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Por que escrever sobre o ECA? A História de um Livro, por Guilherme Nucci
CASTIGO FÍSICO E TRATAMENTO CRUEL E DEGRADANTE
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE COMENTADO
Guilherme de Souza Nucci
06/05/2015
Crianças e adolescentes, no mundo inteiro, precisam de muito amor, acima de tudo. Se algo, desta obra, resta firme em minha mente, distante de qualquer controvérsia ou polêmica, é essa simples necessidade, tão difícil de ser materializada por atos dos adultos.
Este é o meu primeiro trabalho publicado, em formato de livro, que foge das áreas de Penal e Processo Penal, motivo pelo qual assumo integral responsabilidade pelos novos estudos aos quais me dediquei no último ano; espero ter formado bagagem suficiente para expor o meu entendimento em área tão importante dentre todas as do Direito, que é a Infância e Juventude. Tenho para mim, hoje, com nitidez incontestável, tratar-se de matéria destacada das demais, com princípios próprios, normas específicas e operadores especializados. Não se confunde com o Direito Civil, embora dele aufira importantes substratos; não se mescla com o Direito Penal, de onde, também, capta relevantes bases; não depende integralmente de Processo Civil ou Penal, mas constrói procedimentos próprios; não se calca em Direito Administrativo, porém dele se serve para completar conceitos; finalmente, irmana-se com o Direito Constitucional, pois retira da Constituição Federal seus mais notórios princípios. É o Direito da Infância e da Juventude.
Por que escrever sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente? – indaguei-me há pouco mais de um ano. Por que não? – seguiu-me tal questão. Em primeiro lugar, no referido Estatuto, há vários crimes, cujo objeto jurídico tutelado é a boa formação físico-moral de crianças e adolescentes, em relação aos quais tive a oportunidade de tecer comentários, incluídos em minha obra Leis Penais e Processuais Penais comentadas. Em segundo, há as infrações administrativas, também com vistas a proteger o desenvolvimento positivo da personalidade infantojuvenil, cuja base se concentra no princípio da legalidade, similar ao Direito Penal. Em terceiro, emergem os atos infracionais, equiparados, por lei, aos crimes e contravenções penais, necessitando, pois, de uma análise científica de seu conceito e sua aplicação, o que se vincula, igualmente, ao Direito Penal. Em quarto, várias das garantias concedidas, expressamente, aos adolescentes advêm de normas-irmãs do Processo Penal, no tocante às quais já me debrucei noutras obras. Essas quatro primeiras razões seriam suficientes para que comentasse mais da metade do Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas outras questões vieram-me à mente, despertando-me basicamente um dever de estudar, conhecer a fundo, refletir e tecer críticas e sugestões ao cerne dessa Lei tão relevante para a sociedade brasileira. Sou pai, biológico e adotivo, além de ter sido voluntário, durante trinta anos, em unidades de acolhimento institucional de crianças e adolescentes em situação de risco. Ademais, vivi a experiência, no início da carreira, de ter atuado como juiz de menores, ainda sob a vigência do antigo Código de Menores. Porém, em lugar de me afastar dessa área infantojuvenil, permaneci a ela conectado por motivos pessoais.
Debrucei-me, então, nas leituras dos especialistas em Direito da Infância e Juventude, além de esmiuçar os pensamentos dos profissionais igualmente dedicados aos infantes e aos jovens, como psicólogos, assistentes sociais, pedagogos e tantos outros. Busquei a pesquisa de campo, conversando e entrevistando vários juízes da Infância e Juventude. Estive em contato com membros do Ministério Público e integrantes de equipes técnicas de inúmeras Varas da Infância e Juventude. Ouvi bastante. Conheci muito. Emocionei-me, conhecendo casos reais de crianças e adolescentes, cujo destino ainda é incerto e tal situação lhes é bem clara no âmago, despertando uma tristeza imensa. Creio que aprendi bastante e também apreendi sentimentos. A partir daí, ingressa a minha experiência como magistrado, hoje atuando em segundo grau, como professor e também como jurista, sempre em busca de mais conhecimento.
Sei da importância dos princípios regentes de todas as áreas do Direito, em particular o da dignidade da pessoa humana, que jamais poderia ser olvidado na sensível área infantojuvenil. Mas esta matéria goza de princípios próprios, dentre os quais um deles é evidentemente o sol no horizonte dos demais: o princípio da proteção integral, que se associa ao princípio da absoluta prioridade (ou do superior interesse) da criança e do adolescente. Cabe aos operadores do Direito respeitar, com fidelidade, os princípios norteadores da Infância e da Juventude, o que ainda não ocorre. Eis o primeiro motivo para preocupação.
