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A Lei da Guarda Compartilhada (ou Alternada) Obrigatória – Parte I
Flávio Tartuce
25/03/2015
Neste texto resolvi tratar da nova legislação relativa à guarda compartilhada, promulgada ao final de 2014. Penso ser muito importante, neste momento, aprofundar a abordagem do preceito emergente, o que será feito em dois textos. Conforme tenho destacado em aulas e exposições sobre o assunto, parece-me que o novo diploma tende a intensificar os conflitos familiares nos próximos anos, gerando ainda mais problemas.
Como é notório, após cuidar da separação judicial e do divórcio, o Código Civil de 2002 elenca as regras referentes à “Proteção da Pessoa dos Filhos”. Sobre esse tema, a codificação material traz disposições importantes, em especial nos seus arts. 1.583 e 1.584. Tais artigos foram profundamente modificados pela Lei n. 11.698, de 13 de junho de 2008. Sucessivamente, houve nova alteração por meio da Lei n. 13.058, de 22 de dezembro de 2014, originária do Projeto de Lei n. 117/2013, denominada por alguns como Lei da Guarda Compartilhada Obrigatória. O projeto aprovado modificou outros comandos da codificação privada, mas aqui vamos nos ater aos citados arts. 1.583 e 1.584 do Código Civil.
Voltando a momento anterior ao Código Civil de 2002, a Lei n. 6.515/1977 estabelecia a influência da culpa na fixação da guarda. De início, o art. 9.º da Lei do Divórcio prescrevia que, no caso de dissolução da sociedade conjugal pela separação judicial consensual, seria observado o que os cônjuges acordassem sobre a guarda dos filhos. No caso de separação judicial fundada na culpa, os filhos menores ficariam com o cônjuge que não tivesse dado causa à dissolução, ou seja, com o cônjuge inocente (art. 10, caput). Se pela separação judicial fossem responsáveis ambos os cônjuges, os filhos menores ficariam em poder da mãe, salvo se o juiz verificasse que tal solução pudesse gerar prejuízo de ordem moral aos filhos (art. 10, § 1.º). Sendo verificado pelo juiz que os filhos não deveriam permanecer em poder da mãe nem do pai, seria possível deferir guarda a pessoa notoriamente idônea, da família de qualquer dos cônjuges (art. 10, § 2.º, da Lei do Divórcio).
No sistema da redação original do Código Civil de 2002, preceituava o art. 1.583 que, no caso de dissolução da sociedade conjugal, prevaleceria o que os cônjuges acordassem sobre a guarda de filhos, no caso de separação ou divórcio consensual. Na realidade, a regra completava a proteção integral da criança e do adolescente consagrada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990). Não havendo acordo entre os cônjuges, nos termos da redação original da codificação material, a guarda seria atribuída a quem revelasse as melhores condições para exercê-la (art. 1.584 do CC/2002). O parágrafo único deste comando legal enunciava que a guarda poderia ser atribuída a terceiro, se o pai ou a mãe não pudesse exercê-la, de preferência respeitada a ordem de parentesco e a relação de afetividade com a criança ou o adolescente.
Percebe-se que o Código Civil de 2002, em sua redação original, mudou o sistema anterior de guarda, uma vez que a culpa não mais influencia na determinação do cônjuge que a deterá, ao contrário do que constava do art. 10 da Lei do Divórcio, norma revogada tacitamente pela codificação privada, diante de incompatibilidade de tratamentos. Assim, constata-se que não houve qualquer impacto da Emenda do Divórcio (EC/2010) sobre a guarda, eis que a culpa já não mais gerava qualquer consequência jurídica em relação a tal aspecto.
