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MEDIAÇÃO E ARBITRAGEM
PROCESSO CIVIL
Mediação em Conflitos Objetivos
José Osmir Fiorelli
30/05/2016
A mediação costuma ser apreciada como uma metodologia aplicável a conflitos subjetivos. O estudo dos conflitos objetivos mostra a presença de elementos tipicamente emocionais em sua gênese, em insuspeita parte das situações. Esse fato conduz à conclusão de que, convenientemente tratados, os conflitos objetivos também podem ser mediados, explicitando-se os conteúdos emocionais que se encontram encobertos nas demandas.
Aplica-se, com reconhecida eficácia, a mediação em conflitos subjetivos; os conflitosfamiliares proporcionam, em saudável parcela dos casos, o acerto dessa sistemática de solução cooperativa, em que os mediandos trabalham em busca de uma composição apaziguadora (e, tantas vezes, salvadora de recursos, de amor próprio etc.).
Nesses conflitos, poderosas forças de origem emocional influenciam os envolvidos; fixados em suas posições (isto é, o que declaram), perdem de vista seus reais interesses (o que, de fato, desejam); a ação do mediador proporciona-lhes a orientação para uma transformação em que estes prevalecem sobre aquelas. A palavra-chave é, pois, emoção.
Nos conflitos objetivos acredita-se que os litígios ocorram na arena da “razão”, em que as forças emocionais deixam de ser determinantes – ainda que presentes – em relação ao processo decisório. Daí conduzi-los à solução pela via adversarial – julgamento, arbitragem ou negociação pura. As questões tributárias constituem exemplos típicos de conflitos aos quais não se aplicaria, pois, a mediação.
Entretanto, não percebo, sob a ótica estrita da psicologia, uma dicotomia tão nítida entre “mediáveis” e “não mediáveis”, quando analiso os inúmeros tipos de conflitos assim intitulados. Convivi com muitas situações e, em muitos casos, os acertos procederam-se em arenas insuspeitas, como restaurantes e, até mesmo, em percursos aéreos.
Essa experiência levou-me a analisar tais conflitos e, em consequência, a acreditar na possibilidade de se desenhar soluções ajustadas às características particulares de cada um, valendo-se de métodos ajustados a seus conteúdos específicos, à complexidade das situações, às consequências das decisões que possam ser tomadas e aos efeitos sobre os sentimentos dos litigantes.
Ocorre que o humano é um ser emocional.
A emoção dirige-lhe as escolhas e, portanto, os comportamentos. Em O Erro de Descartes e O Mistério da Consciência, o neurocientista António Damásio mostra – embasado em longas e complexas investigações – que, sem a tutela da emoção, revelamo-nos incapazes de tomar as mais comezinhas decisões.
O autor explica: a “razão” não passa de um conjunto de mecanismos decisórios rotulados como tal pela sociedade, sujeitos às vicissitudes de tempo, espaço e local. Acreditar que somos “seres racionais” faz parte do incurável narcisismo humano (que já nos rendeu pérolas, como acreditar que a Terra fosse o centro do universo). Essa surpreendente plasticidade do “racional” proporciona inúmeras conclusões, tais como:
- existe relação de compromisso entre cultura e emoção; esta, manifesta-se segundo formas e padrões ajustados ao socialmente aceito;
- o cérebro (órgão) privilegia escolhas que maximizem emoções positivas e minimizem as negativas (“escolhas lógicas”); obviamente, a mente, serva nem sempre fiel da cultura, não funciona assim;
- há correlação entre emoção e comportamento; se o comportamento não condiz com a emoção dominante (situação muito mais comum do que se pode suspeitar à primeira vista), surgem conflitos intrapsíquicos (que podem chegar a patológicos);
- a interpretação dos estímulos pelo cérebro é emocional; o estímulo ganha qualificação (de prazeroso, agressivo, repulsivo etc.) sujeita ao crivo da emoção (experiências anteriores com o estímulo podem ser relevantes, mas não apenas elas).
Agir “racionalmente” significa, pois, comportar-se segundo padrões reconhecidos como lógicos. Evidente a relatividade! Basta um exemplo: o “padrão de beleza”; imitam-se pessoas (modelos) portadoras de graves deformações anatômicas (estas, visíveis) e fisiológicas (não perceptíveis ao observador)!
No conflito, a emoção dominante delimita o campo de ação, dirige a interpretação dos estímulos e, assim, estabelece as possibilidades de comportamento “racional”. Por esse motivo, o que alguém percebe como ofensa, outro percebe como simples má educação; o que, para uns, representa notável violação dos direitos, para outros apenas revela uma omissão lamentável; enquanto alguém se entristece, outro sente raiva e um terceiro, desprezo … e assim sucessivamente. Os comportamentos acompanharão as interpretações “de maneira racional”, considerado o contexto.
Um exemplo simples, amplamente conhecido, é a inadimplência. Para uns, o atraso no pagamento de um débito de pequeno valor representa uma preocupação significativa. Outros, protelam pagamentos importantes tanto quanto possível e causam prejuízos a terceiros ou à comunidade – o caso clássico encontramos no indivíduo que não paga a taxa de condomínio, prevalecendo-se das dificuldades e delongas do processo de cobrança. Tais decisões não encontram fundamento na “racionalidade”.
Concluímos que forças emocionais encontram-se presentes ou, até mesmo, movem os negócios, uma vez que pessoas os conduzem. Fatores como “orgulho”, “prazer de ser o primeiro”, “satisfação em comandar pessoas” ocupam espaço nas mesas dos dirigentes (ao lado de sexo, poder e dinheiro, seguramente distantes de qualquer racionalidade).