Outro ponto distinto, no estudo do Estatuto da Criança e do Adolescente, não muito diverso de outras Leis, é o descaso do Poder Público para implementar as normas que ele mesmo – por intermédio do Legislativo – criou. Surgem inúmeros confrontos entre lei e realidade, entre Executivo e Judiciário, enfim, entre o certo e o errado, que necessitam solução adequada em nome do superior interesse da criança e do adolescente. É disso que muitos se esquecem: o Legislativo, ao editar mais leis, sem nem atentar para o descumprimento das anteriores; o Executivo, ao destinar verbas pífias para a área infantojuvenil; o Judiciário, ao permitir que Varas da Infância e Juventude sejam meros anexos de outras, sem juízes especializados, além de desaparelhadas, inclusive e especialmente, de equipe técnica de apoio.
A Constituição Federal indica, com perfeita clareza, constituir dever da sociedade assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, a proteção integral (art. 227). Portanto, somos todos responsáveis pelo insucesso, ainda predominante, no setor infantojuvenil; não somente no fórum, mas na vida em geral. O que fazemos pelas crianças e adolescentes do nosso país? Eis uma indagação que cada um deve responder a si mesmo. Da minha parte, envolvo-me na publicação deste trabalho, construído com muita dedicação, após vários momentos de intensa reflexão.
A família é a base da sociedade e goza de especial proteção do Estado (art. 226, CF). Entretanto, várias famílias se encontram, hoje, desestruturadas, sem conseguir proporcionar às suas crianças ou adolescentes o saudável ambiente que se espera para um desenvolvimento promissor em todos os prismas. Uma parte desse problema encontra-se em mãos do Executivo – Federal, Estadual e Municipal – que promete, em leis, programas de auxílio efetivo aos núcleos familiares, mas não lhes fornece o suficiente (ou absolutamente nada lhes proporciona). Pais e mães pobres, que mal conseguem cuidar de si mesmos, não precisam de um dinheirinho no final do mês, dado pelo Estado, sem nenhum outro recurso. Na vida real, eles necessitam ser considerados cidadãos, com acesso a muito mais que uma mesada; precisam de emprego, educação de qualidade, tratamentos de saúde, moradia digna, transporte público facilitado, dentre outros fatores. Somente assim, os que tiverem verdadeiro desejo de criar seus filhos, poderão fazê-lo.
Sob outro aspecto, não se pode desconhecer que o sistema legislativo brasileiro permite, com plena liberdade, o planejamento familiar, fundado na dignidade humana e na paternidade responsável, devendo o Estado propiciar recursos para o exercício desse direito (art. 226, § 7.o, CF). Nem sempre ter um filho é um ato de responsabilidade. Nem sempre os pais que o geraram efetivamente o querem como tal. Rejeições existem em todas as esferas, mormente quando estão presentes os sentimentos humanos, em grande parte indecifráveis. O Estado, em função do superior interesse da criança, precisa zelar pelo seu futuro, mesmo que, para isso, deva inseri-la em família substituta.
Certa vez, li uma colocação muito apropriada, no sentido de que o superior interesse e a absoluta prioridade são princípios em favor das crianças e dos adolescentes, mas, na prática, quem fala por eles são os adultos. São estes os intérpretes do que os infantes e os jovens querem para suas vidas, o que ambicionam, quais são seus sonhos e desejos, tomando as medidas concretas para garantir o bem estar de todos. Indaga-se: será que os adultos são bons intérpretes dos sonhos infantojuvenis? Tenho minhas dúvidas, em vários pontos, no tocante a certas normas do Estatuto da Criança e do Adolescente e, justamente por isso, expresso minhas críticas e faço também sugestões. Talvez, tornar – ainda mais – polêmicos determinados assuntos, permitindo o debate no universo adulto, somente traga bons frutos àqueles que não podem falar por si mesmos.
