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Exame OAB
EXAME OAB
126 faculdades chumbaram na OAB. O que dizem os cursinhos?
GEN Jurídico
10/02/2014
— Artigo publicado no Portal Conjur —
Por Lenio Luiz Streck e Alexandre Morais da Rosa
A oabtização dos cursos de Direito já foi apontada aqui. Na sequência, na coluna Senso Incomum (clique aqui para ler) o problema foi desdobrado, sob outro(s) ângulo(s). Há muito denunciamos que compreender o Direito é muito mais do que decorar regras, macetes, rimas, enfim, que é preciso professores de filosofia, sociologia, hermenêutica, teoria do Direito, as denominadas propedêuticas, capazes de fornecer as condições de possibilidade do ensino democratizado e atualizado do Direito.
As velhas formas de ensinar, no estilo pergunte que respondo, talk-show, embora agrade alguns, deixam de fornecer elementos teóricos capazes de autorizar o sujeito a falar por si próprio. Luis Alberto Warat nos ensinava, já na década de 1980, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que o ensino precisa ser reflexivo, para além de uma “pinguinização”. Na contramão, com o passar dos anos, o Direito foi transformado em um mero instrumento, como se fosse a enxada do camponês (sem ofensa ao campônio). Como a enxada corta qualquer coisa (menos pedras), o operador jurídico (operador no sentido de operar um mero instrumento de trabalho) passou a acreditar nesse neo-ofício. Para tanto, o caminho mais fácil foi compactar, simplificar, facilitar, resumir.
Com Warat também aprendemos que Direito não é qualquer coisa, pois ele carrega certa autonomia. Para ensinar, então, seriam necessários professores capazes de pensar o fenômeno jurídico. Entretanto, com 1.291 faculdades de Direito, isso se torna impossível. A questão é saber se é possível termos, no Brasil, 1.291 professores qualificados (falamos, pois, de um por faculdade ou curso), não ventríloquos, de teoria do Direito, Filosofia do Direito, Direito Constitucional, etc, ministrados no modo “aprendido pelo método auricular, quer dizer, lendo orelha de livro”. Formalmente até podem existir. Dão aulas, fingem — e até dizem — que a teoria é simples, não forçam muito na leitura porque as perguntas podem complica-lo e dizem que o Direito pode ser entendido por esquemas, desenhos, palavras cruzadas ou algo similar (ou até por rimas, como denunciado em Senso Incomum semana passada).
Daí que para satisfazer, muitas vezes, a volúpia por Códigos — os alunos entram na graduação e chegam ao primeiro dia de aula com o Vade-Mecum debaixo do braço — antecipa o que somente deveria vir depois. Um faz de conta que cobra o preço adiante (agora já há Vade-Mecuns “comentados” e/ou próprios para concursos públicos, um deles se pretendendo um resumão para atender à Resolução 75 do Conselho Nacional de Justiça — nele, se apreende Descartes em algumas linhas — consta até que Descartes não estava preocupado com as horas ou não gostava de relógios… [algo assim]; Aristóteles em seis linhas e assim por diante).
Solução “Direito-Tabajara”
Mas todos os problemas se acabaram. Se a fatia de mercado é preparar para o exame da OAB, então, aqui está a solução… no Resumão do (e para o) Professor [clique aqui para ver]. No reclame publicitário, consta que ali está tudo o que o professor precisa para dar aulas. Toda a matéria jurídica em pouco mais de 500 páginas. Um poder de síntese que daria inveja a Einstein.
Ora, direito não é Resumão, nem se aprende assim. A editora possui as razões mercadológicas para que isso possa acontecer. Aliás, razões mercadológicas existem até para vender óleo de rícino (embora não se saiba bem como seria a propaganda). Em nenhuma outra parte do mundo se estuda seriamente por resumão, esquemões, facilitações, simplificações, mastigações, embora seja verdade que os plastificados já tomaram conta de parte do mundo.