O que temos, pois, em cada lado de um conflito? Seres emocionais! Esquematicamente, ousaríamos representar – grosseiramente – a presença da emoção nos conflitos, por meio do seguinte diagrama:O diagrama sugere que, no conflito, razão e emoção coexistem; em alguns, predomina a “razão”; em outros, a emoção aflora. Conflitos familiares, tipicamente, ocupam a área à direita do diagrama; os organizacionais, mais objetivos, situam-se à esquerda. Movendo-nos em direção ao limite direito do diagrama, favorecemos a mediação; em sentido inverso, tendemos a métodos adversariais.
Observe-se, entretanto, que a emoção presente em muitos “conflitos objetivos” encontra-se camuflada pela “racionalização das queixas”. A sociedade culta admira o pensamento “racional”; de fato, valoriza-se uma convenção. Isso vale para uma colisão de veículos (qual o valor emocional do primeiro automóvel preservado zelosamente há décadas?), para o atraso no fornecimento de um eletrodoméstico ou uma dívida de FGTS. Cito o empresário que, em dificuldades financeiras, orgulha-se em afirmar aos amigos que “todos os pagamentos devidos aos empregados encontram-se em dia”. Paz de espírito e a felicidade, sentimentos intrinsecamente individuais, dependem de fatores emocionais geralmente imponderáveis.
Conflitos entre pessoas, entre estas e empresas e entre empresas deixam de encontrar soluções satisfatórias, muitas vezes, por serem encarados como estritamente “objetivos”, quando, efetivamente, as emoções encontram-se sob a retórica das partes. É o instigante campo da “posição x interesse”, tão conhecido dos mediadores.
Cumpre raspar o rótulo para revelar o conteúdo debaixo da epiderme cosmética da racionalidade. Aí se identifica o emocional oculto – e, por que não, desconhecido, uma vez que o olho não olha dentro de si. Sob a ótica do diagrama, desloca-se do setor esquerdo para o direito; aumenta-se a proporção de fatores emocionais no conjunto de elementos que afetam o processo decisório das partes.
Em muitas situações tipicamente “racionais”, essa migração, possível e desejável, melhorará a qualidade da decisão, ao mesmo tempo em que transferirá para os litigantes doses crescentes de responsabilidade. Este caminho da mediação nem sempre reflete o desejo de uma ou ambas as partes; a “racionalização” de um conflito pode representar uma fuga ou uma estratégia eivada de malícia. Trata-se, pois, de analisar as características das pessoas envolvidas: o que pretendem, o que as move.
De maneira inversa convém, em muitos conflitos, reduzir o conteúdo emocional para aumentar o racional. Uma questão pode não chegar a solução porque fatores emocionais intensos, cronificados e diversificados obstam o diálogo. Vê-se à exaustão nos conflitos de família. Há de se promover a “racionalidade”, para que as pessoas consigam reprimir, ainda que ritualmente e por pouco tempo, seus ódios recíprocos e decidam-se por acordos (imperfeitos) ou soluções adversariais. Paciência; o sucesso de qualquer intervenção nem sempre encontra-se no campo do ótimo, mas do domínio do possível.
Em síntese:
- Acreditamos que existam conflitos tidos como puramente objetivos, que escondem complexos fatores emocionais de uma ou ambas as partes; ignorá-los significa abrir mão de composições vantajosas para os dois lados.
- A utilização da mediação nesses conflitos requer, dos mediadores, sensibilidade para identificar as emoções e fazê-las aflorar de maneira conveniente, auxiliando os litigantes (mediandos) a reconhecer-lhes as verdadeiras dimensões e a lidar com elas.
- Quando essa dinâmica acontecer, surgirão oportunidades para desenvolver sessões de mediação que abranjam aspectos particulares das demandas de cada uma das partes; as soluções para outros aspectos poderão utilizar outros instrumentos (como a negociação, a arbitragem ou o julgamento). Ajusta-se o procedimento aos conflitos e aos litigantes.
O caminho crítico para aplicar a mediação em conflitos considerados objetivos passa, pois, pela inserção da emoção na mesa de debates e, por essa via, subjetivá-los, no todo ou em parte.
Exemplifico: em uma negociação de reajuste salarial, os negociadores levam suas pretensões (percebidas conscientemente ou não), tais como demonstrar para os demais seu poder de negociar, confirmar um histórico de sucesso, obter prestígio perante seus pares, resolver seus problemas particulares de desempenho. Esses elementos podem constituir-se em graves empecilhos para se chegar a um acordo. A própria duração da negociação acrescenta elementos emocionais ao processo.
Compreende-se que há necessidade de olhar especializado para chegar às questões emocionais presentes no conflito tido como puramente objetivo.
A análise dos níveis e naturezas das diferentes emoções que envolvem os conflitantes permitirá concluir pela aplicabilidade ou não de cada instrumento de solução de conflitos. A partir daí, abre-se o caminho para mediar o que pode e deve ser mediado.
Acredito, pois, na possibilidade de se utilizar a mediação em uma ampla gama de situações hoje distantes das Câmaras ou Escritórios especializados.
Referências bibliográficas:
Damásio, A. O erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Damásio, A. O mistério da consciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Fiorelli, J.O., Fiorelli, M.R., Malhadas Jr., M. O. Mediação e solução de conflitos. São Paulo: Atlas, 2008.
Veja também:
- Assédio Moral: processo e vírus
- “Remédios caseiros” para a solução de conflitos
- Informativo de Legislação Federal: resumo diário das principais movimentações legislativas
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