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Notas sobre competência nas ações de alteração de identidade de gênero por transexualidade
Marco Aurélio Bezerra de Melo
16/03/2016
Gênero vs. orientação sexual em perspectiva civil-constitucional
Por Marco Aurélio Bezerra de Melo e Fábio de Oliveira Azevedo[1]
I. Apresentação do problema; II. Distinção entre orientação sexual e identidade de gênero; III. Critérios de competência; IV. A competência das Varas de Registro Público na experiência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
I – Apresentação do problema.
Discute-se, em doutrina e jurisprudência, a viabilidade jurídica da alteração do sexo e do prenome da pessoa humana que não se sinta psicossocialmente conforme seu sexo biológico, caracterizando a transexualidade.
Esse tema já foi objeto de decisão favorável no Egrégio Superior Tribunal de Justiça[2] e de Resolução do Conselho Federal de Medicina[3] reconhecendo a insuficiência do critério biológico para traduzir o direito a autodeterminação e a diversidade humana.
Para além dessa possibilidade, baseada no modelo binário que compreende, em tom excludente, somente as identidades masculina e feminina, a realidade social e a velocidade das transformações sociais, o respeito a pluralidade e a aversão constitucional ao preconceito e discriminação tem encorajado a revelação de novos modos particulares de identificação do gênero a que pertence cada um, aí se incluindo a neutralidade de gênero, como já admitem alguns países europeus.
Em tese, ao menos na experiência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, pode-se cogitar três possibilidades de competência em relação ao pedido de alteração do nome e do sexo no caso de transexualidade: i) Varas Cíveis; ii) Varas de Família; iii) Vara de Registro Público.
Esse singelo trabalho tem o propósito de apontar, em conformidade com a Constituição da República e o substrato existente nas referidas ações, o órgão competente para julgar o referido processo, e, para isso, partirá de algumas premissas que serão desenvolvidas separadamente: a) distinção entre orientação sexual e identidade de gênero; b) os fundamentos civis-constitucionais para o reconhecimento do direito ao pertencimento; c) os critérios de competência; d) a definição da competência na experiência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
II – Distinção entre orientação sexual e identidade de gênero
Algumas vezes por preconceito, outras por ignorância, vê-se não ser raro haver profunda confusão conceitual entre orientação sexual e identidade de gênero, conceitos apartados e que podem possibilitar as mais diversas combinações.
Vê-se pela orientação sexual – e não opção, pois não se trata de escolha pura e simples – apenas a indicação do (s) gênero (s) em relação ao qual a pessoa sente-se atraída física e/ou emocionalmente por outra. Daí falar-se em orientação heterossexual (atração por outro gênero), homossexual (atração pelo mesmo gênero), bissexual (atração pelos dois gêneros), assexuada (sexual e/ou afetivamente) ou pansexual (atração por todos os gêneros).
Distingue-se da identidade de gênero, pois, ao contrário da posição de atração em relação aos outros que caracteriza a orientação sexual, na identidade de gênero identifica-se a pessoa e o modo como ela se reconhece a partir dos padrões de gêneros apresentados socialmente.
Nesse sentido, a posição até hoje adotada pela doutrina civil clássica associa a identidade de gênero ao critério biológico e aos respectivos papeis de gênero historicamente desenvolvidos pelas culturas ocidentais – nem sempre correspondentes a constituição do sentimento individual de identidade – de modo que existiriam apenas dois gêneros: i) masculino; ii) feminino.
Tal realidade mostra-se inteiramente insuficiente para explicar as transformações pelas quais passa a sociedade, a exigir do operador atenção e olhar atento para verificar os valores constitucionais que essas mudanças expressam em cada caso concreto, a partir do qual será produzida a norma jurídica que disciplinará as questões que o tema suscita.
A distinção entre orientação sexual e identidade de gênero não é difícil de ser compreendida.
Pense-se no indivíduo, reconhecido biologicamente como sendo do sexo masculino, mas que psicossocialmente enxergue-se como pertencente a identidade feminina. Dito de outro modo, esse homem, biologicamente, é uma mulher psicossocialmente.
Esse transexual, todavia, pode sentir atração por homens (transexual heterossexual), mulheres (transexual homossexual), por ambos (transexual bissexual), ser transexual assexuado ou até mesmo revelar-se um transexual pansexual.
Veja-se que a realidade social mostra episódios absolutamente distantes dos padrões convencionais, aí se incluindo a premissa, até pouco tempo inabalável, de que apenas mulheres poderiam engravidar. Na Argentina, Alexis Taborda casou-se com Karen Bruselario. Seria um casamento convencional, não fosse o fato de que suas identidades não refletem o gênero a que pertencem pelo critério biológico. Os dois são transexuais, ou seja, Alexis é biologicamente do gênero feminino, ao passo que sua mulher Karen é biologicamente do gênero masculino, tendo sido preservadas suas capacidades reprodutivas biológicas. Alexis, assim, engravidou de sua esposa, dando a luz a uma saudável criança, batizada como Genesis Evangelina.
