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PROCESSO CIVIL

Vulnerabilidade, igualdade e negócio jurídico processual no Novo CPC

LIMITAÇÃO PESSOAL INVOLUNTÁRIA

NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS

PARIDADE DE TRATAMENTO

VULNERABILIDADE PROCESSUAL

Fernanda Tartuce

Fernanda Tartuce

12/02/2016

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1. Breve notícia sobre o Novo CPC[1].

Há décadas a comunidade jurídica, após vivenciar intensos debates sobre a necessidade de repensar as leis processuais, vem constatando a mudança em diversos regramentos. Dezenas de reformas foram engendradas sobre o Código de Processo Civil de 1973 entre 1973 e 2013…

Por fim, após tantas mudanças decidiu-se em 2010 ser hora de promover uma nova estruturação processual.

Ao longo dos cinco anos de tramitação, muito se ouviu sobre os valores prestigiados na elaboração do Novo Código de Processo Civil: celeridade, efetividade e isonomia ganharam destaque nos discursos.

É importante aferir se esses valores foram concretamente contemplados no novo texto; afinal, não há como cogitar de acesso à justiça com qualidade sem analisar a possibilidade de que os sujeitos processuais possam efetivamente participar do feito.

A proposta deste artigo é, analisar se a vulnerabilidade foi contemplada de modo adequado e suficiente pelo legislador de modo a aferir se há condições para que o litigante vulnerável seja concretamente considerado no processo.

2. Vulnerabilidade processual: conceito e relevância

Vulnerabilidade processual é a suscetibilidade do litigante que o impede de praticar atos processuais em razão de uma limitação pessoal involuntária; a impossibilidade de atuar pode decorrer de fatores de saúde e/ou de ordem econômica, informacional, técnica ou organizacional de caráter permanente ou provisório[2].

Como é fácil perceber, a temática aborda situações de dificuldades e exclusões. As inúmeras desigualdades identificadas no Brasil repercutem intensamente no processo civil na medida em que muitos litigantes não conseguem, por conta de dificuldades insuperáveis a que não deram causa, se desincumbir dos encargos processuais[3].

Sendo a isonomia uma garantia constitucional, compete ao juiz assegurar às partes igualdade de tratamento. A conceituação é útil por permitir que o juiz reconheça com maior clareza a situação vulnerável de um litigante e possa engendrar iniciativas aptas a promover o equilíbrio em termos de oportunidades processuais.

Há certa controvérsia quanto ao uso dos termos vulnerabilidade e hipossuficiência[4]; considerando-se o sentido da expressão no dicionário e sua tradição no sistema brasileiro, hipossuficiência é sinônimo de vulnerabilidade econômica[5].

Vulnerabilidade indica suscetibilidade em sentido amplo, sendo a hipossuficiência uma de suas espécies (sob o viés econômico). A suscetibilidade do litigante, porém, pode advir de outros fatores involuntários que o acometam; como vulnerabilidade pode decorrer da condição pessoal, é essencial adotar critérios objetivos para sua aferição[6]. Traçar de maneira objetiva fatores que ensejam dificuldades adicionais para o litigante vulnerável e propor soluções é crucial para a igualdade real.

A insuficiência econômica, também chamada de hipossuficiência, tem repercussão processual na medida em que impede ou dificulta a realização de atos processuais. Sempre que um sujeito processual não conseguir dar andamento ou atuar para defender seu direito por força de um óbice econômico, deve-se perquirir se é legítimo que ele sofra tal limitação em razão do obstáculo pecuniário e atuar de forma coerente com a resposta.

Há também óbices geográficos: consideráveis dificuldades de locomoção ao local da prática dos atos processuais podem prejudicar a atuação em juízo por restrições de difícil ou inviável superação.

Debilidades na saúde também devem ser consideradas: a prática de certos atos processuais pode ser comprometida por problemas desta índole. A temática também toca situações que envolvem dependente e “cuidador”; muitas vezes este é uma pessoa próxima ao litigante (incapaz) e também pode estar passando porum grave problema de saúde; nesse cenário, ambos podem acabar não conseguindo estar presentes em juízo.