A expressão melhores condições, constante da redação originária do art. 1.584 do CC/2002, sempre foi como uma cláusula geral. E para preenchê-la a doutrina nacional reiteradamente propunha o atendimento do maior interesse da criança e do adolescente. Nesse contexto, Maria Helena Diniz, com base na doutrina francesa, sempre apontou a existência de três critérios, três referenciais de continuidade, que poderiam auxiliar o juiz na determinação da guarda, caso não fosse possível um acordo entre os cônjuges. O primeiro deles seria o continuum de afetividade, pois o filho deve ficar com quem se sente melhor, sendo interessante ouvi-lo, sempre que isso for possível. O segundo é o continuum social, pois a criança ou adolescente deve permanecer onde se sente melhor, levando-se em conta o ambiente social, as pessoas que o cercam. Por fim, cabe destacar o continuum espacial, eis que deve ser preservado o espaço do filho, o “envoltório espacial de sua segurança”, conforme ensina a Professora Titular da PUCSP. Justamente por esses três critérios é que, geralmente, quem já exercia a guarda unilateral sempre teve maiores chances de mantê-la. Até então a guarda unilateral com regulamentação de visitas era a única opção prevista expressamente em lei
Reafirme-se que com a edição da Lei n. 11.698, de 13 de junho de 2008, as redações dos arts. 1.583 e 1.584 do CC/2002 sofreram alterações substanciais. De início, o art. 1.583, caput, passou a expressar que a guarda será unilateral ou compartilhada. Assim, seguindo o clamor doutrinário, a lei passou a consagrar, expressamente, a última modalidade de guarda. Nos termos legais, a guarda compartilhada é aquela em que há a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. O § 1.º do art. 1.583 define a guarda unilateral como a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua. Esses diplomas não sofreram qualquer mudança com a Lei n. 13.058/2014.
Porém, determinava o § 2.º do art. 1.583 do CC/2002 que a guarda unilateral seria atribuída ao genitor que revelasse as melhores condições para exercê-la, o que era repetição da anterior dicção do art. 1.584 do CC/2002. Todavia, o preceito foi além, ao consagrar alguns critérios objetivos para a fixação dessa modalidade de guarda, a saber: a) afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; b) saúde e segurança; c) educação. Tais fatores estavam na linha dos parâmetros expostos por Maria Helena Diniz, o que demonstrava que a lei apenas confirmava o que antes era apontado pela doutrina nacional.
Com a Lei n. 13.058/2014 o diploma passou a estabelecer que “na guarda compartilhada, o tempo de custódia física dos filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos”. Em suma, nota-se que os critérios antes mencionados foram retirados, com a revogação dos três incisos do art. 1.583, § 2º, da codificação privada; o que não nos parece salutar.
Ademais, com o devido respeito ao pensamento contrário, a este colunista a novel legislação traz outros sérios problemas. O principal deles é a menção a uma custódia física dividida, o que parece tratar de guarda alternada e não de guarda compartilhada. Continuamos a seguir a ideia de que a guarda alternada é aquela em que o filho permanece um tempo com o pai e um tempo com a mãe, pernoitando certos dias da semana com o pai e outros com a mãe. A título de exemplo, o filho fica sob a custódia do pai de segunda a quarta-feira; e da mãe de quinta-feira a domingo. Essa forma de guarda não é recomendável, eis que pode trazer confusões psicológicas à criança, como bem desenvolve a juspsicanalista Giselle Câmara Groeninga em sua tese de doutorado defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Como ela destaca, a guarda alternada acaba por privilegiar mais o que os pais veem como seus direitos, “sem considerar os seus reais efeitos para o desenvolvimento da criança”.
Dois desses direitos dos pais, notoriamente egoísticos, podemos destacar de imediato. O primeiro é o de reduzir ao máximo os encontros com o antigo consorte, o que é facilitado pela existência de dois lares. O segundo diz respeito aos pleitos de redução ou exoneração de valores alimentícios, o que vem ocorrendo perante o Poder Judiciário sob a vigência da nova lei.
Em verdade, a nova norma até pode parecer bem intencionada, sob o argumento de trazer a ideia de igualdade parental, superando o modelo monista da guarda unilateral. Porém, ela verdadeiramente esconde em seu conteúdo uma armadilha jurídica, como um Cavalo de Tróia Legislativo. A propósito, conforme destacado por Waldyr Grisard Filho na última Revista Informativa do IBDFAM, ainda em comentários ao projeto que gerou a lei, “a norma projetada não só mantém vivos alguns dos velhos equívocos à sua atribuição como ressuscita outros, de nefasta memória, como a guarda alternada, nunca disciplinada em nosso ordenamento jurídico. Assim, a guarda compartilhada permanece na berlinda”.
Pertinente lembrar que a guarda alternada é também chamada de guarda do mochileiro, pois o filho sempre deve arrumar a sua mala ou mochila para ir à outra casa. Não se trata de um mito, mas de uma realidade que deve ser mais profundamente debatida. Se existem estudos de psicanalistas e juristas que apontam não existir problema na alternância de lares; também existem outros relevantes trabalhos que afirmam o contrário, como o da Professora Giselle Groeninga, aqui exposto. Se há séria divergência, especialmente em aspectos meta-jurídicos, melhor seria não mudar a lei, ou pelo menos debater a então proposta legislativa mais profundamente, o que não ocorreu. Efetivou-se uma tentativa de solucionar o problema da prevalência da guarda unilateral com a instituição generalizada da guarda alternada, o que é lamentável.