Vejamos. O tal Resumão para Professores é apenas a ponta do iceberg da crise. O citado livro não nos preocupa nem um pouquinho. É mais um entre tantos desse jaez que logo são esquecidos. Isso funciona mais ou menos como as duplas sertanejas (supletivo-universitárias) ou os cantores de funk que entram no mercado e ficam alguns meses. O que nos preocupa, efetivamente, é o aspecto simbólico. Ele re-presenta uma leitura do todo, da crise, do fundo do poço que chegamos (ou estamos chegando aos poucos). Cornelius Castoriadis (A Instituição Imaginária da Sociedade), que Warat sempre indicava como leitura, tratava bem disso. Ele chamava a atenção para o magma de significações. Pois no mundo jurídico há uma nuvem, mais do que esse magma e que obnubila a capacidade de reflexão.
O resumão em testilha (essa palavra é muito usada em modelos de projetos de “petição 10) tem menos de 600 páginas. Mas quer abarcar toda a matéria do Direito. Trata-se de uma espécie de “resumo fundamental” (algo como um Grundzusammengefasst? — ironia ou sarcasmo nossos, é claro!). Para se ter uma ideia, o livro Comentários a Constituição do Brasil, que Gomes Canotilho, Gilmar Mendes, Ingo Sarlet e Lenio Streck organizaram e escreveram, possui quase 2,5 mil páginas, sendo que o formato do livro, fosse feito nos moldes tradicionais, faria com que o volume tivesse cerca de 4,5 mil páginas ou mais. E o tal resumão quer falar de todo o direito em pouco mais de 500 páginas.
Logo se vê porque o resultado da prova da OAB é esse que está aí. E poderíamos citar outros exemplos, só para mostrar que a pretensão de fazer um resumão (para professores, alunos ou motoristas de táxi) é, em termos de consumidor, uma mercadoria impossível de ser entregue. E veja-se que a propaganda do tal livro diz que o volume contém aulas escritas, além de modelos de questões.
O outro busílis — o lado B
Mas, então, o problema estaria no material, no tipo de ensino ou na má formação dos alunos? Ledo engano. Como uma moeda, isso tem dois lados. Trata-se de um dilema sem saída. Na verdade, uma aporia. Algo como “tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais”?
O exame de ordem chumba um elevadíssimo número de alunos porque estes são fracos e despreparados ou os alunos são assim porque, exatamente, são levados a esse tipo de imaginário gnosiológico (senso comum de segunda mão) por um certo tipo de “adestramento” que vem das faculdades e dos famosos cursinhos de preparação? Eis o busílis ou o dilema.
A pergunta que não quer calar é: esse tipo de exame seleciona, de fato, os mais aptos a empreitar a carreira jurídica (seja qual for) ou é como exame de habilitação de motorista que só comprova que o cara sabe fazer o exame — e não prova a capacidade de dirigir, propriamente?
Há que se quebrar esse círculo vicioso e transformá-lo em um círculo virtuoso. Se o exame de ordem não for transformado em algo organicamente construído a partir da possibilidade de efetiva mensuração da capacidade de reflexão do bacharel, o destino desse universo de pessoas está (mal)traçado.
Enquanto ficarem perguntando — e isso vale para os concursos para juiz, promotor, defensor, delegado etc. — se a ladra Jane furtar um automóvel em Cuiabá e blá, blá, blá ou se Caio quer matar Tício com veneno e só usa meia dose (porque é um incompetente ou imbecil) blá, blá, blá, estaremos perpetuando um massacre daquilo que resta da ciência jurídica. Por exemplo: Qual é a reflexão jurídica que se pode tirar de uma pergunta (da última prova da OAB) sobre o estupro em que Bráulio (que nome mais ridículo, não?) encontra moça em show de rock, pratica sexo com ela, de forma consentida e depois se descobre que ela tinha 13 anos…? E qual a “grande indagação filosófica” que a questão de 63 oferecia? Paula desfere 16 facadas no peito de Maria (tema de uma coluna Senso Incomum) e a vítima morre duas horas depois. E se descobre que foi por envenenamento, porque tinha tendências suicidas.