A família natural tem sido privilegiada pelo ECA e suas posteriores modificações legislativas. A adoção e a tutela ficam em segundo plano. A edição da Lei 12.010/2009, indevidamente chamada por muitos de Lei da Adoção é o espelho nítido desse quadro. Dificulta-se a adoção, tanto a nacional como – e especialmente – a internacional. Deveria denominar-se Lei da Família Natural. Independentemente da opção política tomada, pergunta-se: está o Estado garantindo o superior interesse “da” criança e do adolescente dessa forma? Será que a criança realmente prefere viver num ambiente conturbado, com brigas constantes, miséria absoluta, sem acesso à escola, desde que esteja com seus pais naturais? Aliás, na maioria absoluta dos casos, com sua mãe natural, pois o pai já a abandonou há muito tempo. Pode ingressar nesse cenário o padrasto, que já não é o genitor biológico. Ou optaria, se pudesse, por viver num lar de afeto e tranquilidade, com acesso à escola, presente e futuro, recebendo apoio e amor, mesmo que sejam de pais adotivos? Sem dúvida, são respostas difíceis. Nem me atrevo a responde-las, pois incidiria no mesmo erro de interpretar a vontade de crianças e adolescentes. Mas posso ousar apontar alguns erros e propor sugestões para corrigi-los.
A família biológica é o primeiro e principal núcleo de amor e afeto de qualquer ser humano. Creio nisso. Mas não é o único, pois afetividade se constrói, amor se conquista, carinho se obtém de variadas fontes. Aliás, não fosse assim, novas famílias não se formariam. Ao chegar à idade adulta, filhos saem de casa, embora possam amar seus pais biológicos, para amar, ainda mais, um “estranho”, que não possui consigo nenhum laço de sangue. Com esse “estranho” forma um novo núcleo familiar. É o amor construído – e não imposto por vínculo natural.
Outro relevante ponto a ser analisado é o fracasso das relações familiares de sangue em vários núcleos mundo afora. Irmãos que se odeiam; pais que se separam de filhos; filhos que rejeitam pai ou mãe; filho que mata o pai; filha que mata os pais; pai que estupra a filha etc. O número de desatinos encontrados em famílias naturais é impressionante e encontra-se estampado em Varas de Família, Varas da Infância e Juventude e, infelizmente, em Varas Criminais.
A realidade prova ser a família a base mais importante para o ser humano desenvolver-se em nível ideal, mas é preciso acrescer que deve ser igualmente a família ideal. Não é qualquer núcleo familiar, biológico ou não, que consegue proporcionar aos filhos o ambiente adequado para a sua boa formação moral, intelectual e física. Quero com isso evidenciar ser perfeitamente viável o fracasso da família natural, como também há os desastrosos deslindes de famílias adotivas. Se ninguém é dono da verdade, também pode-se afirmar que ninguém é dono do futuro. Eis que surge o Estado para contemporizar, ao máximo, as incertezas da vida, agindo em nome do superior interesse infantojuvenil. Deve o Poder Público preocupar-se em agraciar uma criança ou adolescente com um lar e não insistir em manter o filho na família onde é rejeitado.
São situações que eu vi e acompanhei – não li num manual ou artigo […], nem ouvi dizer.
Eis outro fato, que, segundo creio, ninguém contesta: viver institucionalizado, longe de qualquer família, é uma experiência negativa e dolorosa para a criança ou adolescente. Muito li e muito ouvi: um dia de abrigo para a criança ou adolescência soa como uma eternidade. Pelo menos, diante dessa incontroversa realidade, é fundamental que o Judiciário esteja atento, não permitindo a vida de crianças em abrigos, tornando-se adolescentes e depois sendo colocadas para fora, ao completarem 18 anos, sem destino, sem amparo, sem ninguém. Para quem não sabe, infelizmente, é exatamente assim que acontece em muitos casos concretos. O infante ingressa no abrigo em tenra idade, por variados motivos (abuso sexual; abandono; agressão etc.); em nome da família natural, passam-se meses tentando uma reaproximação, que, na essência, vários profissionais já sabem ser inútil (mas é o objetivo do ECA – respondem, se e quando indagados a respeito); os meses transformam-se em anos. Faço um destaque: enquanto isso, essa (ainda) criança está indisponível para adoção. Há casos teratológicos em que se busca a reaproximação com a família biológica até o menor atingir os seus 18 anos; passou a vida inteira no abrigo, sem carinho ou afeto suficiente, sem individualidade, à custa da preservação dos laços de sangue. Para mim, cuida-se de crueldade (isto sim, deveria constar de lei como tal). Quando completa a maioridade, abre-se a porta e ele é constrangido a sair. Como não houve recuperação alguma com a família biológica, ele se perde pela vida afora, morando com estranhos e começando a conhecer o mundo, da forma mais árida possível. Muitos voltam à instituição, onde passaram toda a infância e adolescência, buscando ajuda e não podem obter. O abrigo é para crianças ou adolescentes, mas não para adultos. É o paradoxo de um sistema enfermo, que precisa do remédio da reformulação de seus objetivos. São situações que eu vi e acompanhei – não li num manual ou artigo de outrem, nem ouvi dizer.
