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DICAS
MEDIAÇÃO E ARBITRAGEM
PUBLIEDITORIAL
Interação entre negócios jurídicos no curso da arbitragem
José Antonio Fichtner
04/01/2023
Neste trecho retirado do livro Convenção de Arbitragem, José Antonio Fichtner, Augusto Tolentino, Leonardo Polastri e Rodrigo Salton explicam como se dá a interação entre negócios jurídicos no curso da arbitragem.
Interação entre negócios jurídicos no curso da arbitragem
O fundamento material da arbitragem reside na convenção de arbitragem, sendo essa o seu alicerce principal. É a partir desse negócio jurídico que o efeito da criação/modificação da jurisdição é irradiado. Entretanto, por mais fundamental que seja, o instituto da arbitragem não se resume a esse único negócio jurídico, razão pela qual se pode dizer que a convenção de arbitragem é fundante, mas não plenamente estruturante da arbitragem.
Em paralelo à convenção de arbitragem, existem outros negócios jurídicos materiais e processuais que conferem formato ao procedimento arbitral584. Por essa razão, a arbitragem não é apenas fundada, mas é também moldada por negócios jurídicos. Trata-se de negócios jurídicos decorrentes da convenção de arbitragem, pois estão precipuamente associados àconformação do exercício jurisdicional. Nenhum desses outros negócios jurídicos basta à válida condução do procedimento arbitral, pois a possibilidade de exercício da jurisdição é derivada diretamente da convenção de arbitragem. São, portanto, negócios auxiliares, tendo existência jurídica frequentemente autônoma no amparo da condução do processo.
O primeiro negócio é o contrato entre árbitro e partes. A relação entre árbitros e partes, para além da função jurisdicional, é de origem contratual585. O árbitro prolata a sentença arbitral em troca de remuneração previamente ajustada586. Há sinalagma obrigacional entre os honorários pagos pelas partes e a prestação jurisdicional exercida pelo tribunal, não sendo possível resumir a relação existente pela estrutura processual587, conferindo-lhe caráter bivalente588. O contrato com o árbitro apresenta existência decorrente, mas não acessória à convenção de arbitragem589. É decorrente por não fazer sentido contratar árbitro, caso não haja prévia convenção de arbitragem, mas não é conexa pelo fato de que, posterior reconhecimento pelo Poder Judiciário de nulidade da convenção, não implica nulidade do contrato entre partes e árbitros e a consequente devolução dos valores pagos. Assim, há uma primeira relação contratual autônoma entre os litigantes e o tribunal arbitral.
O segundo negócio é a ata de missão590. A ata de missão é negócio jurídico processual, que visa a corrigir, documentar e complementar a convenção de arbitragem. A Lei de Arbitragem a trata como um “adendo” à convenção591, complementando o seu conteúdo normativo592. A sua importância precípua diz respeito à formatação do procedimento, adaptando às necessidades concretas das partes, podendo conter no seu bojo negócios jurídicos processuais, como a calendarização do procedimento, regras sobre produção probatória, escolha da lei aplicável, fixação do ônus da prova, entre outros. Eventualmente a ata de missão pode exercer a função de convenção de arbitragem, quando o consentimento das partes é manifestado pela primeira vez – ou é clarificado – quando da sua redação.
O terceiro negócio é o contrato entre as partes e a câmara de arbitragem. Trata-se de relação de prestação de serviços. Caso as partes optem por arbitragem institucional,o procedimento será administrado por entidade especializada593, que exercerá funções primordialmente cartoriais, auxiliando a condução do procedimento594. As partes, em troca desse serviço, remuneram a instituição de arbitragem com base em tabela de custas disponibilizadas pela própria câmara595. Não é obrigatória a contratação de arbitragem institucional, podendo ocorrer o processamento do feito de modo ad hoc. No entanto, as questões administrativas e de gestão de procedimento ficarão a cargo do tribunal arbitral596. Assim, a contratação de instituição de arbitragem facilita a condução dos atos, além de oferecer amparo de expertise e regras pré-prontas para serem aplicadas durante a arbitragem.
