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Smart contracts
Guilherme Magalhães Martins
09/08/2023
Os contratos inteligentes (smart contracts) foram primeiramente vislumbrados por Nick Szabo como uma espécie de “protocolo” executável a partir de computadores, e com o potencial de executar automaticamente os termos de um contrato.1
Segundo Max Raskin:
“Um contrato inteligente é um contrato cuja execução é automatizada. Essa execução automática geralmente é realizada por meio de um computador executando um código que traduz a prosa legal em um programa executável. Este programa tem controle sobre os objetos físicos ou digitais necessários para efetuar a execução. Exemplos: um carro com um programa instalado para impedir a ignição se os termos de um contrato de dívida não forem cumpridos ou um software bancário que transfira dinheiro automaticamente se determinadas condições forem atendidas. Um contrato inteligente não depende do Estado para execução, mas é uma maneira de as partes contratantes garantirem o desempenho”.2
Atualmente, o conceito de contratos inteligentes está associado à tradução de comportamentos humanos em códigos de programação que controlam a própria execução da prestação obrigacional, sendo a automatização um requisito indispensável para sua configuração; esse design assegura a sua performance – para o bem ou para o mal – retirando qualquer discricionariedade humana do processo.3
A linguagem de programação difere da humana exatamente em virtude do traço característico dos códigos de programação, que é a inexistência de ambiguidade. É de se destacar que, pela utilização da linguagem computacional do tipo de operações lógicas (se X então Y), o cenário contratual torna-se mais objetivo e contribui à diluição do risco do negócio jurídico firmado.4 No código de programação, portanto, não há qualquer espaço para disputa ou interpretação, pois ele é executado fielmente, sem censura. Se, na linguagem humana, uma mesma palavra pode ter uma multiplicidade de significados e significantes, o código de programação se compõe de conjunto de comandos a serem executados sem qualquer forma de interferência externa. O uso da tecnologia dos smartcontracts de certa forma resolve a ambiguidade que caracteriza a linguagem humana, garantindo a execução automatizada das prestações.5
Apesar de o uso da expressão smart contracts remontar aos anos 1990, os contratos inteligentes ganharam maior notoriedade com sua inserção em plataformas descentralizadas e criptografadas denominadas de blockchain, ou seja, o banco de dados que guarda sequência de transações registradas em ordem cronológica em rede de computadores, que são divididas em conjuntos menores de dados denominados “blocos”. Cada bloco da cadeia contém a referência ao bloco anterior, bem como informações sobre determinado número de transações. E uma cópia da cadeia de blocos é armazenada em cada computador, com o objetivo de que todos os computadores tenham o mesmo banco de dados compartilhado.6
Não se trata, da mesma forma, de um novo tipo contratual ou categoria contratual autônoma, mas de um modo de execução, caracterizado pela automação. A doutrina exemplifica – além do caso da máquina de refrigerantes – com um contrato de compra e venda celebrado pela Internet, tendo por objeto um carro que se encontra trancado em uma garagem à qual somente se pode ter acesso mediante um código eletrônico. O código de acesso à garagem será disponibilizado automaticamente por um software assim que um número predeterminado de parcelas for pago, a partir de uma particular rede de transmissão de dados, visando a garantir a maior segurança possível para a transação.7
Dentre as principais características dos smart contracts, podem ser destacadas as seguintes: (i) são executáveis automaticamente; (ii) garantem o enforcement, ou seja, a autoexecutoriedade; (iii) possuem identidade semântica quanto à linguagem de programação aplicada; (iv) são considerados seguros e confiáveis;8 (v) são irreversíveis.9
Entretanto, como alerta Bruno Miragem, o caráter autoexecutável do contrato não elimina o controle de legalidade sobre seu conteúdo, seja com relação às cláusulas contratuais constantes de condições gerais ou condições de uso, seja com relação à prática contratual determinada pela programação de execução realizada pelo fornecedor. Identificada eventual ilegalidade ou abusividade no conteúdo do contrato, ou no modo do exercício dos deveres que define, caberá ao fornecedor alterar a programação predeterminada à execução do contrato, promovendo sua adequação às exigências legais. Não devem ser admitidas, a qualquer pretexto, alegações de dificuldades ou de impossibilidade técnica de alteração da programação realizada para execução do contrato, evitando-se ressaltar ainda mais a assimetria existente entre os contratantes.10