Aliás, valendo-me das três décadas de voluntariado numa entidade de acolhimento, dentre vários exemplos que cito ao longo desta obra, atrevo-me a narrar mais um: algum tempo depois da edição do ECA, três irmãos, abrigados na instituição há algum tempo, foram entregues, de volta, para a mãe biológica. Haviam ingressado – todos eles, recém-nascidos praticamente – um após o outro, com mínima diferença de idade. A mãe paria e internava. Quando saíram, perguntei ao dirigente da unidade o que havia acontecido. Disse-me que o juiz da infância e juventude convocou a mãe ao fórum e a colocou contra a parede: ou ficava com os filhos ou eles seriam postos para adoção. Ela, então, os levou. Simples assim. Semanas depois, encontro-me em meu veículo, parado num cruzamento, aguardando a abertura do sinal, quando um garoto bate no vidro, pedindo esmola. Reconhecemo-nos. Ele (o mais velho), que me chamava de tio, quando estava no abrigo, renovou o cumprimento: “oi, tio, que saudade; o senhor não quer me dar uma ajuda? Senão não posso voltar para casa, pois minha mãe briga”. Perguntei, rapidamente, sobre os três. Disse-me que viviam nas ruas a esmolar. Nunca mais me esqueci dessa cena e jamais poderia entender o sistema judiciário que lançou esses três meninos nas ruas. Seriam facilmente adotados, mas se optou pelo caminho mais simples ou conveniente. Chamou-se a mãe (eles não tinham pai registrado) e, seguindo a linha estatutária, entregou-se os garotos (um deles, praticamente bebê) de volta à “família natural”. Depois disso, ninguém foi checar o estado dessa família; nenhum relatório social foi apresentado ao juiz; o Poder Público não se ocupou mais daquela família. Lembre-se: eles foram entregues, um a um, pela mãe diretamente na instituição, com o beneplácito do Judiciário, que, anos depois, devolveu-os à mesma genitora que os havia abandonado. Quem puder explicar esse caso de maneira a extrair algo positivo que o faça. Eu sinceramente não consigo.
Retornando ao ponto iniciado em parágrafo anterior, quando o infante ingressa no abrigo, em tenra idade, pode ser colocado para adoção em alguns meses (jamais depois de anos) e possui grandes chances de viver em família substituta, muito querido e amado, como toda criança merece ser. Não há garantia de sucesso para a adoção, mas, comparativamente, famílias que adotam tratam melhor os seus filhos, enquanto muitas famílias biológicas abusam do poder familiar. A explicação é simples: quem adota buscou o filho; quem gera um filho nem sempre o quis. Quem adota vai atrás do sonho da paternidade/maternidade, por razões variadas. Quem gera o filho pode simplesmente buscar o sexo e ter por resultado uma concepção indesejada. O número de abortos clandestinos é outro fator a comprovar essa rejeição.
Não sou 100% a favor da adoção […]. Não sou […] 100% a favor da família biológica, como se fosse a única chance do ser humano ser feliz.
Privilegiar o convívio familiar natural é o ponto de partida, mas não pode ser necessariamente o ponto de chegada. Por isso, o meio-termo precisa ser colocado em prática, justamente pelo superior interesse infantojuvenil. E esse meio-termo está nas mãos dos operadores do Direito, auxiliados pelas equipes técnicas das Varas da Infância e Juventude. Quanto tempo é preciso para se ter certeza de que uma mãe abandonou seu filho e não o quer? Para responder essa indagação deve-se lembrar que o calendário infantojuvenil corre muito mais rápido do que o calendário do mundo adulto e das Varas da Infância e Juventude. O tempo da criança é extremamente dinâmico, pois cada dia ela evolui e altera seu estado físico e mental. O tempo dos operadores do Direito – aquele mundo dos prazos processuais – é infinitamente mais lento. Esse contraste tem sido fatal para o sucesso da primazia do princípio da absoluta prioridade.