O quarto negócio é o contrato entre os árbitros e a câmara de arbitragem. Em termos analíticos, é possível destacar a existência de relação jurídica entre os árbitros e a instituição de arbitragem597. A instituição é responsável por cobrar das partes o pagamento da remuneração dos árbitros598. De outro lado, os árbitros se obrigam a aplicar as regrasda câmara, bem como obedecer a outros padrões de conduta fixados pela instituição. Ao aceitar ser árbitro em procedimento administrado por uma instituição de arbitragem, adere-se não só ao regulamento, mas a eventuais códigos deontológicos estabelecidos. Assim, a instituição é legitimada a responsabilizar árbitro que venha a ter condutas desabonadoras, que maculem a imagem da instituição perante o mercado.
O quinto, são os negócios firmados com outros sujeitos que podem intervir no curso de um procedimento arbitral. Entre esses, pode-se apontar o contrato firmado entre o tribunal arbitral (ou o presidente do tribunal) e eventual secretário, o contrato firmado entre partes e perito, o contrato firmado entre as partes com os seus assistentes técnicos, o contrato firmado entre as partes e os seus advogados, o contrato firmado entre as partes e pareceristas, entre outros. Nesse grupo, consideravelmente heterogêneo, estão os contratos entre os sujeitos da relação processual (partes e tribunal arbitral) e seus assistentes. Por certo, esses contratos são autônomos em relação à convenção de arbitragem, mas a sua existência somente faz sentido diante da instauração de procedimento arbitral, razão pela qual acabam sendo importantes para o dimensionamento e a condução da arbitragem.
Em sexto, pode-se apontar todos os negócios jurídicos processuais feitos entre as partes e o tribunal acerca da condução do procedimento. A arbitragem é marcada pela flexibilidade procedimental. Assim, é possível fazer vários ajustes acerca de como o processo se desenrolará. A liberdade das partes é ampla, devendo respeitar, contudo, os limites inerentes ao devido processo legal. Entretanto, dentro dessa baliza, há ampla margem de conformação e de adaptação do procedimento. Essa regulação processual ocorre por negócios jurídicos processuais, que são entendidos como os atos que produzem efeitos no processo, conformados a partir da autonomia privada dos agentes, representando “declarações de vontade unilaterais ou plurilaterais admitidas pelo ordenamento jurídico como capazes de constituir, modificar e extinguir situações processuais, ou alterar o procedimento”599. Os negócios jurídicos processuais são espécie do gênero negócio jurídico, pois produzem a conformação de efeitos na ordem jurídica a partir da manifestação de vontade dos agentes negociais.
O reconhecimento da existência e da relevância de todos esses negócios evidencia o papel da autodeterminação dos agentes ao optar pela via arbitral. A autonomia privada é elemento anímico da arbitragem, estando subjacente à conformação de diversas situações jurídicas associadas ao instituto. Há, portanto, até sobreposição das declarações negociais a elementos de natureza jurisdicional – podendo as partes conformar o modo pelo qual o processo ocorrerá, quem está ou não sujeito à jurisdição do tribunal e quais relações poderão ser ou não arbitradas. Trata-se, portanto, de ampla valorização dos privados, na sua liberdade de agir constitucionalmente assegurada, reconhecendo-os como os agentes mais indicados a decidir pela conformação e construção das relações jurídicas nas quais estão envolvidos.
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Notas:
584 CLAY, Thomas. A Sede da Arbitragem Internacional: entre “Ordem” e “Progresso”. Revista Brasileira de Arbitragem, vol. V, issue 17, pp. 37-56, 2008, p. 54.
585 BORN, Gary B. International Commercial Arbitration. 3th ed. The Hague: Kluwer Law International, 2021, p. 2116.
586 LUCAS, Marcus Vinicius Pereira. Responsabilidade Civil do Árbitro. 202f. Dissertação (Mestrado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2018, p. 28.
587 HENRY, Marc. Do Contrato do Árbitro: o Árbitro, um Prestador de Serviços. Revista Brasileira de Arbitragem, vol. II, issue 6, pp. 65-74, 2005, p. 66.
588 LEMES, Selma. O papel do árbitro. Revista do direito da energia, vol. 3, nº 4, p. 117-128, mar./2006, p. 03.
589 NANNI, Giovanni Ettore. Notas sobre os negócios jurídicos da arbitragem e a liberdade de escolha do árbitro à luz da autonomia privada. Revista Brasileira de Arbitragem e Mediação, vol. 49, jun./2016, p. 05.
