que, invocando o bem-estar social, limite o uso da propriedade. O art. 147, 1ª parte, não disse que a lei poderia restringir o uso do direito de propriedade, o que se havia de entender se estivesse escrito no art. 147, 1ª parte.“O uso da propriedade é garantido dentro da lei”. Fixado o conteúdo do direito de propriedade, sabe-se até onde vai a sua usabilidade. O que o art. 147, 1ª parte, estabelece é que o uso da propriedade há de ser compossível com o bem-estar social; se é contra o bem estar, tem de ser desaprovado. O art. 147, 1ª parte, não é, portanto, somente pragmático. Quem quer que sofra prejuízo por exercer alguém o usus, ferindoou ameaçando o bem-estar social, pode invocar o art. 147, 1ª parte, inclusive para as ações cominatórias”.[12]
A Constituição de 1967, bem como a emenda de 1969, em nada inovaram na sistemática de socialização da propriedade iniciada em 1934 e aperfeiçoada no texto constitucional de 1946. Assim, alia-se a idéia de socialização da propriedade privada como instrumento válido para se alcançar o desenvolvimento sócio-econômico da Nação. Na lição de José Afonso da Silva:
“O princípio da função social da propriedade não autoriza a suprimir, por via legislativa, a instituição da propriedade privada. Contudo, parece-nos que pode fundamentar a socialização de um tipo de propriedade, onde precisamente isso se torne necessário à realização do princípio, que se põe acima do interesse individual. Por outro lado, em concreto, também não autoriza a esvaziar a propriedade de seu conteúdo essencial mínimo, sem indenização, porque este está assegurado pela norma de garantia do direito de propriedade”.[13]
A Constituição Democrática do Estado de Direito promulgada em 5 de outubro de 1988, absorveu o direito de propriedade e o condicionou a uma função social, consagrando estes institutos tanto na parte referente a direitos e garantias fundamentais, quanto na parte da Ordem Econômica e Social.
Outrossim, consagra, ainda, o texto constitucional de 1988 a moradia como direito fundamental social, sendo antecedente lógico da existência digna e corolário inafastável da socialização do direito de propriedade assegurado na Lei Maior.
Assim, sendo a moradia um direito social constitucionalmente garantido, mister se faz que o Estado disponibilize mecanismos para que o mesmo se efetive. Portanto, é indispensável que a propriedade exerça sua função social, condizente com a realidade de quem não tem a terra e a moradia, mas que dela precisa.
Nessa linha, não há como se negar que a Constituição de 1988 consagra a função social da propriedade como limite de seu exercício, condicionando se uso e fruição de acordo com seu aproveitamento econômico.
Todavia, uma vez que a Constituição da República tem como princípio fundamental a livre iniciativa e os valores sociais do trabalho (art. 1º, IV), assegurando a propriedade privada e a herança como direitos fundamentais e princípios norteadores de sua Ordem Econômica (art.5º c/c art. 170), a justa distribuição da propriedade, a fim de socializá-la, dar-se-á com a adoção de mecanismos de incentivos fiscais e creditícios, facultando sua aquisição a todos os segmentos sociais que compõem a Nação brasileira.
No magistério de Eros Roberto Grau:
“O que mais relevante enfatizar, entretanto, é o fato de que o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário – ou a quem detém o poder de controle, na empresa, – o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que a função social da propriedade atua como fonte de imposição de comportamentos positivos – prestação de fazer, portanto, e não, meramente, de não fazer – ao detentor do poder que deflui da propriedade. Vinculação inteiramente distinta, pois, daquela que lhe é imposta de concreção do poder de polícia”.[14]
Pela exposição deste jurista, em total consonância com as lições de Pontes de Miranda, vê-se, claramente, que a função social da propriedade é distinta das limitações administrativas ao direito de propriedade.
2.6. Conclusões parciais
A contextualidade prova que as sociedades européias não podiam continuar sob o manto do liberalismo exacerbado, que pregava o individualismo e a obtenção da propriedade e que, sem ela, não haveria liberdade e igualdade.
No Estado Social de Direito consagrado pelas constituições do México e da Alemanha, brota um novo modelo de Estado, cuja vertente marcante não é o socialismo defendido por Marx, Engels e outros utópicos, mas sim a socialização do direito.
Assim, pode-se entender que a socialização da propriedade é um ponto de interseção e congruência dos Sistemas de Direito Romano-germânico e Socialista, uma vez que visa dar um caráter de coletivização no uso e na fruição do exercício do direito real.
Observe-se que os países que tem forte influência liberal, adotam a teoria da função social da propriedade como uma limitante desta, sem retirar-lhe seu caráter de direito fundamental, uma vez que assegura a expropriação precedida do devido processo legal e da justa e prévia indenização. Por sua vez, países que sofreram grandes influências dos pensadores do socialismo utópico, como é o caso italiano, em que pesem garantirem a propriedade como direito fundamental, adotam a teoria de sua função social como uma condicionante inafastável de sua devida utilização e fruição.
