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Investidura sem fim público

DESVIO DE FINALIDADE

FIM PÚBLICO

INVESTIDURA

NULIDADE

José dos Santos Carvalho Filho

José dos Santos Carvalho Filho

18/03/2016

Nulidade por desvio de finalidade

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Em toda a mídia se tem difundido a notícia da nomeação do ex-Presidente Lula pela Presidente da República, para ocupar o cargo de Ministro-Chefe da Casa Civil, esclarecendo a autoridade nomeante que o ato de nomeação alvitra a reorganização dos setores político e econômico.

Mas grande parte da sociedade acredita mais na hipótese de que o objetivo real é o de retirar o ex-presidente do âmbito da competência da Justiça de primeiro grau, onde é investigado pela suposta prática de vários crimes, para inseri-lo na competência do Supremo Tribunal Federal, órgão competente para processar e julgar originariamente Ministros de Estado (art. 102, I, “c”, CF).

Aqui deixamos de lado o partido A ou o partido B. Afastamo-nos também do caráter político que envolve a nomeação. Vamos ater-nos exclusivamente ao plano jurídico, no âmbito da análise dos requisitos de validade dos atos administrativos e, especialmente, da figura do desvio de finalidade, sempre tão difícil de identificar.

O ato administrativo demanda a presença de cinco elementos, ou, para quem o prefira, requisitos de validade. Independentemente do rótulo, já dissemos em obra de nossa autoria: “o que se quer consignar é que tais elementos constituem os pressupostos necessários para a validade dos atos administrativos”, o que indica que, sem a presença de qualquer deles, o ato “estará contaminado de vício de legalidade, fato que o deixará, como regra, sujeito à anulação”. (1)

São elementos do ato administrativo a competência, a finalidade, a forma, o motivo e o objeto. Todos são imprescindíveis à validade do ato. Como ensina Lúcia Valle Figueiredo, “ato válido é aquele amoldado, ajustado ao ordenamento jurídico”. (2) Em síntese, o ato, para ser válido, exige que o agente tenha competência administrativa para praticá-lo; que a forma seja adequada ao que a lei dispõe; que o motivo corresponda às razões mobilizadoras do ato; e que tenha objeto, que indica a providência que o administrador pretende tomar.

O último elemento é a finalidade do ato, pela qual se requer que o administrador público somente possa atuar legitimamente se tiver por escopo o interesse público, e nunca seu próprio interesse ou o interesse privado de terceiros. Já registrava Hely Lopes Meirelles que “não se compreende ato administrativo sem fim público”, aduzindo que o “Direito Positivo não admite ato administrativo sem finalidade pública ou desviado de sua finalidade específica”. (3)

À primeira vista, nenhuma dificuldade haveria na identificação do elemento finalidade do ato, bastando que o intérprete vislumbrasse, como alvo do administrador, uma atividade de interesse público, ou seja, providências que alcançassem as demandas sociais da população, exigidas dos órgãos administrativos.

A verdade, porém, não é bem essa. O vício na finalidade do ato denomina-se desvio de finalidade (ou desvio de poder) e espelha justamente uma conduta do administrador em que persegue interesses privados. Essa forma de desvio não é privativa apenas no direito pátrio. A doutrina francesa, por exemplo, já conhece comportamentos dessa natureza desde o século XIX. Charles Vedel delineia bem o desvio, lá denominado de “détournement de pouvoir”: “vício que consiste em que o autor do ato usa de seus poderes para fins outros que não aqueles que a lei lhe havia conferido”. (4)

A ideia é consolidada no direito pátrio. Odete Medauar assim se expressa: “O defeito de fim, denominado de desvio de poder ou desvio de finalidade, verifica-se quando o agente pratica ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência”.  (5)  A propósito, assinalamos: “No elemento finalidade, o vício consiste na prática de ato direcionado a interesses privados, e não ao interesse público, como seria o correto (desvio de finalidade). (6)

O grande problema do desvio de finalidade reside exatamente na dificuldade ou impossibilidade de elementos concretos de prova que conduzam ao convencimento de que o agente buscou fins privados, embora tenha procurado demonstrar, externamente, o contrário, vale dizer, que teve como alvo o interesse público. O autor do ato, com efeito, escamoteia a verdade de sua intenção, que foi totalmente ilegal e despida de qualquer fim público.

