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É razoável cassar beneficiários inscientes de uma fraude?
23/02/2022
Era uma manhã indistinta de janeiro na qual, como faço sempre, tomava café lendo os jornais do dia. Logo na página 2 da Folha de São Paulo, me deparei com um artigo do jornalista Hélio Schwartsman, que dizia o seguinte:
Dizimando a justiça
“É preciso manter algum senso de proporcionalidade nas punições
Tinha razão o Montesquieu. A separação dos Poderes é fundamental. Colocando de outra forma, é um perigo deixar os juízes legislarem.
Não sou muito impressionável, mas confesso que fiquei chocado ao ler, na reportagem de Ranier Bragon sobre as cotas de fundo eleitoral para mulheres e negros, que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) baixou resoluções que preveem que uso de candidaturas femininas fictícias” acarretará a cassação de diplomas ou mandatos de todos os candidatos da chapa partidária, “independentemente de prova de sua participação, ciência ou anuência”. Pior, o dispositivo vem sendo aplicado por alguns tribunais eleitorais, ainda que não haja uniformidade nas decisões.
Não tenho nada contra aplicar castigos a quem descumpra normas, mas é preciso manter algum senso de proporcionalidade. Ao atacar o problema com mão pesada, cassando todos os eleitos, tenham ou não participado da irregularidade, o TSE incorre numa forma de punição coletiva. Pode até ser que funcione, mas há muitas coisas que funcionam e, ainda assim, nos recusamos a utilizar.
Os generais romanos puniam a covardia em suas fileiras matando cada décimo legionário, independentemente do que aquele soldado em particular houvesse feito. Daí o termo “dizimar”. Funcionava. Os nazistas fuzilavam dez civis para cada soldado alemão morto em ações da resistência. Também funcionava. Nós poderíamos capturar as mães de criminosos foragidos e ameaçar matá-las se eles não se entregarem. Acho que funcionaria”.
A punição escolhida pelo TSE não só vai contra fundamentos do direito penal, como a individualização da culpa, mas também viola o contrato básico da democracia, pois priva o eleitor de representantes que ele escolheu. Mesmo para os que, como eu, têm uma quedinha pelo consequencialismo, a norma é, no longo prazo, contraproducente, já que reduz a confiança do cidadão na ideia de uma Justiça equilibrada” [14.01.2022]
A cassação de beneficiários inscientes de fraude
Eu mal consegui ler o resto do jornal. Um articulista respeitado e culto escrevendo que a Justiça Eleitoral agia como os generais romanos diante de tropas que se acovardavam? Dizendo que cassar o mandato de quem se beneficiava das fraudes – sem ter para elas contribuído – ofendia a individualização da culpa e o contrato básico da democracia?
Acontece que eu li no ano passado, e recomendo, o livro do Rodrigo López Zílio que fala da “Decisão de Cassação de Mandato – um método de estruturação”1. E eu mesmo, desculpem a propaganda, escrevi, no segundo semestre do ano passado um livro sobre “Ações Eleitorais contra o registro, diploma e mandato” 2. Em ambos os trabalhos esta questão do alcance e da repercussão das decisões cassatórias é versada, com a principiológica do Direito Eleitoral (e não do Direito Penal, evidentemente).
Incomodado, conversei com minhas amigas Promotoras de Justiça, Vera Lúcia Taberti e Ana Laura Lunardelli, que fazem a linha de frente na atuação eleitoral do Ministério Público de São Paulo. E me aconselhei com minha chefe, Procuradora Regional Eleitoral de São Paulo, Paula Bajer Martins da Costa. Ficou acertado que iríamos responder ao jornalista.
O texto que escrevemos, Vera Taberti e eu, e que foi efetivamente publicado na Folha de São Paulo em 24 de janeiro – sessão “Tendências e Debates”- foi o seguinte:
A responsabilidade dos partidos nas fraudes à cotas de gênero.
“Diante de tanto dinheiro público, cobrar apego à lei não é nenhuma demasia.
Este texto se contrapõe ao artigo “Dizimando a justiça”de Hélio Schwartsman, publicado nesta Folha. O colunista critica a orientação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de cassar toda a chapa proporcional de candidatos quando houver prova da fraude das candidaturas femininas fictícias.
Clamando por um “senso de proporcionalidade nas punições”, Schwartsman, em comparação infeliz, fala dos generais romanos dizimando tropas covardes e de nazistas executando dez civis para cada soldado alemão morto pela resistência.
Os fatos são mais prosaicos. Os partidos políticos brasileiros mostravam desapreço por chapas plurais nas disputas para vereador ou deputado. Lançavam chapas exclusivamente masculinas ou com algumas poucas mulheres. Isso fez de nosso país um dos mais desiguais do mundo em relação à participação feminina. De acordo com relatório do Fórum Econômico Mundial (Global Gender Gap Report – 2021), o Brasil ocupa o 108º lugar em relação à igualdade de gênero na política.