Há ainda quadros graves de desinformação pessoal: essa dificuldade pode ser gerada pelo desnivelamento cultural entre os litigantes, sendo marcada pela inexistência de informações e orientações que permitam o conhecimento dos direitos envolvidos. É evidente que tal fator interfere sobremaneira na performance do litigante sem defesa técnica.

A dificuldade no emprego da técnica jurídica também pode se verificar: dificuldades experimentadas em razão da falta de advogado, da atuação insuficiente deste e dos obstáculos para provar os fatos constitutivos do direito alegado são circunstâncias que impactam significativamente no acesso à justiça e na prática de atos processuais.

Por fim, pode ser constatada a vulnerabilidade organizacional: tal suscetibilidade acomete a pessoa que não consegue mobilizar seus recursos e estruturas para sua própria organização pessoal, encontrando restrições logísticas para sua atuação[7]. Como exemplos, considere o comprometimento da atuação dos indivíduos que não têm casa e/ou foram dela despejados e as limitações tecnológicas decorrentes da exclusão digital.

Feita esta breve exposição, cabe analisar se a vulnerabilidade, de acordo com os fatores objetivos aqui descritos, foi contemplada na Lei n. 13.105/2015.

A concepção de vulnerabilidade em termos amplos, enquanto cláusula geral e configurada segundo uma série de fatores objetivos, não foi contemplada na redação do Novo CPC. Isso não significa, contudo, que o legislador deixou de se preocupar com a igualdade das partes e a paridade de armas em peculiares previsões.

3. Negócios jurídicos processuais, vulnerabilidade e paridade de tratamento.

O vocábulo “vulnerabilidade” aparece apenas uma vez no Novo CPC em previsão bastante interessante.

O Novo Código contempla a inovadora possibilidade de que as partes convencionem sobre regras processuais[8]. Como bem expõe Robson Renault Godinho, a previsão de negócios jurídicos processuais insere-se no dever de “buscar um processo efetivamente democrático, em que convivam os poderes do juiz e a autonomia das partes, sempre balizados pela conformação constitucional dos direitos fundamentais[9]”.

Tratando-se de convenção sobre normas de processo, pressupõe-se que as partes estejam em condições razoáveis de igualdade para negociar em termos de informação, técnica, organização e poder econômico. Caso contrário, a disposição sobre o procedimento pode ser manipulada pela parte mais poderosa com vistas a se livrar de ônus e deveres, dificultando a atuação da parte mais fraca.

Prevendo a chance de potenciais abusos, o legislador adiantou-se em prever a possibilidade de controle judicial das convenções sobre procedimento, apontando a recusa de sua aplicação em casos de nulidade, inserção abusiva em contrato de adesão ou hipótese em que uma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade[10].

Sem definir nem especificar os critérios de identificação da vulnerabilidade, o dispositivo parece se referir a um conceito mais amplo que pode ser compatibilizado com a definição já exposta: a convenção não será válida quando um litigante estiver em clara situação de desvantagem em relação ao outro, estando suscetível a ponto de ter sua atuação em juízo prejudicada por qualquer dos fatores apontados (insuficiência econômica, desinformação pessoal, problemas de técnica jurídica, etc).

Como bem ressalta Rafael Sirangelo de Abreu, a igualdade deve funcionar como um limite para a aplicabilidade de avenças tanto nos negócios pré-processuais quanto nas convenções estipuladas durante o processo[11].

Imagine, por exemplo, o caso em que alguém assine um contrato aceitando a redução de prazos processuais e a assunção das despesas pelas provas que o outro venha a produzir em juízo. Para aferir a validade de tais convenções, será essencial aferir o contexto e o nível de informação das partes.

Em muitos contratos não há assistência advocatícia para um ou ambos os contraentes; caso neles haja pactos sobre alterações procedimentais, a falta de participação de advogado “quando da lavratura pode significar a incapacidade do contraente de prever as consequências da manifestação de vontade”[12].

Nesse sentido, merece destaque o Enunciado 18 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: há indício de vulnerabilidade quando a parte celebra acordo de procedimento sem assistência técnico-jurídica[13].