No caso brasileiro, optou-se por seguir um modelo mais condizendo com o liberalismo, permitindo a intervenção do Estado para assegurar que a utilização e fruição da propriedade alcancem resultados previamente estabelecidos e socialmente desejáveis. Observe-se que o atual texto constitucional brasileiro assegura o direito de propriedade com caráter de norma fundamental, garantindo ainda sua transmissão via herança. Outrossim, não reconhece a juridicidade do confisco da propriedade, salvo no caso de utilização da mesma para plantação de flora reconhecidamente psicotrópica e entorpecente.
Visto isso, mister se faz analisar as formas pelas quais o Estado brasileiro se louva para efetivar a socialização do direito de propriedade, mormente no que tange à aquisição, utilização e fruição da mesma.
Capítulo 3 – O Sistema Financeiro da Habitação: custos de alocação e relocação dos direitos de propriedade
3.1. Noções preambulares
O Sistema Financeiro da Habitação (SFH), é um segmento especializado do Sistema Financeiro Nacional, criado pela Lei 4380/64, no contexto das reformas bancária e de mercado de capitais.
Por essa Lei foi instituída correção monetária e o Banco Nacional da Habitação, que se tornou o órgão central orientando e disciplinando a habitação no País. Em seguida, a Lei nº 5.170, de 1966, criou o FGTS. O sistema previa desde a arrecadação de recursos, o empréstimo para a compra de imóveis, o retorno desse empréstimo, até a reaplicação desse dinheiro. Tudo com atualização monetária por índices idênticos.
Da criação do SFH até os dias de hoje, o sistema foi responsável por uma oferta de cerca de seis milhões de financiamentos e pela captação de uma quarta parte dos ativos financeiros. O sistema passou a apresentar queda nos financiamentos concedidos a partir de uma sucessão de políticas de subsídios que reduziram substancialmente os recursos disponíveis.
3.2. Estrutura organizacional
Em 1986, o SFH passou por uma profunda reestruturação com a edição do Decreto-Lei nº 2.291/86, que extinguiu o BNH e distribui suas atribuições entre o então Ministério de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (MDU), o Conselho Monetário Nacional (CMN), o Banco Central do Brasil (BACEN) e a Caixa Econômica Federal (CEF), com a seguinte distribuição de competências:
a) ao MDU coube a competência para a formulação de propostas de política habitacional e de desenvolvimento urbano;
b) ao CMN coube exercer as funções de Órgão central do Sistema, orientando, disciplinando e controlando o SFH;
c) ao BACEN foram transferidas as atividades de fiscalização das instituições financeiras que integravam o SFH e a elaboração de normas pertinentes aos depósitos de poupança; e
d) a CEF à administração do passivo, ativo, do pessoal e dos bens móveis e imóveis do BNH, bem como, a gestão do FGTS.
As atribuições inicialmente transferidas para o então MDU foram posteriormente repassadas ao Ministério do Bem Estar Social, seguindo depois para o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e finalmente, a partir de 1999 até hoje, alçadas a Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano da Presidência da República (SEDU/PR).
3.3. Estrutura financeira
Na montagem do SFH, observando-se a necessidade acesso às famílias de renda mais baixa, de maneira a não recorrer a recursos do Tesouro Nacional, estabeleceu-se um subsidio cruzado, interno ao sistema, cobrando taxas de juros diferenciadas e crescentes, de acordo com o valor do financiamento. Formava-se uma combinação que, mesmo utilizando taxas inferiores ao custo de captação de recursos nos financiamento menores, produzia uma taxa média capaz de remunerar os recursos e os agentes que atuavam no sistema.
A partir de 1971, adotou-se um mecanismo de subsídio via imposto de renda. De 1971 até 1981, havia um critério seletivo para concessão de subsídios. Os mutuários de maior renda pagavam integralmente as suas prestações. Conforme fosse decrescendo o salário, o Governo Federal assumia uma parte da prestação, via redução de Imposto de Renda. A partir de 1983, o princípio da identidade de índices foi quebrado.
Diante da queda dos níveis salariais e da inadimplência que ameaçava o sistema, o governo aplicou aumento nas prestações de 80% do reajuste do salário mínimo. Em 1984, o subsídio foi repetido.
Em 1985, houve novamente um subdimensionamento do índice de reajuste das prestações dos contratos.
Atualmente, a estrutura dos financiamentos segue uma sistemática que permite que o sistema se auto-financie, evitando-se o subsidiamento do Poder Público.
3.4. Fontes de recursos
O SFH possui, desde a sua criação, como fonte de recursos principais, a poupança voluntária proveniente dos depósitos de poupança do denominado Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), constituído pelas instituições que captam essa modalidade de aplicação financeira, com diretrizes de direcionamento de recursos estabelecidas pelo CMN e acompanhados pelo BACEN, bem como a poupança compulsória proveniente dos recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), regidos segundo normas e diretrizes estabelecidas por um Conselho Curador, com gestão da aplicação efetuada pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão(MPOG), cabendo a CEF o papel de agente operador.