590 LEMES, Selma. Convenção de Arbitragem e Termo de Arbitragem. Características, efeitos e funções. Revista do advogado, AASP, nº 87, p. 94-99, set./2006, p. 98.
591 A lei brasileira prevê expressamente a pactuação do Termo de Arbitragem ao estatuir no art. 19, § 1º, que: “instituída a arbitragem e entendendo o árbitro ou o tribunal arbitral que há necessidade de explicitar questão disposta na convenção de arbitragem, será elaborado, juntamente com as partes, adendo firmado por todos, que passará a fazer parte integrante da convenção de arbitragem”.
592 CATARUCCI, Douglas Depieri; DANTAS, Amanda Bueno. Mecanismo de Apelação e Revisão de Sentenças arbitrais: análise teórica e prática de sua aplicação com base na experiência internacional. Revista de Arbitragem e Mediação. Vol. 51/2016, p. 169-219, out./dez., 2016, DTR 2016/24744, p. 08.
593 NANNI, Giovanni Ettore. Notas sobre os negócios jurídicos da arbitragem e a liberdade de escolha do árbitro à luz da autonomia privada. Revista Brasileira de Arbitragem e Mediação, vol. 49, jun./2016, p. 04.
594 SESTER, Peter Christian. Comentários à Lei de Arbitragem e à Legislação Extravagantes Relacionada a Arbitragem. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 158.
595 “In contractual terms, the arbitral institution’s contract is formed when an institution offers to administer arbitrations between parties that have incorporated its rules into an arbitration agreement, with that offer being accepted by the parties through the submission of a dispute arising under that arbitration agreement to the institution. The better view is either that the arbitral institution becomes an additional party to the arbitrator’s contract when that contract is formed between the parties and the arbitrators, or, alternatively and preferably, to a separate “arbitral institution contract” (or contracts) between the arbitrator(s) and the parties. The institution’s rights and duties in relation to a particular arbitration are then specified in those contracts (either the arbitrator’s contract or the arbitral institution contract). Most institutional arbitration rules include provisions that specifically address the institution’s rights, duties and protections vis-à-vis the parties. In particular, institutional rules typically specify a fee to which the institution is entitled for its administrative services, as well as (in some cases) grants of immunity. These provisions are best regarded as being incorporated into the contract between the arbitral institution and the parties.” (BORN, Gary B. International Commercial Arbitration. 3th ed. The Hague: Kluwer Law International, 2021, p. 2127-2128).
596 “Finally, the involvement of an arbitral institution does not cause the contractual relationship between the parties and the arbitrators to disappear. The parties may sometimes have less freedom in their choice of arbitrator, and the institution may intervene or interfere in the relations between them, but on the whole the contractual relationship between the arbitrator and the parties remains the same. They agree that the arbitrators should carry out a judicial role, and their rights and obligations are not fundamentally different, although the way in which those rights and obligations are exercised is affected by the presence and the rules of the institution.” (FOUCHARD, Philippe; GAILLARD, Emmanuel; GOLDMAND, Berthold. Fouchard Gaillard Goldman on International Arbitration. Haia: Kluwer Law International, 1999, p. 604).
597 LUCAS, Marcus Vinicius Pereira. Responsabilidade Civil do Árbitro. 202f. Dissertação (Mestrado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2018, p. 31.
598 “There is also a contract between the arbitral institution and each of the arbitrators. The institution appoints or confirms the appointment of the arbitrators after verifying their suitability; it agrees to treat them as arbitrators in the exercise of its own organizational, administrative and supervisory role; it undertakes to reimburse their expenses and to pay their fees (which it receives from the parties). As for the arbitrators, by accepting their brief they agree to perform it under the auspices and in accordance with the rules of the institution. They agree that the institution shall exercise its functions under those rules, such as its powers to challenge or remove an arbitrator, to grant is rendered, and to determine the arbitrators’ fees. This is a contract where each party indepenextensions of time, to monitor the proceedings, to examine a draft version of the award before it dently promises and performs services for the benefit of the other, and particularly for the benefit of third parties (the parties to the arbitration).” (FOUCHARD, Philippe; GAILLARD, Emmanuel; GOLDMAND, Berthold. Fouchard Gaillard Goldman on International Arbitration. Haia: Kluwer Law International, 1999, p. 604).
599 CABRAL, Antônio do Passo. Convenções Processuais. Salvador: Editora JusPodivm, 2016, p. 48-49.