O Enunciado n. 135 do mesmo Fórum aponta que a indisponibilidade do direito material discutido no processo não impede, por si só, a celebração do negócio jurídico ora analisado. Para Flavio Tartuce, é difícil concordar com tal teor especialmente ante a necessidade de tutela efetiva dos direitos indisponíveis[14]. Como se percebe, a analise dos negócios jurídicos processuais tenderá a ensejar interessantes polêmicas.

Vale destacar que a disposição do Novo CPC em análise configura uma hipótese específica de proteção do litigante vulnerável. Não há na legislação a previsão da vulnerabilidade como princípio ou alguma definição a ser aplicada para promover uma diferenciação legítima em favor do litigante vulnerável.

O que reaparece como princípio orientador do processo é a “paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório[15]”.

As previsões apontam para o princípio da igualdade de tratamento no processo civil, derivado da garantia isonômica prevista na Constituição Federal (art. 5°, I).

Sabe-se que o princípio-garantia constitucional da igualdade, irradiado para as diversas áreas do direito, não é mais lido como mero promotor de “igualdade formal”, mas sim como vetor na busca da “igualdade material” com vistas a fomentar a efetiva igualdade – inclusive promovendo as diferenciações necessárias para tanto.

O processo civil é também um âmbito normativo adequado para a previsão de normas diferenciadas em favor de determinados sujeitos a fim de promover efetiva igualdade[16].

A consideração da isonomia em bases concretas, portanto, enseja o reconhecimento da existência de uma cláusula geral de vulnerabilidade como orientadora da condução do juiz no processo, a despeito da falta de previsão explícita na legislação.

Na redação original do Projeto de Lei do Senado n. 166/2010, que originou a Lei n. 13.150/2015, o mesmo artigo 7° trazia uma redação que contemplava, ao menos, um dos desdobramentos do conceito de vulnerabilidade; ali constava ser “assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório, em casos de hipossuficiência técnica”.

A redação original indicava que no desenvolvimento do processo dever-se-ia prestar especialmente atenção ao efetivo contraditório do litigante “hipossuficiente técnico” ou, em nosso conceito, do vulnerável técnico, apesar de não indicar as formas e hipóteses pelas quais se daria o zelo pelo efetivo contraditório.

Como bem pontuado por Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, o legislador e o juiz são obrigados a estabelecer as discriminações necessárias para garantir a participação igualitária das partes; em seu sentir, isso deve se verificar não só em caso de dificuldades técnicas, mas tambem em casos de dificuldade pela situação de direito material[17].

Apesar da supressão do texto na versão aprovada do Código, o princípio da igualdade de tratamento, em conjunto com a menção ao efetivo contraditório, impõe que o juiz considere a condição de vulnerabilidade do litigante durante todo o desenvolvimento do processo.

Não obstante a ausência de uma previsão ampla de vulnerabilidade na Lei n. 13.105/2015, várias previsões contemplam o litigante vulnerável na busca de superar alguns dos fatores que causam suscetibilidade e prejudicam a defesa de seus interesses em juízo.

A rica temática será exposta com maior detalhamento em ulteriores oportunidades.

Referências bibliográficas

ABREU, Rafael Sirangelo de. A igualdade e os negócios processuais. In Negócios Processuais. Coord.: Antonio do Passo Cabral, Fredie Didier Jr. e Pedro Henrique Pedrosa Nogueira. Salvador: Ed. Juspodivm, 2015, p. 193-214.

GODINHO, Robson Renault. A autonomia das partes e os poderes do juiz entre o privatismo e o publicismo do processo civil brasileiro. Civil Procedure Review, v.4, n.1: 36-86, jan-apr., 2013.

MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC – criticas e propostas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques De; COZZOLINO DE OLIVEIRA, Patrícia. Curso de Direito Processual Civil – Parte Geral – Vol. I. São Paulo: Ed. Verbatim, 2015.

TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. São Paulo: Método, 2012.

