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Todos os dias a Língua muda – Reflexões sobre uma linguagem inclusiva
13/08/2021
Nos últimos dias, alguns usos da linguagem inclusiva – logo abaixo, vamos entender porque “linguagem neutra” não é a expressão mais adequada – chamaram a atenção das redes sociais: o museu da Língua Portuguesa, em sua reabertura, usou o termo “todes”; a narradora Natália Lara, da SporTV, usou o pronome “elu”, respeitando o gênero da jogadora de futebol Quinn, do Canadá; e artistas famosos se declararam não binários (Demi Lovato e Bárbara Paz, por exemplo). Além da questão jurídico-política que se estabeleceu sobre o assunto: pelo menos, 14 estados brasileiros discutem o tema. Entre eles, Santa Catarina, que ganhou os holofotes depois que o Partido dos Trabalhadores ajuizou no STF a ADI 6.925, sob relatoria do Ministro Nunes Marques. A ADI questiona o Decreto Estadual 1.329/2021, que proíbe as instituições de ensino de Santa Catarina (públicas e privadas) e os órgãos da administração pública do estado de usarem as formas “neutras” de flexão de gênero. Segundo os autores da ADI, “a proibição viola os princípios constitucionais da igualdade, da não discriminação, da dignidade humana e do direito à educação”.[1]
O museu da Língua Portuguesa também está ocupando as notícias, e não apenas por sua reinauguração. Após o uso do pronome indefinido “todos”, na sua forma “inclusiva” – todes –, o Governo do Estado de São Paulo comprou briga com o Secretário Especial da Cultura, Mário Frias. O Governo Federal editou um decreto que altera o Programa Nacional de Incentivo à Cultura, o que inclui, também, a fatídica Lei Rouanet. O decreto muda um sistema que existe há 30 anos, e que desde de 2006 não sofria alterações. Ainda não se sabe quais os reais impactos, mas um em especial mira o estado de São Paulo: um dos dispositivos estabelece que, a partir de agora, os planos anuais devem passar pelo crivo de Mario Frias, que avaliará a relevância dos projetos. Frias, ao ler o uso de “todes” numa postagem do museu disse que tomaria as “medidas para impedir que usem dinheiro público federal para piruetas ideológicas” (abaixo, entenderemos melhor essa arena). Lembrando que, entre os dez maiores captadores da Lei Rouanet, seis estão em São Paulo. O governador, João Dória, prometeu entrar com uma ação contra o decreto.[2]
No entanto, essa discussão não é tão nova quanto se pensa. A ex-Presidenta Dilma Rousseff, na Lei 12.605/2012, buscou afastar o uso do masculino genérico e decretou que diplomas e certificados devem ser emitidos com a flexão de gênero correspondente ao sexo da pessoa diplomada. Demorou um pouco, mas hoje ecoam reflexos na sociedade: alguns programas da Rede Globo de Televisão já buscam se aproximar mais de seus telespectadores, o comercial do The Voice, por exemplo, ao anunciar as vozes da temporada, pergunta: “e quem será o campeão? ou a campeã da temporada?”. Algumas autoras desta Casa Editorial também já escrevem de forma parecida. A companhia aérea alemã Lufthansa também já anunciou que vai deixar de utilizar em sua saudação expressões específicas de gênero, como o famoso “bem-vindos, senhoras e senhores”. Parece bobagem, mas não é, e como diria Paulo Freire: “é uma resposta ao espírito do nosso tempo que grita que o mundo não é, ele está sendo”.[3] E como está sendo, o primeiro Poder a aceitar a linguagem inclusiva é o Judiciário. O Tribunal Superior Eleitoral[4] lançou uma cartilha, que pode ser encontrada aqui, com o objetivo de incluir todos, todas e todes no processo democrático brasileiro (uma pesquisa da USP estimou que 1,2% dos brasileiros se considera não binário[5]).
Mas, afinal, o que é essa linguagem inclusiva?
Antes, por que denominar de “linguagem inclusiva”, em vez de “linguagem neutra”, como todos têm chamado?
Basicamente, porque a linguagem nunca é neutra. Em outras palavras, cada um de nós está em uma dada formação discursiva, o que quer dizer que, quando falamos, escrevemos, pintamos, fazemos gestos, assumimos uma posição no mundo de acordo com o discurso que fomos/estamos inseridos, isso em qualquer enunciado. Ou seja, sempre há um sujeito por trás de uma palavra. Mesmo quando esse sujeito se “apaga” – como nos textos jornalísticos (em terceira pessoa, para dar o tom de objetividade) –, ele está expressando uma visão de mundo quando elege as palavras que vai usar, o destaque que irá dar, os atores que colocará no foco da notícia. Isso quer dizer que, quando um sujeito diz “Boa tarde a todes”, ele se coloca de uma determinada forma, demonstra sua axiologia. Mesma coisa quando alguém diz apenas “Boa tarde a todos”, ou elege dizer: “Boa tarde a todos e a todas”. O pensamento não existe fora da linguagem, e, por isso, podemos dizer que o discurso materializa as representações ideológicas: “as ideias não existem fora dos quadros linguísticos. Por conseguinte, as formações ideológicas só ganham existência nas formações linguísticas”.[6]
E por que de uma linguagem inclusiva? “A estrutura da língua que uma pessoa fala influencia a maneira com que esta pessoa percebe o universo”.[7] Dessa forma, se já entendemos que “judiar” e “denegrir” são palavras que têm uma carga depreciativa, podemos entender também que algumas pessoas não se sentem englobadas no uso do masculino genérico. O que não significa mudar toda a gramática normativa, mas se adaptar às situações de uso – entender os gêneros discursivos é, na verdade, ter o domínio de uma língua. Ou seja, “norma culta” e “gênero neutro” não são incompatíveis. Assim como a norma culta não é incompatível com o internetês. Essa linguagem inclusiva é apenas uma adição de termos que refletem a vida de certa comunidade. Proibir o uso e fechar os olhos para a existência de novas palavras é arbitrário e não ajuda no desenvolvimento de alunos, como muitos também asseveram. Em outras palavras – como no exemplo da narradora da SporTV –, se sabemos que alguém não se identifica com os gêneros masculino e feminino, por que não respeitar e usar o gênero neutro? Se estamos numa plateia com 50 mulheres e apenas um homem, por que não usar “boa tarde a todas”?