Entre os novos riscos oriundos da mencionada assimetria, podem-se mencionar termos contratuais fraudulentos e injustos, que tradicionalmente seriam policiados pelos tribunais, mas que nas circunstâncias dos smart contracts se proliferariam à medida que as partes que detêm o código se valeriam da contraparte, levando a uma dependência do técnico que possui o conhecimento da utilização desses sistemas. Em vez de gerar a objetividade e a previsibilidade comumente associadas a esse mecanismo, há a possibilidade de se gerarem efeitos negativos.11
Como vantagem, a automação da execução suscitada pelos smart contracts pode traduzir importante vacina ao inadimplemento contratual, cujos riscos ela mitiga e, praticamente, elimina, além de deflagrar automaticamente mecanismos de defesa suscitados pelo descumprimento. Devem ser acrescidas outras possíveis utilidades, como a previsibilidade sobre o curso da execução contratual e a autonomia, dispensando intermediários na relação, além da agilidade, ante a sincronização no cumprimento das obrigações, sem falar na economia gerada pela redução de custos. Caso seja utilizada a tecnologia blockchain, outros ganhos podem ser mencionados, como a confiança, em virtude da descentralização no armazenamento das informações, e a segurança, pela utilização da criptografia, que mantém o conteúdo do contrato seguro e inviolável.12
Como proteção aos consumidores, ante a tendência de aumento na utilização dos contratos inteligentes, devem-se contemplar necessariamente cinco aspectos: (a) atendimento ao dever de informação e esclarecimento do fornecedor, prévio à contratação, sobre seus aspectos característicos e o modo de exercício dos direitos pelo consumidor, inclusive com a possibilidade de acesso prévio ao instrumento contratual (art. 46 do CDC e art. 4º, IV do Dec. nº 7.962/2013); (b) assegurar a possibilidade de contato do consumidor com o fornecedor por meio alternativo ao da contratação (por exemplo, e-mail, telefone, endereço físico etc.); (c) na programação de suas ordens autoexecutáveis, garantia dos condicionamentos estabelecidos pela legislação, em especial o direito de reclamação ou resolução no caso de vícios da prestação (arts. 18 a 20 do CDC), bem como o direito de arrependimento (art. 49 do CDC); (d) a necessidade de evitar abusos nas hipóteses em que, automaticamente, se busque sanar ou reparar eventuais inadimplementos (como no caso de um veículo dado em garantia que tenha o seu controle automaticamente retirado do devedor e passado ao credor);13 e (e) a inserção, nos códigos parâmetros, de previsões a respeito de contextos em que o contrato possa ser editado e modificado e, também, de disposições igualmente codificadas a respeito da proteção e dos direitos dos consumidores de modo geral.14–15
A doutrina recomenda uma detida reflexão acerca da conformidade da automação da execução promovida pelos smart contracts, em face da legalidade constitucional, em especial no tocante à esfera de autonomia reconhecida às partes para modular ou afastar as exceções de defesa ordinariamente oponíveis, com vistas à suspensão ou à interrupção da exigibilidade da prestação.16
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NOTAS
1 SZABO, Nick. The idea of smart contracts. Nick Szabo’s Papers and Concise Tutorials, 1997. Disponível em: http://www.fon.hum.uva.nl/rob/Courses/InformationInSpeech/CDROM/Literature/LOTwinterschool2006/szabo.best.vwh.net/index.html. Acesso em: 28 abr. 2020.
MARTINS, Guilherme Magalhães; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Reflexões sobre os contratos inteligentes (smart contracts ) e seus principais reflexos jurídicos. In: ERHRARDT JÚNIOR, Marcos; CATALAN, Marcos; MALHEIROS, Pablo (coord.). Direito civil e tecnologia. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2021. t. I, p. 193.
2 RASKIN, Max. The law and legality of smart contracts. Georgetown Law Technology Review, Washington, D.C., v. 304, n. 1, p. 309-310, 2017. (tradução livre). No original: “A smart contract is an agreement whose execution is automated. This automatic execution is often effected through a computer running code that has translated legal prose into an executable program. This program has control over the physical or digital objects needed to effect execution. Examples are a car that has aprogram installed to prevent ignition if the terms of a debt contract are not met or banking software that automatically transfers money if certain conditions are met. A smart contract does not rely on the state for enforcement, but is a way for contracting parties to ensure performance”.