Nota-se, pela transexualidade, a ausência de correspondência entre a identidade de gênero do transexual e aquela designada pelo registro público, por ocasião do seu nascimento.
É o caso Lili, ocorrido na década de 20, que ganhou notoriedade a partir de 2016 pela (pseudo) cinebiografia “garota dinamarquesa”. Tal enredo retrata uma das primeiras cirurgias realizadas em transexual visando a adequação do fenótipo. Gerda Gottileb precisava concluir a pintura de um quadro retratando uma atriz vestida de bailarina. Pela ausência da modelo, solicitou que seu marido Einar colocasse um vestido com saia plissada, sapatos altos e meias. Após curta hesitação, o marido aceitou a experiência que viria a mudar para sempre sua vida e revelaria sua verdadeira identidade. Passou a vestir-se como mulher em viagens para França e Italia, apresentando-se publicamente como Lili Ebe.
No Brasil, o Conselho Federal de Medicina editou a resolução 1.955/2010, definindo o transexual como “portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou autoextermínio”, contrariando sistemas mais avançados, como o Francês, que desde 2010 deixou de considerar a transexualidade um transtorno mental, pioneirismo que tende a ser seguido pela Organização Mundial de Saúde – OMS.
Vê-se, desse modo, que a cirurgia disciplinada pelo CFM representa uma simples readequação do corpo a identidade de gênero, não havendo, tecnicamente, uma “mudança de sexo”, mas uma simples correção registral.
Dito de outro modo, busca-se apenas readequar o fenótipo a identidade de gênero, não se tratando a transexualidade de simples questão sexual, tal como ocorre com a homossexualidade, ou mesmo associando-se com o fetiche pelo travestismo, outra possibilidade incluída no grupo de transgêneros, assim entendida toda forma de incompatibilidade entre a identidade de gênero e o registro civil da pessoa.
III – Fundamentos civis-constitucionais para a tutela da identidade de gênero do transexual e a retificação do nome e do gênero
Sabe-se que a dignidade da pessoa humana foi catapultada ao status de fundamento da república federal brasileira, de modo a reconhecer o direito ao desenvolvimento pleno da personalidade jurídica e a tutela dos conteúdos que compõem a dignidade: (i) autonomia, (ii) conteúdo intrínseco e (iii) conteúdo comunitário.
Para além da dignidade da pessoa humana (art. 1, II, CF), outros valores constitucionais sustentam a pretensão de retificação do nome e do sexo: i) vedação a discriminação odiosa (art. 3, IV, CF); ii) igualdade (art. 5, CF); iii) privacidade (art. 5, X, CF).
A interpretação conforme a constituição não pode ser considerada em termos absolutos, e, muito menos, ser realizada de modo a-histórico, em busca de verdades universais e imutáveis. Cabe ao intérprete, abandonado o positivismo jurídico e sua lógica formal positivista, individuar o valor constitucional presente no caso concreto, a partir de todas circunstâncias verificadas, extraindo-se do ordenamento jurídico a norma a ser aplicada.
Define-se o papel do estado e do direito a partir dessas premissas, de modo a reconhecer-lhe o dever de proteger a diversidade no exercício do direito a autodeterminação que compõe o princípio da dignidade da pessoa humana, respeitando essa pluralidade, criando mecanismos para realizá-la e fomentando a tolerância sem a qual difícil se mostra superar o preconceito e a discriminação.
IV – Competência das Varas de Registro Público para as ações que buscam a alteração da identidade de gênero do transexual. Inexistência de ação de Estado.
Como dito anteriormente, ao menos em princípio, pode-se vislumbrar três possibilidades de fixação de competência: i) Varas Cíveis; ii) Varas de Família; iii) Vara de Registro Público.
Para identificar a competência para julgar esta ação de alteração de identidade de gênero e nome é preciso lembrar que existem três critérios para a fixação de competência: i) territorial; ii) funcional; iii) objetivo.
Interessa no presente caso o critério objetivo, que pode basear-se no valor, pessoa ou matéria, sendo fixado de acordo com as leis de organização judiciária. Na experiência do Código de Organização e Divisão Judiciária do Estado do Rio de Janeiro, observa-se que a competência das Varas de Família e Registros Público são fixadas pela matéria, sendo, pois, de natureza absoluta.
A alteração do prenome e do sexo enquadram-se nas matérias que deveriam ser elencadas em razão da matéria, afastando, ipso facto, a competência genérica das Varas Cíveis. Nesse diapasão, o artigo. 84 do CODJERJ assim se pronuncia: “os Juízes de Direito das Varas Cíveis têm competência genérica e plena na matéria de sua denominação, inclusive no que se refere às causas de reduzido valor econômico ou de menor complexidade, ressalvada a privativa de outros juízes, competindo-lhes, ainda, cumprir precatórias pertinentes à jurisdição cível.