Não sou 100% a favor da adoção, atropelando famílias de sangue. Não sou, também, 100% a favor da família biológica, como se fosse a única chance do ser humano ser feliz. Entendo-me, hoje, como defensor do interesse da criança e do adolescente, onde quer que ele se sinta bem, esteja bem e possa viver bem.
Outro aspecto encontrado nos escritos infantojuvenis concentra-se na terminologia. Muitos pretendem alterar a realidade pela simples adoção de novos termos. A novidade não é prática, mas puramente teórica. Explico. Há os que manifestam verdadeira repulsa pela expressão menor de 18 anos (e, pior, por quem a utiliza). Ninguém que se pretenda moderno, no sentido de atualizado, pode chamar uma criança ou adolescente de menor (decretam alguns). Ora, mas cronologicamente se trata de um menor de 18 anos. Para fins legais, o menor tem um certo e devido tratamento; o maior, outro. Emergem, então, argumentos com os quais não posso concordar: o filho do pobre é menor; o filho do rico é adolescente ou teen. Ao contrário, quem muitas vezes se apresenta para a polícia, no momento de um flagrante, como sendo de menor – para evitar a prisão – é o próprio adolescente. Pode haver, sim, um estigma em torno do termo menor, mas não foi criado intencionalmente por cientistas do Direito, nem por operadores. Meus filhos, por ora, são menores de 18 anos e não vejo nada de errado em mencionar isso. Pode parecer estranho uma referência a tal ponto na apresentação da obra, porém é preciso cessar a polícia e a censura dos termos – e a política das expressões. Não bastasse, agora surge a expressão adolescente em conflito com a lei, demandando a eliminação do adolescente infrator. É isso que muda a realidade das unidades de internação? Essa alteração modifica alguma coisa na vida real do jovem? Absolutamente, nada. O próprio Legislativo patrocina essa alteração, como na Lei 12.594/2012. Ora, quem pratica ato infracional é um infrator. Quem comete um crime, criminoso. Trocou-se, ainda, o termo abrigo por acolhimento institucional. Há quem sustente a existência de um direito penal juvenil, expressão com a qual não concordo, mas é mera terminologia.
Decididamente, não são os termos ou expressões que maculam o sistema infantojuvenil no Brasil; é o manifesto descaso do Poder Público. Concentrar os esforços nessa crítica, para auferir modificações efetivas é o objetivo responsável do infantojuvenilista – e não se referir ao menor de 18 anos com as formas politicamente corretas, como se as outras fossem ofensivas.
Não pretendo escrever linhas em prol da criança e do adolescente fazendo parte do coro dos contentes. Esclareço: são os que simplesmente comentam a lei, como se ela fosse cumprida à risca, sem tecer críticas e sem manifestar opinião pessoal. São anódinos. Nunca constituem minoria em polêmicas, pois não tem posição. Recuso-me a isso. Ao contrário, visualizei, ao longo de décadas, o desprestígio da pessoa menor de 18 anos no Brasil. Não tem voz; não tem amparo; não tem afeto; não tem estudo; não tem tratamento de saúde. Não tem o que a Constituição Federal expressamente promete (art. 227, caput). Portanto, segundo me parece, é fundamental mudar o enfoque do mundo do dever-ser para o universo do ser. Assim sendo, menciono outro desvio da rota do superior interesse da criança e do adolescente, trazido pela Lei 12.010/2009.
A referida Lei 12.010/2009, que incentiva ao máximo o convívio familiar biológico, quando tratou da adoção, evidenciou um lado, no mínimo, paradoxal. Debateremos ao longo desta obra a vedação à adoção dirigida, as dificuldades para a adoção internacional e também a criação de uma fila de postulantes à adoção, que mais parece um conjunto de consumidores à espera de um produto. Esses equívocos – ainda bem – têm sido corrigidos pelo Poder Judiciário, que busca privilegiar o superior interesse da criança e do adolescente. Como guardião das leis, mas sobretudo da Constituição Federal, não se poderia esperar outra postura.
Veio-me à memória a frase de Charles Dickens: “a família não consiste apenas daqueles com quem compartilhamos nosso sangue, mas inclui também aqueles por quem daríamos o nosso sangue”. Não é assim que escolhemos os nossos amigos? Não é assim que se formam os casais? Deve ser assim também no universo da criança e do adolescente.