Atualmente, as normas do CMN (Resoluções nº 1980, de 30.04.1993 e nº 3.005, de 30.07.2002), disciplinam as regras para o direcionamento dos recursos captados em depósitos de poupança pelas instituições integrantes do SBPE, estabelecendo que 65%, no mínimo, devem ser aplicados em operações de financiamentos imobiliários, sendo que 80% do montante anterior em operações de financiamento habitacional no âmbito do SFH e o restante em operações a taxas de mercado, desde que a metade, no mínimo, em operações de financiamento habitacional, bem como 20% do total de recursos em encaixe obrigatório no BACEN e os recursos remanescentes em disponibilidades financeiras e operações de faixa livre.
3.5. Análise do SFH – exercício de 2007
3.5.1. Depósitos de poupança
O saldo global dos depósitos de poupança (SBPE + Rural) cresceu 4,58% em dezembro de 2007 se comparado a novembro do mesmo exercício de financeio. Por sua vez, o volume de recursos financeiros oriundos dos depósitos de poupança foram de R$ 224,9 bilhões para R$ 235,3 bilhões no mesmo período. Quanto ao fluxo de recursos no sistema, os depósitos de poupança apresentaram em dezembro entrada líquida de R$ 9,1 bilhões.
3.5.2. Financiamentos imobiliários efetivados
Tendo como base todo o território nacional, de novembro de 1994 a dezembro de 2007, foram concedidos financiamentos para construção de 365.657 novas unidades. Nesse mesmo período, foi também financiada a aquisição de 409.172 imóveis prontos.
O valor total dos financiamentos concedidos foi de R$ 52.995 milhões. Esse valor ficou acima da captação líquida dos depósitos de poupança no mesmo período (depósitos – retiradas) que registrou R$ 24.584 milhões.
3.5.3. Financiamentos habitacionais
Nos doze meses compreendidos entre janeiro a dezembro de 2007, foram concedidos novos financiamentos habitacionais no valor de R$ 17.622 milhões (193.547 unidades), em comparação com R$ 9.177 milhões (111.296 unidades) entre janeiro de 2006 e dezembro de 2006.
Esses números representam acréscimo de 92,02% no valor nominal dos financiamentos concedidos e de 73,90% no número de unidades financiadas. Dos recursos aplicados nos últimos doze meses, 48,93% (R$ 8.622 milhões) foram destinados para aquisição de unidades já construídas e o restante, 51,07% (R$ 8.999 milhões), a financiamentos para construção de imóveis.
3.5.4. Exigibilidades
Refere-se à análise do acesso ao crédito para aquisição da casa própria, levando-se em conta fatores como solvabilidade pessoal, renda familiar mínima, bem como constituição garantias reais e fidejussórias, em face do total negociado no sistema.
O quociente Aplicações Totais / Exigibilidades – que mede o cumprimento dos percentuais mínimos de aplicação em financiamentos imobiliários estabelecidos pelas normas do CMN – comparando-se novembro de 2.007 com dezembro de 2.007, decresceu de 109,29% para 108,82% nas instituições privadas, de 102,00% para 101,90% nas instituições públicas e cresceu de 101,99% para 102,91% nas caixas econômicas.
3.5.5. Operações do SFH e as taxas de mercado
No período sub examine – janeiro de 2007 a dezembro de 2007, somados financiamentos para aquisição e para construção de imóveis habitacionais no âmbito do SFH, chegou-se à cifra de R$ 15.984 milhões para um total de 186.562 unidades.
Para o período de janeiro de 2.006 a dezembro de 2.006, tivemos R$ 8.703 milhões para 109.289 unidades financiadas. Em percentuais, representa acréscimo de 83,66% no volume de recursos e 70,71% na quantidade de imóveis financiados.
Para o mesmo período acima cotejado, o desempenho dos financiamentos habitacionais a taxas de mercado, destinados a imóveis residenciais, foi de R$ 1.638 milhões, para 6.985 unidades, contra R$ 474 milhões, para 2.007 unidades.
Houve, portanto, acréscimo de 245,82% nos recursos alocados e de 248,03% na quantidade de imóveis financiados.
3.5.6. Inadimplência
Levando-se em consideração o SBPE como um todo, a quantidade de mutuários inadimplentes (contratos com mais de três prestações em atraso) foi equivalente a 17,66%.
Verifica-se que continua alto em relação aos padrões passados: era de 7,5% em fevereiro de 1.995, levando-se em consideração todas as modalidades de contrato existentes.
Quanto aos contratos cujas prestações são reajustadas mensalmente pela TR, o percentual chega a 17,35% na carteira hipotecária e 53,38% em outros planos assinados após 28.07.93 até 24.06.98, excetuados PES — Plano de Equivalência Salarial – e PCR – Plano de Comprometimento de Renda.
Ocorre que a participação dessas duas modalidades na quantidade total de contratos de financiamento habitacional é relativamente pequena: 9,92% e 2,90 %, respectivamente.