A lei passou, então, a prever uma cota feminina, de modestos 30%, nas chapas proporcionais. Infelizmente, partidos usaram ardis para burlar essa regra. Inscreviam candidatas que nem sabiam que o eram, ou que não faziam campanha, ou que faziam campanha para terceiros e nada arrecadavam.
Ao julgar o “caso José de Freitas”, em 2016, o TSE equiparou tal prática à fraude, permitindo que fossem propostas as ações eleitorais correspondentes.
O papel dos partidos políticos
Os partidos políticos exercem um papel-chave nas candidaturas, em especial nas proporcionais. Elas não são independentes. Cabe às siglas demonstrar a regularidade, inclusive documental, das convenções que realizaram e da escolha de candidatos, sob pena de toda a lista ser considerada inválida. É o Demonstrativo de Regularidade dos Atos Partidários (Drap). A decisão do TSE de 2016 apenas considerou que, quando há fraude no cumprimento da cota de gênero, o Drap é irregular, com as mesmas consequências que adviriam de outras irregularidades na convenção partidária: a perda do registro dos candidatos.
A questão trazida pelo colunista foi debatida no TSE, em 2020, no”caso Valença do Piauí: se a perda de mandato abrangeria apenas os que tivessem colaborado para o engodo ou se, como já ocorre nos demais vícios do Drap, alcançaria todos os eleitos. Era um caso difícil, pois, a despeito da fraude, mulheres haviam sido eleitas para a Câmara Municipal local. A decisão do tribunal reafirmou sua jurisprudência, indicando a obrigação dos partidos de atender a todos os requisitos legais e constitucionais da chapa de candidatos que optam por lançar.
Com tanto dinheiro público dado às legendas, exigir responsabilidade, cuidados e apego à lei não é uma demasia. Candidaturas dependem de atos e decisões partidárias, o que não parece ser uma novidade.
Vê-se, portanto, que não se trata de uma “responsabilização coletiva” nem se “viola o contrato básico da democracia”, expressões altissonantes, mas desapegadas da realidade fática e jurídica da situação. Trata-se da consequência de um mau passo de alguns partidos que não acreditam na igualdade essencial entre os gêneros”.
Ficamos, é claro, orgulhosos pela publicação da nossa resposta. Embora tivéssemos que reduzir o texto original para caber no espaço limitado do jornal – e, com isso, deixando de lado alguns argumentos – achamos que tínhamos “dado nosso recado”.
Para minha surpresa, noutro café matinal, no dia 25 de janeiro, me deparei com a réplica do jornalista:
O ônus da fraude cabe ao fraudador
“Não faz sentido cassar o mandato de alguém por falcatruas de terceiros
Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, procurador regional da República, e Vera Lúcia Taberti, promotora de Justiça, escreveram na edição desta segunda (24/1) artigo em que contestam minha coluna “<Dizimando a justiça”.
Agradeço o tom civilizado da crítica, o que não é uma constante nos dias que correm, e os oportunos esclarecimentos. Receio, porém, que eles não tenham mudado minha avaliação sobre as resoluções do TSE que permitem cassar toda a chapa proporcional de candidatos quando houver prova da fraude de candidaturas femininas fictícias. A meu ver, essa é uma punição desproporcional quando aplicada a candidatos que não participaram da fraude e que ainda pode frustrar a vontade do eleitor.
Gonçalves e Taberti justificam a cassação coletiva como a resposta normal da Justiça a irregularidades que afetem toda a chapa. Seria como uma convenção feita fora do prazo, por exemplo. Complicado. Não estamos, afinal, falando de uma burrada coletiva, mas de fraude. Não se pode excluir que os dirigentes partidários que a perpetraram tenham feito isso para se apropriar das verbas, hipótese em que os membros não comprometidos da legenda deveriam ser descritos como vítimas.
E vale notar que o TSE não oferece resposta consistente sobre o tratamento a ser dado a fraudes. Produziu essas resoluções que autorizam punições coletivas, mas, no recente julgamento da chapa Bolsonaro-Mourão, sinalizou que a fraude só justifica a cassação se tiver ocorrido em escala capaz de mudar o resultado da eleição.
Adoraria ver Bolsonaro destituído, mas creio que tal interpretação é mesmo a melhor. Afinal, a missão precípua da Justiça Eleitoral é assegurar que a vontade do eleitor se materialize. É sob essa lógica que leis e regulamentos devem ser aplicados.
Se os eleitores escolheram um candidato que disputou o pleito de boa-fé, não faz sentido cassar-lhe o mandato por falcatruas de terceiros”.
Fiquei feliz com o prosseguimento do debate. Tenho certeza de que a Vera também ficou. E fomos, de certa forma, elogiados pelo caráter lhano de nossa réplica. Isto, para mim, é profissão de fé: ninguém é, nem pode se considerar, dono da verdade. Einstein estava errado em sua crítica à mecânica quântica e na sua opinião de que o universo era estático. Se o grande gênio da física errou, porque pessoas como eu mesmo, Vera ou Hélio Schwartsman – ou qualquer outra! – não poderiam estar erradas?