Tal dificuldade é bem apontada por Marcelo Caetano, para quem “o apuramento do desvio de poder não pode deixar de estar no regime da prova moral, isto é, fica à convicção de quem tenha de decidir, em face dos elementos reunidos, resolver se houve ou não substituição do fim visado na lei por outro fim”. (7)

Entretanto, ninguém aprofundou mais o exame desse tema do que José Cretella Junior, em estudo memorável sobre o desvio de poder, nele concluindo que é difícil produzir prova ostensiva e que o intérprete deve valorizar os indícios veementes, quando sintomas denunciadores do desvio. Vale a pena relembrar sua irretocável lição:

“Se indício é ‘qualquer coisa’ ou ‘fato sensível’ que tem ou pode ter relação com outro fato…, é bem de ver-se a importância que tal elemento adquire na comprovação do desvio de poder, quando se sabe quão difícil é encontrar prova, absolutamente irrefutável, que comprometa o editor do ato, autoridade administrativa, regra geral, esclarecida e astuta para incriminar-se, deixando vestígios, mesmo leves, de sua intenção ‘distorcida’. Nesse caso, os sintomas é que revelarão ‘o mal’, inserido num quadro clínico indiscutível”. (8)

Tais notáveis observações permanecem atuais e válidas até o momento. De fato, o desvio de finalidade é sempre produzido de forma disfarçada, de modo tal que o disfarce tem a serventia de ocultar as reais intenções do administrador público, direcionadas a interesses privados e, não raras vezes, escusos. Essa é a verdade: não há desvio de poder com luminosidade probatória. Há, isto sim, uma dissimulação que ilude o intérprete com uma falsa aparência de legalidade.

Aplicando-se todo esse delineamento à já aludida nomeação, podem-se extrair algumas conclusões, que, se não absolutas, pautam-se ao menos pela plausibilidade.

O ato de nomeação de servidor ou outro agente integra o ato complexo da investidura, que se completa pelo ato de posse. A nomeação retrata a indicação de alguém, pela autoridade competente, para ocupar um cargo público, ou seja, para efetuar seu provimento. A posse completa a investidura e sujeita o empossado aos direitos e obrigações do cargo. O ato é considerado complexo porque pressupõe duas manifestações de vontade que, integradas, se direcionam ao fim desejado pelo nomeante. Desse modo, para que a investidura seja legítima, ambos os atos componentes também precisam ser legítimos.

Dentro do terremoto político que atormenta o país, é compreensível que autoridades, em recursos exasperados, acabem por invadir a seara da legalidade. É compreensível, mas não aceitável. Afinal, mesmo em mares revoltos no âmbito político, têm os agentes públicos o dever indeclinável de obedecer aos ditames da lei e da Constituição. A supremacia das leis não pode ser postergada pelo imediatismo das soluções políticas, pois que, a não ser assim, dispensáveis seriam todas as garantias constitucionais.

A investidura de Ministro de Estado, em sua essência, em nada difere da investidura dos servidores em geral. É bem verdade que os Ministros são considerados como agentes políticos, de categoria diversa, portanto, daquela em que estão os servidores públicos comuns. (9) Todavia, o ato em si da investidura, bem como os atos que a compõem – a nomeação e a posse – têm a mesma estrutura jurídica e, por via de consequência, reclamam a presença dos mesmos elementos, ou requisitos de validade.