Cabe registrar que os contratos assinados antes de 28.07.93, os percentuais de inadimplência também são significativos: para os firmados até 28.02.86 é de 68,03%, e para os assinados entre 28.02.86 e 28.07.93, compostos pelo PES/CP e outros planos, são de 42,68% e 66,90%.
3.5.7. Demografia do SFH
A distribuição, por regiões geográficas, do valor global dos contratos de financiamentos imobiliários concedidos no mês de dezembro de 2007 concentrou-se da seguinte forma:
– 75,51% no Sudeste;
– 11,03% no Sul;
– 5,63% no Nordeste;
– 6,41% no Centro-Oeste; e
– 1,42% no Norte.
A distribuição dos depósitos de poupança no SBPE é de:
– 65,28% no Sudeste;
– 17,44% no Sul;
– 10,51% no Nordeste;
– 4,68% no Centro-Oeste; e
– 2,10% no Norte.
Em relação ao total de contratos existentes em cada região, o percentual de mutuários inadimplentes (contratos com mais de três prestações em atraso) é de:
– 15,50% no Sudeste;
– 17,74% no Sul;
– 17,74% no Sul;
– 24,81% no Nordeste;
– 20,27% no Centro-Oeste; e
– 18,98% no Norte.
3.5.8. Acesso ao crédito
Analisando-se fatores como dimensionamento da taxa de juros cobrada, exigência de constituição de garantia real, bem como estabelecimento dos prazos de amortização, temos o seguinte mosaico no SFH, em relação ao acesso ao crédito:
a) a taxa de juros é definida conforme a renda familiar bruta:
- R$ 350,01 até R$ 1.875,00 = 6% a.a;
- R$ 1.875,01 a R$ 3.900,00= 8,16% a.a;
- R$ 3.900,01 a R$ 4.900,00 OU OPERAÇÕES ESPECIAIS = 10,16% a.a;
b) prazos máximos de amortização:
- até 240 meses com garantia de alienação fiduciária de bens imóveis;
- até 204 meses com garantia hipotecária;
c) prazos mínimos de amortização:
- renda familiar de R$ 350,01 a R$ 1.875,00: 120 meses;
- renda familiar de R$ 1.875,01 a R$ 3.500,00 (R$ 3.700,00 para regiões metropolitanas de RJ/SP/DF): 180 meses;
Da análise das condições de acesso ao crédito estabelecidas pelo SFH, depreende-se que a política de juros remuneratórios varia de acordo com a capacidade econômica da entidade familiar que a procura, sendo-lhe diretamente proporcional. Destarte, quanto maior a renda apresentada, mais onerosa será a taxa de juros a ser cobrada.
Por sua vez, a exigência de constituição de garantia real é uma constante, não havendo que se falar em acesso ao crédito sem a devida alienação fiduciário ou hipoteca para tanto.
Os prazos de amortização mínimos da dívida seguem a sistemática de variação pela renda familiar, em caráter diretamente proporcional. Quanto menor a renda, menor o prazo para a quitação da dívida. Tal fato denota, em um juízo precipitado de análise, uma certa distorção do sistema, uma vez que proporciona menores prazos de amortização à clientela de menor poder aquisitivo que, a princípio, necessitaria de maiores prazos para tanto. Todavia, há que se ter em mente que o valor do financiamento a ser concedido varia de acordo com a capacidade econômica da clientela e com sua capacidade de solvabilidade. Logo, a clientela de menor poder aquisitivo se restringe a compra de imóveis de menores valores, necessitando de prazos mais pequenos para amortização.
3.7. Conclusões parciais
Do estudo do Sistema Financeiro Habitacional conclui-se que a opção política do Estado brasileiro para efetivar o acesso à propriedade operacionaliza-se por meio de uma sistemática de mercado capitalista, no qual a titularidade da propriedade privada é condicionada à aquisição da mesma por meio do trabalho e da renda individual.
Observe-se que o Estado não se louva em assistencialismo, subsidiado por verbas da seguridade social ou de qualquer outra fonte de custeio pública para possibilitar a titularização da propriedade privada. Ao contrário, privilegia-se um sistema financeiro próprio, no qual são abertas linhas de crédito para todo e qualquer cidadão que denote capacidade econômica para arcar com os ônus do financiamento, baseando-se no sistema de economia popular das instituições financeiras e congêneres como os grandes operadores deste nicho de nossa economia.
No que se refere ao exercício financeiro de 2007, o Sistema Financeiro Nacional registrou aumento de volume no que tange à quantidade de unidades habitacionais e recursos negociados, o que denota que o setor encontra-se em franca expansão. Outrossim, a redução nos níveis de inadimplemento mostra que o acesso aos créditos imobiliários está sendo realizado dentro da capacidade de solvabilidade dos respectivos clientes que tiveram acesso ao crédito. Portanto, denota-se certo critério de razoabilidade na seleção para ingresso no sistema, limitando-o à parcela da população que efetivamente pode arcar com o custo financeiro do mesmo.
