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Ninguém nasce Racista: os Efeitos da Alienação Racial no Cenário Infantojuvenil
Guilherme de Souza Nucci
02/12/2014
Há pouco tempo, observava crianças brincando num parquinho, com escorregador, gangorra, túneis, piscina de bolinhas e outras aventuras. Se fosse um arco-íris, diria que ali estavam representantes de todas as cores; mas, eram crianças, com suas ascendências diferentes, que se refletiam na cor da sua pele. Todos pequenos cidadãos brasileiros, divertindo-se em conjunto, sem qualquer intolerância ou medo.
As babás, responsáveis cada qual por seu(s) pupilo(s), observavam a certa distância, sem interferir. Provavelmente, por perto também havia mães despreocupadas com as brincadeiras. Entretanto, em determinado momento, surgiu uma mãe, que ali não se encontrava até então. Visualizando seu filho branco brincando animadamente com uma outra criança negra, chamou rispidamente a babá, cochichou algo em seu ouvido (muito previsível) e afastou-se, furiosa. A babá, de imediato, aproximou-se dos dois meninos e puxou o branco, impedindo-o de continuar a brincar com o negro. Selou-se, naquele momento, a segregação racial.
Atônito, não podia acreditar no que acabara de ver, mas era a mais pura realidade desenhada naquele inocente parque. A discriminação no cenário infantojuvenil existe, sim, sendo mais comum do que podemos imaginar. E quem é a causa dessa manobra nefasta e cruel? São os adultos. As crianças se dão bem, exceto pelas naturais disputas por espaço, atenção ou brinquedos, mas nunca, em hipótese alguma, pela raça, sexo, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Os pequenos cidadãos cumprem fielmente a Constituição Federal e o disposto no art. 1o da Lei 7.716/89 (Lei da Discriminação Racial): todos são iguais em sociedade. Os infratores são seus pais, tios, avós, irmãos mais velhos ou responsáveis. São esses péssimos exemplos, como a abrupta separação de duas crianças num parquinho, que tornam o mundo mais árido e ríspido. No inconsciente do menino branco – e até mesmo no consciente, conforme a explicação dada – restará o ranço da desigualdade, criada artificialmente na sua mente pela atitude racista da sua mãe. No inconsciente do menino negro, igualmente, sem que ninguém lhe tenha esclarecido nada, ficará a marca da humilhação. Essa cena se repetirá outras vezes, noutros locais, de modo a conscientizar as crianças e jovens que há diferenças (falsas) intoleráveis.
Havemos de alterar esse quadro por meio de ações afirmativas. A Lei 7.716/89 se preocupa bastante em punir quem impede o acesso de alguém a cargos, empregos, estabelecimentos comerciais, escolas, hoteis, restaurantes, estabelecimentos esportivos, entradas sociais de edifícios públicos e residenciais, elevadores, transportes públicos, serviços das Forças Armadas, casamentos e até a salões de cabeleireiros (arts. 3o a 14). Mas não há uma só palavra em relação ao escancarado ato de discriminação que pais impingem a seus filhos sob variados prismas. Quem não conhece um único caso em que determinada criança foi impedida de brincar (ou cultivar uma amizade) com outra por motivos de raça, cor e até mesmo religião?
Basta olhar, atentamente, ao redor. No passado, nos idos da minha infância, além de todos esses males, recordo-me do preconceito contra os filhos de pais separados. Eram proibidos de frequentar singelas festas de aniversário, como se fossem culpados de alguma coisa. Aliás, nem mesmo os pais separados dessas crianças carregavam alguma culpa. O termo desquitado (antiga separação judicial) era pejorativo e funcionava como um instrumento de segregação, abrangendo adultos desquitados e seus filhos, alcunhados levianamente de filhos de desquitados.
A barbárie da vulgarização da linguagem para impor marcas e adjetivos nos outros é mecanismo notório de discriminação. Tenho defendido, há tempos, que a injúria racial é ato de racismo tanto quanto impedir alguém de entrar aqui ou ali por conta de raça, religião, cor etc.
Como cidadão, envergonho-me de não poder viver numa sociedade verdadeiramente pluralista, democrática e harmônica. Como jurista, devo atuar para convencer os operadores do Direito e o legislador de que a discriminação imposta pelos pais (ou responsáveis) aos seus filhos (ou pupilos) é tão ou mais prejudicial quanto qualquer ato de impedimento de acesso a um lugar. Afinal, o preconceito tecido pelos pais na mente de seus filhos pequenos chega a ser sórdido, pois a criança não tem defesa, não sabe argumentar e tende a registrar informes falsos sobre o assunto.
Hoje, a comunidade jurídica se preocupa com a alienação parental, buscando evitar que um genitor fale mal do outro para o filho, quando há separação. Porém, alguém já se preocupou com a alienação racial? Deveria ser causa de punição aos pais, com base no Estatuto da Criança e do Adolescente esse tipo de educação desvirtuada. Os genitores podem maltratar seus filhos castigando-os severamente, mas também impondo-lhes ideias e atitudes nitidamente criminosas, como é a discriminação racial.
Ninguém nasce racista, definitivamente. Torna-se, ao longo da vida, em grande parte pela educação e formação distorcida, que recebe de seus pais, visualiza em sua família e é obrigado a colocar em prática em tenra idade.