––––––. Vulnerabilidade no Processo Civil http://www.fernandatartuce.com.br/site/artigos/cat_view/38-artigos/43-artigos-da-professora.html?start=30 . Acesso 07 mai. 2015.

TARTUCE, Flávio. Impactos do novo CPC no Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015.


[1] Este artigo é parte de uma série que reproduz gradualmente o teor de anterior publicação: TARTUCE, Fernanda. Vulnerabilidade Processual no Novo CPC. In: Fredie Didier Jr; José Augusto Garcia de Sousa. (Org.). Coleção Repercussões do Novo CPC – v.5 – Defensoria Pública. 1ed. Salvador: Juspodvum, 2016, v. 1, p. 283-311.
[2] TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. São Paulo: Método, 2012, p. 184.
[3] A polêmica decorre de previsões do Código de Defesa do Consumidor; segundo tal legislação, todo consumidor é vulnerável, mas não necessariamente hipossuficiente. O consumidor é vulnerável por sua debilidade – sobretudo de informações – em comparação ao fornecedor; contudo, para fazer jus ao mecanismo facilitador de inversão do ônus da prova no processo, o CDC exige a demonstração de que, além de frágil, o litigante é tecnicamente hipossuficiente a ponto de não ter condições de se desincumbir da produção probatória (TARTUCE, Fernanda. Vulnerabilidade no Processo Civil http://www.fernandatartuce.com.br/site/artigos/cat_view/38-artigos/43-artigos-da-professora.html?start=30 . Acesso 07 mai. 2015).
[4] TARTUCE, Fernanda. Vulnerabilidade no Processo Civil, cit.
[5] O Código de Defesa do Consumidor, porém, ao mencionar também insuficiência técnica, acaba ensejando diferentes interpretações,
[6] TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. São Paulo: Método, 2012, p. 189.
[7] TARTUCE, Fernanda. Vulnerabilidade no Processo Civil, cit.
[8] Lei 13.105/2015, art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
[9] GODINHO, Robson Renault. A autonomia das partes e os poderes do juiz entre o privatismo e o publicismo do processo civil brasileiro. Civil Procedure Review, v.4, n.1, jan-apr., 2013, p. 39.
[10] Lei 13.105/2015, art. 190, parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
[11] ABREU, Rafael Sirangelo de. A igualdade e os negócios processuais. In Negócios Processuais. Coord.: Antonio do Passo Cabral, Fredie Didier Jr. e Pedro Henrique Pedrosa Nogueira. Salvador: Ed. Juspodivm, 2015, p. 205.
[12] ABREU, Rafael Sirangelo de. A igualdade e os negócios processuais. In Negócios Processuais, p. 208.
[13] Carta de Belo Horizonte: enunciados sobre o Novo CPC. Disponível em http://portalprocessual.com/carta-de-belo-horizonte-enunciados-sobre-o-novo-cpc/ . Acesso 07 mai. 2015.
[14] TARTUCE, Flávio. Impactos do novo CPC no Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015, p. 115.
[15] Eis o teor do art. 7º do NCPC. Também é prevista, como princípio da condução do processo pelo juiz, a igualdade de tratamento; a previsão do art. 139, I, ao indicar que incumbe ao magistrado “assegurar às partes igualdade de tratamento”, reproduz disposição já constante no art. 125, I do CPC/73; o tema será melhor desenvolvido adiante.
[16] Em publicação pretérita também utilizei a nomenclatura “isonomia” para indicar a necessidade de tratamento paritário, inclusive mediante iniciativas positivas para tanto (Cf. TARTUCE, Fernanda. Igualdade e vulnerabilidade no processo civil, cit., p. 97). Na Lei n. 13.105, contudo, o vocábulo “isonomia” parece ser mais utilizado para casos de “tratamento igual para iguais” e aparece especialmente relacionado a técnicas de coletivização de demandas e estabelecimento de “precedentes”, não se relacionando com o conceito de vulnerabilidade aqui empregado. Eis a redação dos dois dispositivos que mencionam o termo: “Art. 927, § 4° A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia”; “Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver, simultaneamente: II – risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica”.
[17] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC – criticas e propostas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 74-75.

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