Ou seja, se o provão da OAB perguntar sobre as tendências homicidas de Caio ou Tício etc., e essas bobagens todas, é evidente que a demanda dos cursinhos será para atender essa cultura prêt-à-penser. E, atenção: quando querem “sofisticar”, perguntam coisas sem sentido, algo sobre se o utilitarismo foi antifundacionalista. É para espantar a freguesia, pois não?
Por mais paradoxal que isso possa parecer, podemos propor um desafio: mudem-se os concursos públicos e a prova da OAB e ocorrerá uma alteração imediata no modus operandi das faculdades e dos cursinhos. Com uma alavanca — mesmo que torta — pode-se mover o mundo. Se alguém pergunta simplificações, as faculdades ensinarão apenas as simplificações (e coisas do gênero). Elementar isso. E a indústria de resumos, resumões, rimas e facilitações crescerá em volta dos “castelos” que são os concursos e a prova da OAB.
Na coluna Senso Incomum de 28 de fevereiro de 2013, essa problemática foi esmiuçada, inclusive com a pesquisa da FGV-Direito Rio e da Universidade Federal Fluminense (UFF), que aponta falhas e propõe mudanças nos concursos públicos, coordenada pelo Professor Fernando Fontainha apontando “problemas nos concursos públicos federais”. Segundo divulgado, os pesquisadores descobriram/constataram que as provas a que são submetidos os candidatos dos mais diversos certames para as mais diversas carreiras do serviço público federal tornaram-se um “fim em si mesmo” e não um “meio para o acesso à carreira desejada”. Ainda segundo a pesquisa, o concurso não está atingindo a “finalidade para o qual foi criado, que é selecionar um profissional adequado para cargo na administração pública”. Pronto!
Na mesma linha, por ter se tornado um “fim em si mesmo”, o atual modelo de prova acabou por criar concursos que selecionam “pessoas que têm mais aptidão para fazer prova de concurso” em detrimento de pessoas com aptidões reais para o desempenho da função. “Temos uma ineficiência de fiscalização de competências reais”, afirma um dos autores da pesquisa. Ou seja, segundo a pesquisa, passam mais nos concursos os que são treinados para os concursos e não aqueles que tem capacidades reais para exercer a função pública. É preciso dizer mais?
As faculdades, a oabtização e o marquetingue
Repetimos: trata-se de um círculo vicioso e não virtuoso. Os concursos repetem o que se diz nos cursinhos, um conjunto de professores produz obras que são indicadas/utilizadas nos cursos de preparação, que por sua vez servem de guia para elaborar as questões que são feitas por aqueles que são responsáveis pela elaboração das provas (terceirizados — indústria que movimenta bilhões e os próprios órgãos da administração pública).
O marquetingue das faculdades é: a que mais aprova na prova da OAB (até com a música do Balão Mágico), inclusive nas públicas (veja-se: não somos contra a proposta de as faculdades prepararem para concursos e OAB; a questão é mais complexa, pois se trata de discutir o conteúdo dos curriculuns e das perspectivas do Direito no atual estágio da história; o que queremos enfatizar é que as Faculdades não podem — e não deve[ria]m ficar à reboque da prova da OAB e dos concursos, porque isso retroalimenta uma indústria da mediocretização; isto é, o que não pode acontecer é a perpetuação de um círculo vicioso). Imaginar que as faculdades privadas assim promovam suas campanhas em busca de novos clientes, até se justifica, mas as públicas? O mesmo se diz das grandes editoras, que passaram a apostar no mercado dos livros simplificadores.