A melhor maneira de contrastar opiniões que, talvez, estejam equivocadas, é o debate franco, mas educado, polido e respeitoso, que usa argumentos ao invés de ofensas. A discussão mais produtiva é a que aceita a legitimidade das razões divergentes.
Nesse texto aqui na “Cachaça Eleitoral”, quero registrar um argumento que simplesmente não coube no espaço que tivemos na Folha de São Paulo: o problema das consequências advindas de atos ilícitos de terceiros.
O tema foi muito bem exposto na ementa do importante julgamento do TSE no caso “Valença do Piauí”:
“[…] 8. Caracterizada a fraude e, por conseguinte, comprometida a disputa, não se requer, para fim de perda de diploma de todos os candidatos beneficiários que compuseram as coligações, prova inconteste de sua participação ou anuência, aspecto subjetivo que se revela imprescindível apenas para impor a eles inelegibilidade para eleições futuras. Precedentes.
9. Indeferir apenas as candidaturas fraudulentas e as menos votadas (feito o recálculo da cota), preservando-se as que obtiveram maior número de votos, ensejaria inadmissível brecha para o registro de “laranjas”, com verdadeiro incentivo a se “correr o risco”, por inexistir efeito prático desfavorável.
10. O registro das candidaturas fraudulentas possibilitou maior número de homens na disputa, cuja soma de votos, por sua vez, contabilizou-se para as respectivas alianças, culminando em quociente partidário favorável a elas (art. 107 do Código Eleitoral), que puderam então registrar e eleger mais candidatos.
11. O círculo vicioso não se afasta com a glosa apenas parcial, pois a negativa dos registros após a data do pleito implica o aproveitamento dos votos em favor das legendas (art. 175, §§ 3º e 4º, do Código Eleitoral), evidenciando-se, mais uma vez, o inquestionável benefício auferido com a fraude.
12. A adoção de critérios diversos ocasionaria casuísmo incompatível com o regime democrático” – TSE – Recurso Especial Eleitoral nº 19392 – Rel. Min. Jorge Mussi, j. 17/09/2019“.
Quem milita no Direito Eleitoral sabe que este precedente foi no mesmo sentido da interpretação que se faz em situações de abuso de poder, como as da Ação de Investigação Judicial Eleitoral (art. 22 da Lei Complementar 64/90) e da Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (art. 14, par. 10 da Constituição Federal).
Por exemplo: se um político inescrupuloso usa da máquina pública, de modo relevante, em prol de um determinado candidato, considera-se que a eleição ficou viciada, cassando-se o registro, o diploma e o mandato do beneficiado, ainda que ele, pessoalmente, não tenha anuído ou participado do abuso.
É uma responsabilização objetiva, vinda de atos de terceiros. É um resultado próprio do Direito Eleitoral, que não guarda similitude com a imposição de penas criminais. A alternativa, porém, é reconhecer a validade de uma vitória calcada em trapaças.
Não haverá, todavia, para o candidato beneficiado, geração de inelegibilidade, pois esta sim, é dependente de anuência ou participação.
A solução preconizada pelo ilustre jornalista tem defensores. Basta lembrar que o julgamento do caso Valença do Piauí foi por maioria, até para preservar algumas candidatas mulheres que haviam sido eleitas. Todavia, achamos que a decisão foi correta. Se a cassação depender de participação individual, bastará ao candidato invocar desconhecimento do ilícito ou agir com “cegueira deliberada” para que a fraude alcance seu objetivo. Qual seria, a propósito, a legitimidade de um candidato que se elegeu graças a abusos e fraudes?
Em se tratando de cargos proporcionais a questão é ainda mais complicada. O voto dado a cada um dos candidatos de um partido integrará a soma que decidirá quantas vagas a agremiação vai ocupar. Cassações realizadas após o registro não impedem que os votos sejam dados aos partidos. Ou seja, mesmo que se casse apenas os fraudadores conscientes, os demais se beneficiarão do engodo.
Foi o argumento que usamos em nossa contestação, indicando que a responsabilidade pelas cassações é dos próprios partidos.
Perguntamo-nos agora sobre qual seria a efetividade de uma ação afirmativa como esta, tão justa, de aumentar a igualdade de gênero no país, se um partido puder fraudar a quantidade mínima de mulheres e, ainda assim, formar bancada?
Fica o convite à reflexão.
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NOTAS
A defesa da solução adotada pelo TSE no Caso Valença do Piauí não me impede de externar uma preocupação. Zílio e eu, em nossos escritos, manifestamos certo inconformismo com a situação das condutas vedadas, art. 73 e seguintes da Lei 9.504/97. Nelas, se o julgador se decidir pela cassação, o candidato beneficiado ficará inelegível, sem que no momento do pedido de registro tenha oportunidade de demonstrar que foi mero beneficiário do abuso de outrem e não partícipe.
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