Dentre os vários artigos e livros dos especialistas da área da Infância e Juventude, encontrei pouco material tratando do permitido procedimento de escolha de crianças (especialmente crianças) e adolescentes quando da inscrição e habilitação para adotar. A lei silencia integralmente a esse respeito. Alguns parcos comentários encontrados mencionam o acerto desse método, pois propicia, no futuro, o sucesso da adoção. Se bem entendi, escolher uma criança recém-nascida, branca, do sexo feminino, saudável, significa garantir o sucesso da nova família? Afinal, esse é o perfil da criança ideal no Brasil. Está errado, pelos seguintes motivos, dentre outros: a) é a criança que escolhe a família (pelas mãos dos operadores do Direito) e não o adulto que escolhe o filho/a; b) estimula-se ao máximo a abolição do preconceito racial, com leis e campanhas (inclusive no futebol), enquanto, justamente no delicado movimento de formação da família, permite-se o preconceito correr solto; c) adoção não é para todo mundo – disse um juiz paulista; sou obrigado a concordar, pois quem muito escolhe um filho, não me parece preparado a adotar; adoção é, acima de qualquer coisa, doação, o que é incompatível com seleção de cor, sexo, cor de olho, cabelos etc.; d) com o devido respeito aos que pensam de modo contrário, mas, em minha concepção, escolhe-se, com naturalidade, a cor de um filhote de animal; nunca de um ser humano. Deveriam estar na frente do tal cadastro os postulantes que não fazem discriminação, aceitando qualquer criança. Eles deveriam ser os primeiros a ser chamados, em qualquer circunstância.
Recordo-me da seguinte passagem: “este filho não veio do seu óvulo e do seu espermatozoide, mas tem uma alma sem cor e deseja compartilhar de sua vida, mesmo quebrando as regras da geração biológica. Veio da sua potencial afetividade e da vontade de se doar e de querer viver uma nova família, com todas as alegrias e dificuldades” (Hália Pauliv de Souza & Renata Pauliv de Souza Casanova, Adoção. O amor faz o mundo girar mais rápido, p. 17, grifamos). Não há nada de utópico nisso. Ao contrário, está-se afirmando a raiz da cidadania, num mundo despido de preconceitos.
[Adolescentes,] na essência, são carentes de afeto, de amparo e de orientação. Precisam muito mais de apoio do que de repressão.
Quanto aos adolescentes autores de atos infracionais, concordo plenamente com a visão de que não os cometem, ao menos nessa fase da vida, porque desejam praticar o mal ou infringir de propósito a lei. São seres humanos em desenvolvimento físico-mental, com particular foco para a sua personalidade. Na essência, são carentes de afeto, de amparo e de orientação. Precisam muito mais de apoio do que de repressão; necessitam de educação, bem precioso, obtido em família, na escola e em comunidade; idealizam uma vida, saem em busca e equivocam-se quanto ao método. Tenho por certo que o Poder Público – quase sempre ele – é o responsável maior pelo incremento dos atos infracionais, tendo em vista que literalmente abandona as crianças, seja em suas famílias desestruturadas na origem, seja em acolhimentos institucionais perenes. Surge o círculo vicioso inconfundível. Do berço para as ruas, sem freios, sem orientação, sem condições dignas de vida. Da sobrevivência quase selvagem do dia-a-dia, essas crianças se transformam em adolescentes e, com isso, surge a força física, associada à falta de responsabilidade, fazendo com que muitos partam para o lado mais fácil desse vale-tudo, que é justamente a infração. Por que essas crianças cresceram na rua o tempo todo? É um direito infantil ser destratado, menosprezado, mal alimentado, como alguns sugerem, ao defender o direito de estar na rua? Mais uma vez, em minha visão, está errado. Se um filho nosso não cresce nas ruas, por que haveria o direito do filho dos outros de fazê-lo? Inexiste direito nessa agrura da vida; o que existe é falta de compaixão e irresponsabilidade do Estado. Em tenra idade, como preceitua o ECA, a criança tem outros direitos, tais como brincar, divertir-se, praticar esportes, ter uma família onde encontre amparo – biológica ou substituta, ter acesso a educação e morada digna. Pode-se sustentar que um infante é feliz vivendo embaixo de um viaduto, sozinho, cuidando de receber migalhas para se alimentar? Não é crível, segundo o disposto pelo art. 227, caput, da Constituição Federal.