Segue-se, então, considerando as fortes suspeitas que acometem todos os analistas, que a Presidente da República praticou os atos de nomeação e de posse do ex-presidente Lula para o fim exclusivo de retirá-lo do âmbito das investigações a cargo da Justiça Federal de primeira instância, mais especificamente de Curitiba, no processo da operação Lavajato, tentando protegê-lo com a investidura em cargo de Ministro de Estado, que, tendo prerrogativa de foro especial, sujeita-se à competência do Supremo Tribunal Federal.

Em outras palavras, cometeu desvio de finalidade, na medida em que produziu ato que oculta a sua verdadeira finalidade, que não seria absolutamente de interesse público, mas sim de interesse privado, como é o do ex-presidente Lula – interesse, repetimos, de escapar da atuação de juiz de primeiro grau, cuja atuação tem sido rigorosa e digna de aplausos, como registra a maioria de seus críticos.

Aqui não se aprofundará um efeito colateral do desvio de finalidade. Ao inserir o ex-presidente Lula em cargo sob a jurisdição do STF, a Presidente da República parece ter considerado a mais alta Corte como incapaz de avaliar os fatos imputados ao denunciado e como instrumento, ao que parece, de blindagem contra eventual punição aplicável em decorrência da suposta prática de atos ilícitos. Já houve, é verdade, uma certa descrença na Corte quanto à efetividade em sua atuação punitiva. Mas os tempos mudaram essa valoração, e tanto é verdade que várias já foram as condenações impostas a outras autoridades acusadas.

Em nosso entender, numa perspectiva estritamente jurídica, são translúcidos os indícios, ou “sintomas denunciadores”, a que se refere o grande professor José Cretella Junior, para a configuração do desvio de finalidade, acarretando inevitavelmente a nulidade dos atos de nomeação e de posse e, consequentemente, da própria investidura.

A hipótese de invalidação do ato por esse motivo, aliás, está expressa na Lei nº 4.717/1965, que regula a ação popular, em cujo art. 2º, parágrafo único, “e”, o legislador considerou invalidável o desvio de finalidade, que “se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência”.

Numa visão mais ampla, de cunho juspolítico, o desvio de finalidade, pelo fato de originar-se da Presidente da República, configura-se como ato de improbidade, podendo, caso devidamente comprovado, levar ao enquadramento da conduta como crime de responsabilidade, ex vi do art. 85, V, da Constituição. Na acertada lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a probidade é dever de toda a Administração, de forma que “o Presidente da República, evidentemente, não escapa a essa obrigação”, e por isso “tem de zelar para que toda a administração pública atenda estritamente às normas de probidade”. (10)

Compreende-se que as aflições políticas possam irradiar disparates jurídicos. Compreende-se, mas não se aceita. Afinal, vivemos (ainda e felizmente) sob o império do Estado de Direito. E se há alguma coisa que o fere de morte, é exatamente o desvio de poder.


NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1) JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, Manual de direito administrativo, GEN/Atlas, 30ª ed., 2016, pág. 119.

(2) LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, Curso de direito administrativo, Malheiros, 9ª ed., 2008, pág. 179.

(3) HELY LOPES MEIRELLES, Direito administrativo brasileiro, Malheiros, 39ª ed., 2013, pág. 162.

(4) GEORGES VEDEL, Droit administratif, Presses Univ. de France, Paris, 6ª ed., 1976, pág. 548.

(5) ODETE MEDAUAR, Direito administrativo moderno, RT, 8ª ed., 2004, pág. 180.

(6) JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, Manual cit., pág. 162.

(7) MARCELO CAETANO, Princípios fundamentais do direito administrativo, Forense, 1977, pág. 181.

(8) JOSÉ CRETELLA JUNIOR, Anulação do ato administrativo por desvio de poder, Forense, 1978, pág. 106.

(9) HELY LOPES MEIRELLES, ob. cit., pág. 80.

(10) MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, Comentários à Constituição Brasileira de 1988, Saraiva, vol. 2, 1992, pág. 170.


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