Tal fato se constata quando do estudo da demografia financeira do sistema. Isto porque, as regiões de maior concentração de poder aquisitivo, Sudeste e Sul, respectivamente, são as que apresentam maior volume de transações e de movimentação de recurso, bem como os menores níveis de inadimplemento.
Por sua vez, o eixo Nordeste, Norte e Centro-Oeste são as regiões que apresentam os maiores índices de inadimplemento e os menores volumes de transações e movimentação de recursos.
Capítulo 4 – A tutela do bem de família
4.1. Noções preambulares
A tutela do bem de família apresenta-se como um embrião da horizontalização da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, uma vez que efetiva a realização do direito de moradia, ainda que em detrimento do direito patrimonial (teoria da aplicação mediata).
Originariamente concebidos como instrumentos jurídicos de defesa do indivíduo em face do Estado e, posteriormente, como instrumentos de exercício de direitos sociais e proteção aos direitos coletivos, sempre em relações jurídicas de característica vertical, discute-se, atualmente, sobre a possibilidade de irradiação de efeitos dos direitos fundamentais nas relações jurídicas travadas entre particulares, de característica eminentemente horizontal.
No campo do direito constitucional comparado, duas escolas de direito já teorizaram sobre o tema, sempre tendo como norte a questão de conciliar a autonomia de vontade das partes com a indisponibilidade dos direitos fundamentais:
a) Escola norte-americana – Teoria dos atos de Estado: por esta doutrina os direitos fundamentais irradiam seus efeitos somente nas relações jurídicas privadas heterogêneas, nos quais os sujeitos não se encontram em posição de igualdade. Em tais relações, uma das partes encontra-se em posição de vantagem em face da outra, fato que possibilita a imposição de vontade desta em detrimento daquela, não havendo que se falar em autonomia de vontade das mesmas. Logo, havendo quebra na isonomia, justifica-se a aplicação dos direitos fundamentais, como forma de se nivelar as desigualdades naturais entre os indivíduos, ainda que a relação que os une seja de natureza privada;
b) Escola alemã: no direito alemão, três correntes discorrem sobre o tema:
b.1) Teoria da eficácia imediata: por esta corrente, os direitos fundamentais estendem seus efeitos jurídicos a todas as relações privadas, aplicando-se diretamente a norma constitucional, independentemente de quaisquer outros comandos legais. Assim, o operador do direito encontra-se autorizado a irradiar a eficácia dos direitos fundamentais a toda e qualquer relação jurídica, ainda que não haja comando legislativo infraconstitucional para tanto;
b.2) Teoria da eficácia mediata: por esta teoria, a aplicação dos efeitos dos direitos fundamentais nas relações privadas depende sempre de prévio e expresso ato do poder constituído legislativo em sentido expresso. Destarte, não se encontra o operador do direito autorizado a irradiar, diretamente da própria constituição, os efeitos jurídicos dos direitos fundamentais em toda e qualquer relação jurídica, mas, tão-somente, naquelas em que houver permissão legal para tanto;
b.3)Teoria da proteção dos deveres: por esta última corrente, a irradiação dos efeitos jurídicos dos direitos fundamentais somente dar-se-á nas relações jurídicas privadas que versem sobre um núcleo de proteção inafastável ao Estado. Portanto, havendo o prévio dever de proteção estatal sobre o negócio jurídico travado, justifica-se, por parte do aplicador do direito, a irradiação de eficácia dos direitos fundamentais sobre o mesmo, independentemente de sua origem, seja oriunda do direito público ou do direito privado.
É de se ressaltar que, em que pese o alto grau de complexidade em todas as teorias desenvolvidas sobre o tema, ainda não se chegou a uma fórmula ideal sobre a irradiação de efeitos dos direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas, não havendo consenso sobre o tema nas grandes academias internacionais de direito. A aplicação de uma das teorias acima deverá ser feita casuisticamente, mediante um exercício ponderado dos interesses em jogo.
No que se refere ao direito constitucional pátrio, tanto o poder constituído legislativo, quanto o judiciário, bem como a doutrina, ainda não deu ao tema a importância devida, havendo tímidos esforços no sentido de se dar prevalência a teoria da eficácia mediata. A lei de planos de saúde (nº 9.656, de 1998), por exemplo, determina expressamente condicionantes do devido processo legal para a hipótese de rescisão motivada do contrato de assistência privada à saúde com o beneficiário (art. 11, parágrafo único, e art. 13, parágrafo único, II).
Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou pela necessidade de observância do devido processo legal, quando o contrato social assim expressamente o determinar, vedando a expulsão sumária de associado em cooperativa de trabalho, conforme ementário a seguir transcrito:
“Cooperativa — exclusão de associado — caráter punitivo — devido processo legal. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o exercício amplo da defesa. Simples desafio do associado à assembléia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa.” (RE 158.215, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 07/06/96).
Assim, no que se refere à tutela da propriedade privada, exclui-se da expropriação forçada de bens o local destinado a residência e moradia da entidade familiar.