Assim sendo, as crianças largadas pelo Poder Público, tornam-se problemas a esse mesmo Estado desidioso, que, além de não cuidar dos pequenos, ignora os jovens, bastando acompanhar o estado lastimável de várias unidades de internação. Abandonar os infantes tem vários prismas, passando pelo critério comodista de deixá-los em famílias naturais completamente desestruturadas, a pretexto de que a vida com os parentes de sangue é tudo o que a criança necessita, até alcançar o descaso das que são abrigadas em instituições por prazo indeterminado.
Diante desse cenário viciado – e apesar dele – creio firmemente em recuperação do tempo perdido, tratando os jovens infratores com benevolência e estendendo-lhes a mão do apoio, que provavelmente nunca tiveram, mas impondo limites, aliás, os mesmos que deveriam ter composto o seu universo educacional na infância. As medidas socioeducativas – todas, sem exceção – precisam ser vistas como as chances ideais para o adolescente aprumar-se, antes de completar a maioridade, delinquir e ser lançado no nefasto mundo dos presídios. Até mesmo a internação deve produzir bons frutos; não se pode encará-la como um martírio, sob pena de negar a própria essência do Estatuto e, além dele, da Constituição Federal. Deve ser excepcional, breve, adequada, sem dúvida, mas precisa existir em certos casos. Por isso, surgiu a lei da execução da medida socioeducativa, possibilitando a criação do programa individual de atendimento (PIA), que envolve progressão e regressão no âmbito educacional, como se dá em qualquer nível, com qualquer pessoa. Críticas já surgiram, mormente as voltadas ao aspecto da viabilidade de regressão. São bem-vindas, pois fomentam o debate e aprimoram os porquês da existência da medida socioeducativa.
Por todo o exposto, não somente o Estatuto da Criança e do Adolescente é comentado, mas também a Lei 12.594/2012, que tratou da execução da medida socioeducativa, com paradigmas muito semelhantes à Lei de Execução Penal. Porém, observa-se que a referida Lei buscou, positivamente, regular uma fase do procedimento, que estava esquecida: a execução do conteúdo da sentença no processo de conhecimento do ato infracional. E o fez, na maior parte dos dispositivos, corretamente.
Durante a elaboração desta obra, surgiu a Lei 13.010/2014 (denominada Lei da Palmada), pretendendo fazer o País ingressar no Primeiro Mundo, onde vários ordenamentos já proibiram a simples palmada, como método de educação infantojuvenil. Recuso-me a crer que, diante do manifesto descaso do Poder Público com a infância e a adolescência, seja essa a preocupação do momento. Enquanto vários dispositivos do ECA são flagrantemente descumpridos por profissionais do Executivo e também do Judiciário, o Legislativo, em lugar de prever sanções severas para isso, preocupa-se em vedar a palmada.
Não pretendo ingressar no mérito do método educacional – se com palmada ou sem palmada. A vida nos ensina – e muito – para que hoje, em minha casa, meus filhos sejam educados com limites, mas sem qualquer agressão física. Mas isso sou eu. Não quer dizer que aplauda a intervenção do Estado na intimidade familiar, nem aprove a Lei 13.010/2014, porque se realmente o Poder Público agisse como deveria, jamais permitiria que filhos espancados pelo pai ou pela mãe (ou ambos) voltassem aos seus algozes algum tempo depois, a pretexto de que estão sempre bem ao lado dos “parentes de sangue”. Esse mesmo Estado que intenciona conceituar singelas correções como castigos físicos e tratamento cruel e degradante, pretendendo ditar a famílias honradas, de bem, que amam seus filhos, como educá-los, não dá conta de zelar pelos mais pobres e muito menos pelos que são colocados sob sua tutela, como carentes ou como infratores.
Para o atual estado vivenciado pelas crianças e adolescentes do nosso país, a edição da Lei 13.010/2014 simboliza a alienação do nosso Legislativo. Buscou-se, inclusive, conceituar castigo físico e tratamento cruel e degradante, fazendo-o de maneira insatisfatória e banalizando termos tão relevantes. Leis raramente devem introduzir conceitos, pois eles são objetos da ciência, que os estuda de acordo com a dinâmica da vida real. Na prática, a novel Lei desmereceu os termos cruel e degradante, geralmente reservados para a tortura, um dos delitos mais graves contra a humanidade, da forma como os definiu. Além disso, introduziu normas que não vão alterar absolutamente nada a prática. Não se pode acertar sempre, mas também não se deve errar sempre. Eis uma grande falha em nosso sistema: determinada lei nem é ainda aplicada integralmente quando outra surge buscando corrigi-la.