Continuamos a afirmar que a alternância de guarda e de lares é altamente inconveniente, pois a criança perde seu referencial, recebendo tratamentos diferentes quando na casa paterna e na materna. O problema não diz respeito a gênero, mas a espaço e a convivência social. Qual será a turma de amigos do filho? Onde ele irá desempenhar as atividades complementares, esportivas e intelectuais, para a sua formação? Estudará na escola próxima a qual dos lares? Conviverá mais com os filhos dos amigos do pai ou da mãe? Como irá trabalhar psicologicamente as informações recebidas nos dois ambientes? Em grandes cidades e em situações concretas de pais que moram em municípios distintos a nova lei é praticamente inaplicável.
Acrescente-se que o equívoco foi percebido pelo Professor José Fernando Simão, que participou da audiência pública no Senado Federal de debate do então Projeto de Lei n, 117/2013. Conforme artigo publicado ao final de 2014, pontua o jurista:
“Este dispositivo é absolutamente nefasto ao menor e ao adolescente. Preconiza ele a dupla residência do menor em contrariedade às orientações de todos os especialistas da área da psicanálise. Convívio com ambos os pais, algo saudável e necessário ao menor, não significa, como faz crer o dispositivo, que o menor passa a ter duas casas, dormindo às segundas e quartas na casa do pai e terças e quintas na casa da mãe. Essa orientação é de guarda alternada e não compartilhada. A criança sofre, nessa hipótese, o drama do duplo referencial criando desordem em sua vida. Não se pode imaginar que compartilhar a guarda significa que nas duas primeiras semanas do mês a criança dorme na casa paterna e nas duas últimas dorme na casa materna. Compartilhar a guarda significa exclusivamente que a criança terá convívio mais intenso com seu pai (que normalmente fica sem a guarda unilateral) e não apenas nas visitas ocorridas a cada 15 dias nos fins-de-semana. Assim, o pai deverá levar seu filho à escola durante a semana, poderá com ele almoçar ou jantar em dias específicos, poderá estar com ele em certas manhãs ou tardes para acompanhar seus deveres escolares. Note-se que há por traz da norma projetada uma grande confusão. Não é pelo fato de a guarda ser unilateral que as decisões referentes aos filhos passam a ser exclusivas daquele que detém a guarda. Decisão sobre escola em que estuda o filho, religião, tratamento médico entre outras já é sempre foi decisão conjunta, de ambos os pais, pois decorre do poder familiar. Não é a guarda compartilhada que resolve essa questão que, aliás, nenhuma relação tem com a posse física e companhia dos filhos”.
Sabe-se que o desenvolvimento do ser humano desde os anos iniciais de vida demanda muito tempo e muita dedicação. Empenho, disciplina e esforço são palavras de ordem para os pais, havendo exigências sobre as figuras paternas e maternas que não eram realidade no passado. Já é difícil a construção de laços afetivos sociais, internos e externos, em um lar apenas. Imaginem em dois. A sociedade contemporânea exige papéis dos pais como se fossem Super-homens e Mulheres-Maravilhas, quando a realidade nos coloca muito distantes das fantasias de super-heróis.
Repise-se que a guarda compartilhada ou guarda conjunta representa a hipótese em que pai e mãe dividem as atribuições relacionadas ao filho, que irá conviver com ambos, sendo essa sua grande vantagem. Esse é o conceito que permanece no art. 1.583, 1º, do Código Civil, como antes exposto. Todavia, há uma total contradição da norma ao estabelecer, no § 3º do mesmo diploma, a ideia de divisão de moradias, comum na alternância da guarda. O paradoxo também pode ser retirado do inciso II do art. 1.584 da própria codificação, ora modificada, ao enunciar que a guarda compartilhada poderá ser decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe. Distribuir o tempo de convívio igualmente é comum na guarda alternada. Para sanar o conflito existente na própria lei, talvez a solução futura seja fixar a verdadeira guarda compartilhada, sem considerar a alternância de lares que o comando introduziu.
Expostas essas ideias e conceitos, fica a reflexão final deste texto: a Lei n. 13.508/2014 é uma norma sobre guarda compartilhada obrigatória ou uma lei sobre guarda alternada obrigatória? Tenho respondido pelo segundo enquadramento. Por isso o título desta coluna, a demonstrar um dos dois principais problemas do preceito emergente. O segundo problema, a obrigatoriedade propriamente dita, será abordado no nosso próximo artigo.
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