Assim, com base na própria autorização contida no referido art. 84 do CODJERJ, identifica-se a existência de dispositivos afastando essa competência genérica e comum, criando-se, assim, competências específicas em razão da matéria.
Em relação a Vara de Registro Público, estabelece o art. 89 do CODJERJ competir aos juízes de direito, especialmente em matéria de registro público, salvo o de registro civil das pessoas naturais: I – processar e julgar os feitos contenciosos e administrativos, principais, acessórios e seus incidentes relativos aos registros públicos;
Já com relação as Varas de Família, estabelece o art. 85 do CODJERJ um extenso rol de matérias submetidas a sua competência, sendo certo que a matéria aqui tratada não está incluída expressamente em nenhuma das hipóteses ali elencadas. Entendemos, outrora, que diante dessa lacuna, seria essa a competência correta por se tratar de ação de alteração de estado, mas revemos nossa posição[4], pois os estudos sobre a designação do sexo mostram que na realidade o requerente postula em juízo tão-somente a retificação do seu registro pela desconformidade entre o sexo biológico e o psicológico, sendo então um feito que guarda relação direta e imediata com o registro público de nascimento. Não há alteração do estado pela identificação do sexo masculino ou feminino que se pretende afirmar, mediante a análise circunstanciada que o juízo fará das provas apresentadas.
Destarte, afastando-se a competência comum das Varas Cíveis e diante da lacuna do CODJERJ, parece-nos que as Varas de Registros Públicos atraem a competência para julgar as ações de alteração de identidade de gênero, especificamente em relação ao sexo e ao nome, tendo aplicação o artigo 109 da Lei 6.015/73 que assim reza: “quem pretender que se restaure, supra ou retifique assentamento no Registro Civil, requererá, em petição fundamentada e instruída com documentos ou indicação de testemunhas, que o juiz o ordene, ouvido o órgão do Ministério Público e os interessados, no prazo de 5 (cinco) dias, que correrá em cartório.”.
Concluindo, temos que o estado da arte na medicina e nos demais ramos afins das ciências humanas estão a indicar que a identidade do gênero no caso de transexualidade é típico caso de retificação registral sem litigiosidade a fim de compatibilizar, para o bem da dignidade humana, o sexo psicológico com a certidão de nascimento do cidadão (ã).
[1] Advogado, Mestre em Direito e Professor de Direito Civil e do Consumidor da EMERJ.
[2] Registro público. Mudança de sexo. Exame de matéria constitucional. Impossibilidade de exame na via do recurso especial. Ausência de prequestionamento. Sumula n. 211/STJ. Registro civil. Alteração do prenome e do sexo. Decisão judicial. Averbação. Livro cartorário. 1. Refoge da competência outorgada ao Superior Tribunal de Justiça apreciar, em sede de recurso especial, a interpretação de normas e princípios de natureza constitucional. 2. Aplica-se o óbice previsto na Súmula n. 211/STJ quando a questão suscitada no recurso especial, não obstante a oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pela Corte a quo. 3. O acesso à via excepcional, nos casos em que o Tribunal a quo, a despeito da oposição de embargos de declaração, não regulariza a omissão apontada, depende da veiculação, nas razões do recurso especial, de ofensa ao art. 535 do CPC. 4. A interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei n. 6.015/73 confere amparo legal para que transexual operado obtenha autorização judicial para a alteração de seu prenome, substituindo-o por apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive. 5. Não entender juridicamente possível o pedido formulado na exordial significa postergar o exercício do direito à identidade pessoal e subtrair do indivíduo a prerrogativa de adequar o registro do sexo à sua nova condição física, impedindo, assim, a sua integração na sociedade. 6. No livro cartorário, deve ficar averbado, à margem do registro de prenome e de sexo, que as modificações procedidas decorreram de decisão judicial. 7. Recurso especial conhecido em parte e provido. (REsp 737.993/MG, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 10/11/2009, DJe 18/12/2009).
[3] Resolução CFM nº 1.955/2010.
[4] Família. Ação de Retificação de Registro. Mudança de Sexo e Prenome. Conflito Negativo de Competência entre os Juízos da Vara de Registro Público da Comarca da Capital e da 2ª Vara de Família da Comarca da Capital. Competência do juízo de família eis que envolve a análise de mudança de sexo do requerente, além da alteração de seu registro civil. A despeito da omissão do CODJERJ, a ação objetiva mudança de estado e não apenas alteração do prenome, afinando-se com a competência da vara de família. Ademais, a questão demanda a realização de provas. Julgo procedente o presente conflito, determinando-se a competência do juízo suscitado para julgar o presente feito. (TJRJ, Conflito de Competência nº 0059904-92.2013.8.19.000, 16ª CC, Rel. Des. Marco Aurélio Bezerra de Melo, julg. Em 05/02/2014).
Veja também:
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