3 JOELSONS, Marcela. Smart contracts nas relações de consumo. In: MARQUES, Claudia Lima; MARTINS, Fernando Rodrigues; MARTINS, Guilherme Magalhães; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direito do consumidor aplicado:garantias do consumo. Indaiatuba: Foco, 2023. p. 331-332.
4 PINHEIRO, Patrícia Peck; WEBER, Sandra Paula Tomazi; OLIVEIRA NETO, Antonio Alves de. Fundamentos dos negócios e contratos digitais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. RB-13.1.
5 TERRA, Aline de Miranda Valverde; SANTOS, Deborah Pereira Pinto dos. Do pacta sunt servanda ao code is law: breves notas sobre a codificação de comportamentos e os controles de legalidade nos smart contracts. In: TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia (coord.). O direito civil na era da inteligência artificial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 400.
6 TERRA, Aline de Miranda Valverde; SANTOS, Deborah Pereira Pinto dos. Do pacta sunt servanda ao code is law: breves notas sobre a codificação de comportamentos e os controles de legalidade nos smart contracts. In: TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia (coord.). O direito civil na era da inteligência artificial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 401. DE FILIPI, Primavera; WRIGHT, Aaron. Blockchain and the law:the rule of code. Cambridge: Harvard University Press, 2018, p. 2. (e-book).
7 TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia. Inteligência artificial, smart contracts e gestão do risco contratual. In: TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia (coord.). O direito civil na era da inteligência artificial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 386. Para os autores, “na seara securitária, pode-se cogitar da incorporação dos smart contracts; a título ilustrativo, é possível que as partes estipulem tanto a automação do pagamento do prêmio a cargo do segurado quanto a automação do pagamento da indenização securitária sob a responsabilidade da seguradora diante da comprovação do sinistro junto ao software adotado na concreta relação contratual”.
8 BASHIR, Imran. Mastering blockchain: distributed ledger technology, decentralization, and smart contracts explained. Birmingham: Packt, 2018. p. 265.
9 PINHEIRO, Patrícia Peck; WEBER, Sandra Paula Tomazi; OLIVEIRA NETO, Antonio Alves de. Fundamentos dos negócios e contratos digitais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. RB-13.1.
10 MIRAGEM, Bruno. Novo paradigma tecnológico, mercado de consumo e direito do consumidor. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti (coord.). Direito digital:direito privado e internet. 4. ed. Indaiatuba: Foco, 2021. p. 433.
11 JOELSONS, Marcela. Smart contracts nas relações de consumo. In: MARQUES, Claudia Lima; MARTINS, Fernando Rodrigues; MARTINS, Guilherme Magalhães; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direito do consumidor aplicado:garantias do consumo. Indaiatuba: Foco, 2023. p. 323.
12 JOELSONS, Marcela. Smart contracts nas relações de consumo. In: MARQUES, Claudia Lima; MARTINS, Fernando Rodrigues; MARTINS, Guilherme Magalhães; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direito do consumidor aplicado:garantias do consumo. Indaiatuba: Foco, 2023. p. 322.
13 Veja, por exemplo: “Carros da Ford poderão ‘fugir’ do dono inadimplente e voltar sozinhos para a loja. Patente da fabricante mostra tecnologia para impedir que proprietário que deve ao banco tenha acesso ao carro”. Disponível em: https://autoesporte.globo.com/tecnologia/noticia/2023/02/carros-da-ford-poderao-fugir-do-dono-inadimplente-e-voltar-sozinhos-para-a-loja.ghtml.
14 KASATKINA, Marina. Consumer protection in the light of smart contracts. ELTE Law Journal, v. 1, 2021. DOI: 10.54148/ELTELJ.2021.1.95.
15 MIRAGEM, Bruno. Novo paradigma tecnológico, mercado de consumo e direito do consumidor. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti (coord.). Direito digital:direito privado e internet. 4. ed. Indaiatuba: Foco, 2021. p. 433.
16 TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia. Inteligência artificial, smart contracts e gestão do risco contratual. In: TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia (coord.). O direito civil na era da inteligência artificial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 392.