Um dos argumentos contra a linguagem inclusiva é que as línguas evoluem de forma natural, e que no caso dessa proposta seriam “intervenções conscientes”. Ora, essas mudanças acontecem o tempo todo: não falamos mais “criado-mudo” (além dos já citados “denegrir” e “judiar”), por ser pejorativa. O linguista Marcos Bagno traz o interessante exemplo da palavra inglesa “love”: no século XVI, a grafia era “luve” (veio de “lufu”), porém na escrita manual o “u” e o “v” eram confundidos, então, para evitar erros passou-se a escrever com “o”. O artifício gráfico modificou a palavra.[8]
Dito isso, em resumo, a linguagem inclusiva objetiva reconhecer a identidade de gênero de pessoas que se veem de forma não binária, ou mesmo de reconhecer que a mulher ampliou seu papel na sociedade contemporânea e não se vê mais abrangida pelo uso de termos masculinos como neutros. Propõem-se, então, o uso do “e” para desinência de vogal de gênero e a troca dos pronomes “ele”/“ela” para “ile” ou “elu”; além de, como sugerido pelo TSE, o uso de substantivos mais “abrangentes”, como “estudantes”, em vez de alunos ou alunas. Nem precisa destacar que os usos de “@” e “x” no lugar das vogais não inclui ninguém, apenas segrega ainda mais: deficientes visuais que usam aplicativos de leitura, por exemplo, esbarram nesses casos.
A pergunta derradeira: como um advogado pode utilizar essa linguagem inclusiva?
Para isso, precisamos entender os gêneros discursivos antes. O filósofo Mikhail Bakhtin postula que há um vínculo indissolúvel entre linguagem e atividade humana, assim, os gêneros refletem as condições específicas e as finalidades de cada atividade. Desse modo, existe uma falsa liberdade para o enunciador (pensando aqui no falante, autor etc.), pois ele sempre será cerceado pelas coerções do gênero. Ou seja, o advogado deve escrever de uma dada forma, sob determinadas regras, e, por enquanto, a linguagem inclusiva não cai bem em petições, contratos, peças etc.; ela foge do que se espera dentro daquela atividade. No entanto, nada impede que, ao tratar com clientes, a depender de como tais se refiram a si mesmos, se pergunte qual o pronome deve ser utilizado. Isso permite, inclusive, uma relação de maior confiança. A língua é, acima de tudo, o terreno das relações polêmicas e/ou contratuais, e entre advogado e cliente a relação deve ser pautada pela ética, respeito e confiança. O advogado precisa atingir ao páthos, e nada melhor para conquistar o enunciatário do que se colocar de uma forma que respeita a sua identidade de gênero. Agir assim não é se colocar politicamente de um lado ou de outro, mas respeitar diferenças e defender o direito de cada um ser o que é, e, principalmente, de se poder dizer o que quer – e isso, afinal, é a Democracia.
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[1] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=468985&ori=1. Acesso em: 21 jul. 2021.
[2] Veja mais em: https://www.cartacapital.com.br/cultura/governo-doria-vai-entrar-com-acao-por-inconstitucionalidade-contra-mario-frias/. Acesso em: 9 ago. 2021.
[3] Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/tony-marlon/2021/04/04/comercial-do-the-voice-mostra-o-brasil-que-pede-passagem.htm. Acesso em 9 ago. 2021.
[4] O Senado também já lançou cartilha: https://www12.senado.leg.br/manualdecomunicacao/estilos/linguagem-inclusiva. Acesso em 9 ago. 2021.
[5] Veja mais: https://veja.abril.com.br/brasil/nem-ele-nem-ela-os-nao-binarios-ganham-espaco-e-voz-na-sociedade/. Acesso em: 9 ago. 2021.
[6] FIORIN, J. L. Linguagem e ideologia. São Paulo: Perspectiva, 1997.
[7] VIGOTSKI, L. S. Pensamento e palavra. In: VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 5.
[8] Sobre o autor: BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico. São Paulo: Parábola, 2015; BAGNO, Marcos. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2012; BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: novela sociolinguística. São Paulo: Parábola, 1997.