Estudar o Estatuto da Criança e do Adolescente significa conhecer um pouco mais do que todos nós queremos para os nossos filhos e para os filhos de outros brasileiros; comentá-lo representa a oportunidade de tecer críticas construtivas, propondo soluções; ingressar no tema infantojuvenil provoca sentimentos ambivalentes de esperança e incredulidade.
Todos podemos errar – e certamente temos registros de nossos equívocos ao longo da vida – junto à nossa família natural, seja na posição de pais, seja na de filhos. Dos nossos erros, para os cultores da esperança, emergem as oportunidades de redirecionar o caminho da vida, seja formando ou reformulando nossos núcleos familiares.
Esta obra é um estudo dinâmico, acompanhado da voz dos tribunais, associado a relevantes opiniões doutrinárias, nem sempre de acordo com a deste autor, mas com a fiel observância de um princípio básico em ciência: posicionamento. Não pretendo acertar em tudo o que defendo; no entanto, preciso sempre defender o meu entendimento; sem isso, não me sentiria um autor, mas um compilador das ideias alheias. E se fosse para apontar as teses de terceiros, melhor seria escrever uma resenha dos mais indicados livros e artigos. Por isso, tenho a ousadia, no bom sentido, de esmiuçar as linhas estatutárias infantojuvenis, em todos os seus prismas, buscando contribuir, à minha maneira, com as crianças e adolescentes do meu País.
Em busca da Constituição da República Federativa das Crianças e dos Adolescentes do Brasil, o subtítulo deste livro é o mais importante para mim.
Lançamos a Editora Forense e eu um Estatuto da Criança e do Adolescente comentado, acompanhado da Lei de Execução das Medidas Socioeducativas, igualmente comentada, mas, sobretudo, escrevi algumas linhas que vão além de simples comentários ao texto de lei, avançando por meandros outros, desde o sentimento de ser pai, biológico e adotivo, passando pela minha experiência de magistrado, professor, estudioso e voluntário em entidade assistencial, até a expectativa que acredito seja de toda a sociedade brasileira no sentido de efetivamente mudar para melhor o cenário das crianças e dos adolescentes – do presente ao futuro, sem o conformismo do passado.
Agradeço o empenho da Editora Forense para o lançamento deste título inédito e submeto-o ao leitor, para que possamos, juntos, verificar acertos e erros na operacionalização cotidiana dos direitos das crianças e adolescentes.
Posso ser mais um a escrever sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas também posso ser um dos que auxilia a fazer diferença nesse tão conturbado mundo de cerceamento de direitos fundamentais. Por isso, fugindo completamente à praxe de uma apresentação, permito-me terminar com uma passagem simples, talvez até piegas para alguns, mas que me significa muito.
“Era uma vez um escritor que morava em uma tranquila praia, junto de uma colônia de pescadores. Todas as manhãs ele caminhava à beira do mar para se inspirar, e à tarde ficava em casa escrevendo. Certo dia, caminhando na praia, ele viu um vulto que parecia dançar. Ao chegar perto, ele reparou que se tratava de um jovem que recolhia estrelas-do-mar da areia para, uma por uma, jogá-las novamente de volta ao oceano. ‘Por que está fazendo isso?’, perguntou o escritor. ‘Você não vê!’, explicou o jovem. ‘A maré está baixa e o sol está brilhando. Elas irão secar e morrer se ficarem aqui na areia’. O escritor espantou-se. ‘Meu jovem, existem milhares de quilômetros de praias por este mundo afora e centenas de milhares de estrelas-do-mar espalhadas pela praia. Que diferença faz? Você joga umas poucas de volta ao oceano. A maioria vai perecer de qualquer forma.’ O jovem pegou mais uma estrela na praia e jogou-a de volta ao oceano e olhou para o escritor. ‘Para essa eu fiz a diferença’. Naquela noite, o escritor não conseguiu dormir, nem sequer conseguiu escrever. Pela manhã, voltou à praia, uniu-se ao jovem e juntos começaram a jogar estrelas-do-mar de volta ao oceano.” (Lidia Natalia Dobrianskyj Weber, Laços de ternura. Pesquisas e histórias de adoção, p. 64).
Texto extraído da obra Estatuto da Criança e Adolescente Comentado, Guilherme de Souza Nucci, 1ª. edição, Ed. Forense.Clique e conheça a obra. |
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