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O declínio e o descrédito das organizações sociais
José dos Santos Carvalho Filho
29/02/2016
A Lei 9.637, de 15.5.1998, dispôs sobre a qualificação atribuída a entidades que, mediante o cumprimento de alguns requisitos, passariam a ser consideradas organizações sociais. O país vivia a época do Programa Nacional de Publicização, perante o qual o Estado extinguiria pessoas e órgãos públicos incumbidos de atividades públicas delegáveis, transferindo-as a pessoas do setor privado, com a finalidade, entre outras, de reduzir os pesados encargos públicos e melhorar a gestão dos serviços de utilidade pública.
Os serviços a serem executados pelas organizações sociais (OS) são de natureza social, vale dizer, afastam-se das atividades empresariais e econômicas. A lei relacionou as atividades de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde (art. 1º). Como se pode verificar, são típicos serviços de utilidade pública, passíveis de execução em vetores não econômicos, mas voltados à satisfação social.
Ao analisar os paradigmas da referida lei em obra de nossa autoria, procuramos assinalar que “não se trata de nova categoria de pessoas jurídicas, mas apenas de uma qualificação especial, um título jurídico concedido por lei a determinadas entidades que atendam às exigências nela especificadas”. Consignamos, ainda, que quase sempre estarão fora do sistema da administração indireta, embora atuem em parceria com o Poder Público[1].
Uma das exigências da lei consiste em que as entidades qualificadas como organizações sociais não podem ter fins lucrativos, o que significa dizer que, diferentemente das empresas do setor privado destinadas a atividades empresariais, os valores que constituírem superávit em decorrência da prestação do serviço não podem ser incluídos em rubricas contábeis relativas a lucros, normalmente distribuídos entre os sócios, mas sim destinados a reinvestimentos na própria entidade e no serviço que executa.
A ideia que inspirou o legislador foi a de privatizar a execução de atividades que, anteriormente exercidas por órgãos públicos, poderiam muito bem sê-lo pelo setor privado no regime de parceria. Para tanto, foi previsto o contrato de gestão (art. 5º), como ferramenta para o acerto entre o Poder Público e a OS, pelo qual ficariam ajustadas as metas para a execução do serviço, sempre com a observância dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e economicidade (art. 7º).
Para concretizar a política de fomento no que toca à gestão do serviço, tal como o desejava a lei, admitiu-se a possibilidade de serem alocados às OS, recursos orçamentários e bens públicos, com o intuito de permitir a melhor execução do objeto avençado do contrato (art. 12). Ao mesmo tempo, poderia ser cedido o uso de bens públicos, com dispensa de licitação, desde que tal negócio fosse previsto no instrumento contratual (art. 12, § 3º).
Essas entidades, devidamente intituladas de “organizações sociais”, passaram a integrar a categoria do que os especialistas denominaram de “terceiro setor”, expressão cunhada pela posição singular que ocupam, qual seja, o ponto intermediário entre os setores público e privado. De início, quando começaram a se desenvolver os projetos de reforma administrativa do Estado, definiu-se que o terceiro setor integraria o setor público não estatal, numa indicação de que seriam públicas as atividades, mas privados os seus executores[2].
Uma fisionomia própria, então, foi traçada para a caracterização das entidades do terceiro setor e, por via de consequência, das organizações sociais. Em relação a suas funções, repita-se aqui o que, acertadamente, registrou Maria Tereza Fonseca Dias, para quem deveria destacar-se “seu papel no setor produtivo e sua possibilidade de controle social, voltado para a conformação da vontade política e para a reivindicação de suas funções de crítica e controle do Estado”[3].
Nos primórdios do sistema, reforçou-se a confiança de que as OS dariam início e desenvolvimento a um processo de eficiência gerencial de várias atividades cometidas ao Estado, que, como sempre ocorreu, se revelou incapaz de fazê-lo a contento por seus órgãos. Afinal, tratava-se de uma forma de descentralização administrativa que permitia que o Estado se concentrasse nos serviços essenciais e indelegáveis e delegasse ao setor privado a execução de tarefas de menor porte, embora relevantes do ponto de vista social.
Algumas vozes, todavia, não se convenceram com a excelência do sistema. Argumentava-se ser notório o intuito do legislador de criar um instrumento de fuga ao regime jurídico de direito público a que se sujeita a Administração. Aduzia-se, ainda, que a absorção de órgãos públicos pelas OS estaria a mascarar a atuação administrativa pelos órgãos estatais, porque, em última instância, servidores seriam emprestados e bens públicos utilizados por pessoas do setor privado[4].
Mas, em que pesem essas críticas, o sistema foi idealizado com um propósito positivo – a maior eficiência na atividade gerencial do Estado em serviços delegáveis. Quer dizer: o Estado não renunciaria à sua responsabilidade de titular do serviço, mas o delegaria a entidades privadas sob seu controle, ao invés de executá-lo per se.
Nesse aspecto, considerando um cenário regular, o sistema tinha tudo para dar certo. Sem dúvida, era de se levar em conta a natureza não econômica, mas relevante, dos serviços para a comunidade, a exigência da não lucratividade, a participação de representantes estatais no conselho de administração, o recurso a servidores e bens públicos e o controle estatal. Além disso, nos Estados Unidos e na Europa o modelo tem sido adotado com êxito para gerir museus, bibliotecas, escolas, hospitais e até penitenciárias[5].