4.2. Base normativa
Em relação ao ordenamento jurídico pátrio, mister se faz ressaltar que a família goza de especial proteção, constitucionalmente assegurada. A Constituição da República não traz uma definição específica sobre o que vem a ser entidade familiar. Todavia, da exegese sistemática do art. 226 e seus parágrafos, infere-se que a entidade familiar é a sociedade de assistência alimentar mútua, independente de estar conjugalmente vinculada, formada pelos genitores e seus respectivos dependentes. Isso porque, o legislador constituinte equipara a entidade familiar à união estável entre homem e mulher (art. 226, §3º, CRFB), à sociedade formada por qualquer dos pais e seus dependentes (art. 226, §4º, CRFB), igualando homens e mulheres em direitos e deveres perante a sociedade conjugal (art. 226, §5º, CRFB).
Outrossim, a tutela do bem de família encontra-se assegurada na legislação infraconstitucional, a teor do disposto na Lei nº 8.009, de 1990, no Código Civil, bem como no Código de Processo Civil.
Em sede de construção teleológica constitucional, pode-se conceber a tutela do bem de família na lei maior por meio de uma interpretação sistemática do art. 6º, combinado com o art. 226 e parágrafos, todos da CRFB, sendo a moradia da entidade familiar fator primordial para sua proteção e seu desenvolvimento.
No campo do direito comparado, merece destaque a Lei Argentina nº 14.394, de 1954. Para o direito argentino, a tutela jurídica do bem de família vai até o limite em que não exceda as necessidades de sustento e de vida da própria família.
4.3. Jurisprudência
A jurisprudência da Corte Superior de Justiça brasileira, em que pese algumas oscilações, manifesta-se, prioritariamente, pelo regime de proteção ao bem de família (vide: REsp nº 650.831/RS).
Há que se ressaltar alguns julgados admitindo a expropriação do bem de família, quando onerado por livre e espontânea vontade do proprietário (“Como já assentou a Corte, são impenhoráveis os bens de família, ressalvados os imóveis dados em garantia hipotecária da dívida exeqüenda. Estando a cédula garantida por hipoteca, não releva o fato de ser oriunda de renegociação de contratos anteriores com outro tipo de garantia” – Resp nº 247.649/SC).
Outrossim, o conceito de entidade familiar já foi ampliado para abrigar a monoparental (REsp nº 272.742/PR).
Tema extremamente controvertido tanto em doutrina, quanto em jurisprudência, reside no reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, para fins de extensão das normas protetivas da família. Conforme exposto no presente tópico, o direito brasileiro apenas reconhece, nos estritos limites da lei, a sociedade, de fato ou de direito, formada pela união entre homem e mulher como entidade familiar, para fins de extensão da normatização jurídica prevista na legislação pátria.
A análise da questão pede um juízo de valores, uma ponderação axiológica, que transcende ao mero cotejo de legalidade da união homoafetiva à luz do direito positivo pátrio. Isso porque, na verificação de juridicidade das situações fáticas que lhes são submetidas, deve o operador do direito efetivar os ditames de justiça social, observando-se que, conforme já visto no decorrer da presente obra, a finalidade maior da norma jurídica é a persecução do justo, não se limitando, tão-somente, ao lícito.
O conceito de entidade familiar pode ser analisado sob diversos prismas de ciência social. Dentro de um contexto antropológico[15], podemos vislumbrar a entidade familiar sob dois aspectos. Em um juízo de antropologia biológica, a entidade familiar é a união que tem por finalidade maior a reprodução e a perpetuação da espécie. Sobre essa ótica, não há como se estender à união afetiva a qualidade de entidade familiar, uma vez que o sistema de reprodução natural do ser humano depende, necessariamente, do concurso de pessoas de sexo oposto. Isso porque, ainda que a fecundação se dê por meios artificiais, o material biológico a ser empregado para tanto depende de fornecimento, necessariamente, de um homem e de uma mulher. Por sua vez, sob uma visão de antropologia social, a entidade familiar se trata da união de pessoas para fins de auxílio e sobrevivência recíproca. Nessa linha, não há como se negar que a união homoafetiva é um fato social característico da época contemporânea, sendo patentes seus efeitos e reflexos sócio-econômicos no mundo atual, seja para fins de sustento mútuo de seus membros, seja para fins de seguridade social, seja para fins de adoção civil, ou qualquer outra finalidade que tenha repercussão no mundo jurídico. Sob todos esses aspectos que a união homoafetiva se estende e reflete efeitos, pedindo resposta efetiva da sociedade, não há como lhe negar a qualidade de entidade familiar, ainda que se trate de situação de fato, não devidamente tutelada no ordenamento jurídico pátrio.
Feitas essas considerações, resta saber se há como se qualificar a entidade familiar composta por pessoas do mesmo sexo como sociedade conjugal, como união estável, ou como uma terceira espécie, ainda, inédita no direito brasileiro.