Indubitavelmente, nos últimos anos, então, verificamos a oabtização dos cursos de Direito. Só se estuda o que cai na prova. Mesmo assim no último exame [clique aqui para ler] 126 não aprovaram sequer um candidato. E, observe-se: em 22 de março de 2013, a ConJur divulgou que “no IX Exame de Ordem Unificado, aplicado nacionalmente pelo Conselho Federal da entidade, dos 114.763 candidatos que prestaram a prova desde a etapa inicial, 11.820 obtiveram êxito e vão receber a carteira de advogado, perfazendo um percentual de 10,3% de aprovação nesta edição do exame”. Isto é, naquele momento, quase 90% chumbaram.
Somando tudo e dividindo, tem-se que o fiasco é (foi) total. Não só dos cursos. Também dos cursinhos que vendem facilidades. E vejam o percentual de aprovados na primeira fase do provão recente: menos de 20%. De cada 5 candidatos, um chumbou (no IX exame, quase 90% haviam chumbado)! O que nos dizem os curssinhos de preparação sobre isso? O que nos fala o estilo “neopentecostal” de ensinar? O que nos dizem sobre esses números? Sim, esses que tomaram conta no Youtube (não vamos mostrar os vídeos, por um resto de respeito). As paródias passam por Rosana, Wando, Anitta, rimas jurídicas, palestras sobre auto ajuda, juspiadistas, obvianistas[1] etc.
Alguma coisa anda “fora da Ordem”, parafraseando Caetano. Parar, repensar e formar juristas pensantes deveria ser a pretensão das Faculdades do Brasil. A aprovação na prova da OAB é corolário. Não pode ser um fim em si mesmo. Este é o ponto. Entretanto, no mundo pragmático e da vitória a qualquer custo, talvez seja uma modalidade de doping a formação exclusiva para o tour de OAB, no melhor estilo Lance Armstrong. Arriscamos a resposta das 126 faculdades que chumbaram: oabtizar os professores (sic), resolvendo as questões dos exames de ordem dos últimos cinco anos e proibir qualquer discussão para além disso. Em Resumo, de fato, é Resumo.
Como dito, o mais grave disso tudo não é o “real” (por exemplo, o lançamento de um ou vários livros de resumos ou resumões), e, sim, o simbólico. Peter Sloderdijk, no livro Crítica da Razão Cínica, pega a frase de Marx, pelo qual esse dizia Sie wissen das nicht, aber sie tun es (eles não sabem o que fazem, mas fazem mesmo assim), numa crítica ao pensamento da burguesia de então. Sloterdijk inverte a frase para tratar de sua crítica da razão cínica, para dizer: eles sabem o que fazem e continuam a fazer do mesmo modo. Ele trata o cinismo em duas partes. Primeiro o kynismos, que era visto como uma crítica e depois mudou de sentido, ou seja, de uma força crítica passa, aos poucos, a assumir a “lógica dos senhores”, a lógica da dominação e da justificação dessa dominação. Como bem diz Rodrigo Petrônio, a dinâmica ambivalente entre kynismos-cinismo apaga as fronteiras entre liberdade e domesticação. E essa última palavra parece ser fulcral para analisarmos o estado da arte do ensino jurídico de terrae brasilis.
A partir do que diz Sloterdijk, cabe a pergunta: até que ponto estamos a tratar de um senso comum multiplicador de um dado imaginário ou estamos diante de uma certa razão cínica (zynischen Vernunft) que tomou conta do ensino jurídico e a indústria que o movimenta cotidianamente?
Por isso, pregamos a necessidade de romper com o círculo vicioso e iniciar um círculo virtuoso. O ensino jurídico não pode mais ficar refém dos exames da OAB ou do que se pergunta nos concursos públicos (e consequentemente dos cursinhos que retroalimentam a crise). Deveria ser o contrário: os concursos e a OAB deveriam fazer questões sobre o que as Faculdades de todo o Brasil ensinam. Ou, então, façamos de vez o atalho: alteremos o exame da OAB e os concursos e as faculdades correrão atrás. Já que Maomé não vai à montanha, quem sabe o contrário? Quando falamos em “desafio” (e no paradoxo que isso representa) no presente artigo, é disso que queríamos tratar. E desnudar!
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