Isso tudo – insista-se – se fosse num cenário regular. Ocorre que, tanto quanto a sociedade, o sistema da Administração continua impregnado de ineficiência e imoralidade. E, onde esses desvalores predominam, nenhum alvo consegue ser alcançado, e as metas permanecem inatingíveis. Assim, aquilo que era tido como solução para o aperfeiçoamento gerencial, passou, com o tempo, a ser visto com descrédito pela população, de modo que a cada dia maior é o declínio e o desprestígio das organizações sociais (e, também – por que não dizer – das demais entidades do terceiro setor).
O que é inegável é que, de acordo com o que se tem apurado, está sob suspeita a gestão de dezenas de OS, principalmente na área de saúde, na qual sua contratação representa uma tentativa de mitigar o caos no sistema de hospitais e assistência médica, alvo de vergonhosa prova de incompetência dos administradores públicos.
Alguns dados sobre a contaminação da imoralidade ao regime das OS merecem reflexão. No Município do Rio de Janeiro, das dez OS que administram 108 unidades de saúde oito estão sendo investigadas pelo Ministério Público por suspeita de irregularidades. As investigações têm como base diversas auditorias realizadas pelo Tribunal de Contas do Município. Constatou-se a aquisição de medicamentos mediante sobrepreço, cobranças indevidas por serviços não prestados, falta de recolhimento de encargos trabalhistas, atendimento incompatível e gastos indevidos. Em outra vertente, contratos de gestão investigados em Estados como S. Paulo, Bahia, Paraná e Mato Grosso contabilizam um montante aproximado de 452 milhões de reais.[6]
No sistema corrompido que acomete a Administração em geral, compreende-se facilmente o oportunismo de algumas OS no desempenho de sua atividade institucional. Ao mesmo tempo em que recebem recursos financeiros públicos, atuam livremente no terreno contratual e ninguém pode desconhecer que grandes conluios devem ocorrer entre a OS e seus fornecedores, com subsequente distribuição dos frutos da improbidade.
A origem da catástrofe aloja-se, sem qualquer dúvida, na costumeira incapacidade fiscalizatória por parte da Administração. Ou seja, de nada adianta o endereço da norma do art. 8º da Lei nº 9.637/1998:
Art. 8o A execução do contrato de gestão celebrado por organização social será fiscalizada pelo órgão ou entidade supervisora da área de atuação correspondente à atividade fomentada.
Se não funciona o exercício do controle administrativo (e, lembre-se, a OS é contratada pelo Estado), também não se revela eficaz a previsão de órgãos controladores. Vejamos o que dispõem os arts. 9º e 10 da mesma lei:
Art. 9o Os responsáveis pela fiscalização da execução do contrato de gestão, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade na utilização de recursos ou bens de origem pública por organização social, dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária.
Art. 10. Sem prejuízo da medida a que se refere o artigo anterior, quando assim exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público, havendo indícios fundados de malversação de bens ou recursos de origem pública, os responsáveis pela fiscalização representarão ao Ministério Público, à Advocacia-Geral da União ou à Procuradoria da entidade para que requeira ao juízo competente a decretação da indisponibilidade dos bens da entidade e o sequestro dos bens dos seus dirigentes, bem como de agente público ou terceiro, que possam ter enriquecido ilicitamente ou causado dano ao patrimônio público.
Observe-se que o legislador previu todas as formas de controle possíveis, envolvendo órgãos institucionalmente vocacionados para esse fim, como é o caso do Ministério Público e do Tribunal de Contas. Pois bem. Mesmo com esse arcabouço teórico de controle, as investigações sobre várias OS têm demonstrado que o sistema está carregado de distorções, precisando ser repensado ou extinto.
É desconfortável para a sociedade ser obrigada a reconhecer a extensão da improbidade e da ineficiência, apesar dos mandamentos constitucionais constitutivos onde estão relacionados os princípios dirigidos à Administração Pública. A ideia da criação foi digna de aplausos; a concretização tem sido uma terrível decepção.
Mas a verdade não pode esconder-se atrás dos fatos. As suspeitas sobre a atuação das OS cresce a cada dia, e com elas eleva-se também o descrédito social sobre a sua necessidade ou conveniência. Declínio e descrédito é tudo que se tem vislumbrado sobre tais entidades e, também, sobre o próprio terceiro setor.
[1] JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, Manual de direito administrativo, Atlas, 29ª ed., 2015, p. 367.
[2] LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA e NURIA CUNILL GRAU, org., O público não-estatal na reforma do Estado, FGV-Fund. Getúlio Vargas, 1999, p. 16.
[3] MARIA TEREZA FONSECA DIAS, Terceiro setor e Estado: legitimidade e regulação, Forum, 2008, p. 96.
[4] MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, Direito administrativo, Atlas, 25ª ed., 2012, p. 567.
[5] RUBEM CÉSAR FERNANDES, jornal O Globo, de 4.2.2016, pág. 15.
[6] Matéria em O Globo, de 18.1.2016, pág. 6.
Veja também:
- Adicional de 1/3 de férias e incidência do imposto de renda
- Breves comentários sobre as alterações da Lei Anticorrupção
- Distorções no regime jurídico das entidades privadas da administração indireta
- Informativo de Legislação Federal: resumo diário das principais movimentações legislativas
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