No que se refere à sociedade conjugal, isto é, na união de direito reconhecida por lei para fins de constituição de família, bem como na união estável, sociedade de fato reconhecida pela legislação civil, em que pese os deveres conjugais de lealdade, de respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos, salvo melhor juízo, não guardarem nenhuma relação de incompatibilidade com a união homoafetiva, uma vez que solidariedade e respeito são valores que se exigem em todas as relações sociais, há expresso impeço legal em se enquadrá-la como entidade familiar reconhecida pelo direito pátrio, uma vez que este, atualmente, a teor das disposições da Constituição da República Federativa do Brasil e de suas leis civis somente reconhecem a comunhão formada por homem e mulher, seja para fins de sociedade conjugal, seja para fins de união estável.
Há que se ressaltar que a jurisprudência sinaliza para o reconhecimento da união homoafetiva para fins de constituição de entidade familiar, tendo, inclusive, o Egrégio Supremo Tribunal Federal já se manifestado acerca do reconhecimento de sua juridicidade, a teor da decisão monocrática exarada na ADIN nº 3300 MC/DF, Relator: Min. Celso de Mello, noticiada no Informativo do STF nº 414.
Destarte, até que seja feita a opção político-legislativa em se reconhecer para todos os fins e efeitos de direito a união homoafetiva como entidade familiar, atualizando-se e consolidando-se e Constituição e as leis pátrias, o tema ainda deve ser objeto de grandes querelas judiciais e discussões doutrinárias.
Todavia, em que pese a ausência de normatização jurídico-positiva expressa, salvo melhor juízo, não há impeço legal em se estender à sociedade de fato homoafetiva as normas protetivas da propriedade para fins de moradia familiar. Isto porque, em se considerando o caráter de subexistência mútua que a união homoafetiva pode vir a apresentar no caso concreto, há que se protegê-la, dentro das regras de integração do direito.
4.4. Conclusões parciais
O ordenamento jurídico brasileiro prima por proteger a moradia familiar, ainda que em detrimento das relações contratuais econômicas pactuadas com base no oferecimento de garantia real.
Salvo algumas raras decisões esparsas, a jurisprudência dominante de nossa Superior Corte de Justiça prima por efetivar a tutela do bem de família, em detrimento das relações contratuais, ainda que as mesmas tenham sido travadas de boa fé e que o contratante tenha de livre e espontânea vontade ofertado a moradia de sua família como garantia real. Tal fato, em um universo micro realmente protege o indivíduo, ainda que este tenha agido com abuso de direito para obter acesso a crédito com o intuito de não arcar com suas obrigações patrimoniais.
Ao proteger o abuso de direito, em detrimento da boa fé objetiva das relações contratuais do sistema financeiro nacional, gera-se, em um universo macro, uma política mais rigorosa de acesso ao crédito, bem como mais onerosa de amortização do mesmo. Isto porque, o abuso de direitos perpetrado por uns e tutelado, não raro de forma assistencialista pela Justiça, traduzir-se-á em oneração indesejável a todo o sistema financeiro nacional, tornando mais dificultosa o acesso ao crédito e o adimplemento deste.
Conclusão
De todo o trabalho desenvolvido, depreende-se que a propriedade ainda possui forte conotação social dentro do meio coletivo em que se vive. Seja pelo fato de que a condição de proprietário denota forte status social, seja pelo fato de que o proprietário possui maior facilidade de acesso ao crédito, a individualização da propriedade no patrimônio jurídico privado ainda é objetivo a ser perseguido por muito, porém realizado por não tantos.
Em que pese o movimento de socialização do direito ter se iniciado pela propriedade privada, criando fatores limitadores ou condicionantes do exercício de uso e gozo da mesma, sob pena de expropriação forçada, não há como negar que, em sistemas de direito cujo ordenamento jurídica prima de proteção à propriedade privada, a tutela da mesma pressupõe sua devida individualização.
Todavia, a aquisição da propriedade privada, em ordenamentos jurídicos que se louvam no mercado como agente potencializador do desenvolvimento social, somente perfazer-se-á mediante a devida compra e venda, o que denota a necessidade capacidade econômica para tanto. Observe-se que nos Estados que se organizam em torno de sistemas econômicos descentralizados, baseados em valores de livre iniciativa e liberdade de concorrência, como é o caso da República Federativa do Brasil[16], o sistema financeiro nacional assume um inegável papel de ente garantidor do desenvolvimento sócio-econômico da Nação.
Dada a magnitude dos valores que envolvem a operação de aquisição de um bem imóvel, mister se faz socorrer-se ao sistema financeiro nacional para tanto. Assim, justifica-se a criação de um sub-ramo destinado, exclusivamente, ao financiamento para aquisição de moradia própria, com sistema de custeio e condições financeiras diferenciadas.
Para tanto, mister se faz garantir que as relações de trocas realizadas no mercado financeiro, mormente no sub-sistema destinado ao acesso ao crédito imobiliário, sejam efetuadas de forma clara e transparente, garantindo-se uma alocação eficiente de recursos para as diversas atividades econômicas envoltas, tais como a bancária e a industrial, aliada ao retorno e pagamento do capital aplicado pelos respectivos investidores.
Assim, jurisprudência e ações governamentais devem andar passo a passo com o mercado, a fim de que o ordenamento jurídico e o posicionamento de nossas Cortes de Justiça não se traduzam em fatores de desestímulo à relocação de crédito para o setor imobiliário, agravantes do inadimplemento, tampouco de proteção ao abuso de direito perpetrados alguns em detrimento de todo o setor.
Bibliografia
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Sítios consultados: www.bacen.gov.br; www.cef.gov.br
[1] CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Devido Processo Legal e os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade na Constituição de 1988. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2006.
[2] Do original: “Artículo 27. La propiedad de las tierras y aguas comprendidas dentro de los límites del territorio nacional, corresponden originariamente a la Nación, la cual ha tenido y tiene el derecho de trasmitir el dominio de ellas a los particulares, constituyendo la propiedad privada.Las expropiaciones sólo podrán hacerse por causa de utilidad pública y mediante indemnización.La Nación tendrá en todo tiempo el derecho de imponer a la propiedad privada las modalidades que dicte el interés público, así como el de regular, en beneficio social, el aprovechamiento de los elementos naturales susceptibles de apropiación, con objeto de hacer una distribución equitativa de la riqueza pública, cuidar de su conservación, lograr el desarrollo equilibrado del país y el mejoramiento de las condiciones de vida de la población rural y urbana. En consecuencia, se dictarán las medidas necesarias para ordenar los asentamientos humanos y establecer adecuadas provisiones, usos, reservas y destinos de tierras, aguas y bosques, a efecto de ejecutar obras públicas y de planear y regular la fundación, conservación, mejoramiento y crecimiento de los centros de población; para preservar y restaurar el equilibrio ecológico; para el fraccionamiento de los latifundios; para disponer, en los términos de la ley reglamentaria, la organización y explotación colectiva de los ejidos y comunidades; para el desarrollo de la pequeña propiedad rural; para el fomento de la agricultura, de la ganadería, de la silvicultura y de las demás actividades económicas en el medio rural, y para evitar la destrucción de los elementos naturales y los daños que la propiedad pueda sufrir en perjuicio de la sociedad.”.
[3] COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 4ª ed. São Paulo: Saraiva. 2005. p. 177.
[4] Ibidem, p. 189-190.
[5] BONAVIDES, Paulo. Do Estado Social ao Estado Liberal. 6ª ed. São Paulo: Malheiros. 1996. p. 184.
[6] Ibidem. p. 185.
[7] Do original: “La proprietà è pubblica o privata. I beni economici appartengono allo Stato, ad enti o a privati. La proprietà privata è riconosciuta e garantita dalla legge, che ne determina i modi di acquisto, di godimento e i limiti allo scopo di assicurarne la funzione sociale e di renderla accessibile a tutti. La proprietà privata può essere, nei casi preveduti dalla legge, e salvo indennizzo, espropriata per motivi d’interesse generale. La legge stabilisce le norme ed i limiti della successione legittima e testamentaria e i diritti dello Stato sulle eredità”.
[8] GRAU, Eros Roberto. Função Social da Propriedade (Direito Econômico), in Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva. 1977. p.22.
[9] Do original: “Artículo 33 – 1. Se reconoce el derecho a la propiedad privada y a la herencia. 2. La función social de estos derechos delimitará su contenido, de acuerdo con las leyes. 3. Nadie podrá ser privado de sus bienes y derechos sino por causa justificada de utilidad pública o interés social, mediante la correspondiente indemnización y de conformidad con lo dispuesto por las leyes.”
[10] PRATA, Ana. A tutela Constitucional da Autonomia Privada. Coimbra: Almedina. 1982. p. 174.
[11] Ibidem. p. 184 e 185.
[12] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição Federal de 1946. Vol. IV. Rio de Janeiro: Forense. p. 500-501.
[13] SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1981. p. 95.
[14] GRAU, Eros Roberto. A Ordem econômica na Constituição Federal de 1988. 10ª ed. São Paulo: Malheiros. 2005. p.245.
[15] Antropologia é a designação comum a diferentes ciências ou disciplinas cujas finalidades são descrever o ser humano e analisá-lo com base nas características biológicas (antropologia biológica) e socioculturais (antropologia cultural) dos diversos grupos em que se distribui, dando ênfase às diferenças e variações entre esses grupos.
Antropologia biológica ou física é a ciência que tem por objeto a variação biológica do ser humano, tanto em seu desenvolvimento evolutivo quanto em sua expressão histórica e contemporânea. Antropologia social ou cultural é ramo da antropologia que trata das características socioculturais da humanidade (costumes, crenças, comportamento, organização social) e que se relaciona, portanto, com várias outras ciências, tais como etnologia, arqueologia, lingüística, sociologia, economia, história, geografia humana.
[16] Neste sentido, uma exegese sistemática dos seguintes artigos da Constituição da República deixa claro que o Estado brasileiro organiza-se em torno de uma economia de mercado:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
(…)
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…) IV – livre concorrência;
(…)
Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.
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