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Ubi vinum, ibi jus

DIREITO AO VINHO

Marcílio Toscano Franca Filho

Marcílio Toscano Franca Filho

05/07/2023

Brasil e Portugal mantêm uma longa relação em torno do vinho. Na carta que Pero Vaz de Caminha dirigiu ao Rei D. Manuel I, em 1 de maio de 1500, já havia referências à bebida. 

Segundo o escrivão da esquadra de Cabral, durante um dos primeiros contatos com os indígenas, lhes foi oferecido vinho: “Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais.” Nos dias seguintes, renovada a oferta, a reação foi outra: “Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber.”

Não que o vinho fosse de má qualidade: Historiadores dão conta de que as caravelas que chegaram ao Brasil teriam sido abastecidas com nada menos do que 65 mil litros de legítimo Pêra Manca, o néctar ainda hoje apreciado, produzido desde meados do ano 1300 nos arredores de Évora, no Alentejo.

Desde aquela “primeira importação”, o vinho e a uva espalharam-se pelo Brasil. À medida que o setor vitivinícola foi ganhando expressão social, geográfica e econômica, toda uma legislação específica foi nascendo e se aperfeiçoando, ao tratar de questões relativas à produção, circulação, comercialização, promoção e consumo do vinho. O fenômeno, aliás, não é nacional: como diriam os romanos, ubi vinum, ibi jus, ou seja, lá onde está o vinho está também o direito, mais precisamente, o “direito do vinho” ou “direito vitivinícola”. 

Direito do vinho

Creio que a primeira vez que ouvi a expressão “direito do vinho” foi no ano 2000, na multissecular Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em um seminário doutoral conduzido pelo Prof. Doutor Vital Moreira, grande publicista da Escola Coimbrã. 

Anos antes daquele seminário, Vital Moreira tratara, em seu doutoramento, da Região Demarcada do Douro, a mais antiga do mundo, criada em 10 de setembro de 1756 pelo Marquês de Pombal. A tese deu origem a um clássico do direito do vinho: “O Governo de Baco: A Organização Institucional do Vinho do Porto”, publicado em 1998 pelas Edições Afrontamento. Foi com Vital Moreira também que ouvi falar, pela primeira vez, da Associação Internacional dos Juristas da Vinha e do Vinho (AIDV).

Nos passados dias 16 e 17 de junho, a mesma Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em que Vital Moreira se aposentou como Professor Catedrático promoveu o I Congresso Luso-Brasileiro de Direito do Vinho, evento que reuniu professores, pesquisadores, estudantes, empresários e autoridades públicas para discutir aspectos variados da legislação vitivinícola dos dois lados do Atlântico. 

Impossível imaginar melhor lugar para abrigar um evento acadêmico como aquele. Não bastasse a contribuição pioneira de Vital Moreira, a tradicional Universidade de Coimbra, fundada em 1290 e patrimônio cultural da humanidade, situa-se no coração da Bairrada, uma das principais regiões vinícolas de Portugal.  

Resultado de uma frutífera parceria entre a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, a Academia Brasileira do Direito do Vinho (ABDVin) e a Universidade de Caxias do Sul, a conferência homenageou o romanista português António dos Santos Justo e o civilista gaúcho Bruno Miragem pelas respectivas contribuições acadêmicas ao direito do vinho. 

I Congresso Luso-Brasileiro de Direito do Vinho

A programação do I Congresso Luso-Brasileiro de Direito do Vinho foi extensa e variada. Juristas portugueses de grande prestígio, como Sandra Passinhas, Jónatas Machado, Paulo Mota Pinto, António Pinto Monteiro, João Paulo Remédio Marques, João Reis, João Nogueira de Almeida,  Rui Dias, João Pinto Monteiro, Mafalda Miranda Barbosa,  Suzana Tavares da Silva, Alberto Ribeiro de Almeida e Armando Sousa discutiram com colegas brasileiros como Paulo Caliendo, Bruno Miragem e Júlio Pogorzelski temáticas relacionadas a OMC, denominações de origem, indicação geográfica, acordos de livre-comércio, cláusula penal, tributação, responsabilidade civil, infrações penais, adegas cooperativas, composição, rotulagem, promoção comercial, práticas ambientais, patrimônio cultural, enoturismo, relações de trabalho, falsificação, contrabando etc.

A esse notável grupo de juristas juntaram-se também a Profa. Carmen Soares, Catedrática de Estudos Clássicos na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que apresentou uma conferência magistral sobre o vinho na literatura, a Profa. Regina Vanderlinde, que compartilhou sua experiência como ex-presidente da Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV), e a prefeita do município viticultor de Anadia, a engenheira Maria Teresa Cardoso, que tratou das políticas públicas para a promoção do vinho. 

À margem dessas inovadoras e profundas discussões, visitas técnicas a vinícolas e vinhedos propiciaram momentos de um vivo contato com os modos lusitanos de compreender e fazer a vitivinicultura. 

A convite da organização do evento, fiz uma conferência sobre o Patrimônio Cultural Agrário e o Direito do Vinho, em que abordei o papel da UNESCO na salvaguarda do patrimônio material e imaterial ligado à cultura da uva e do vinho. Tratei, entre outras coisas, do fato de que, mais do que uma bebida alcoólica, um alimento ou mesmo um remédio, o vinho era um elemento de comunhão social e cultural e não era à toa que essa era a bebida oferecida no momento mais solene da missa.

Depois da minha conferência, numa das tertúlias eno-músico-lítero-atístico-jurídico-gastronômicas paralelas ao congresso, um colega professor me perguntou, se o direito fosse um vinho, qual vinho seria o direito. A pergunta me intrigou. 

Depois de pensar um pouco, respondi que partia da premissa de que não há uma verdade enológica universal possível, tanto quanto não me parecia plausível uma verdade jurídica universal. Há aqui tão somente possibilidades ou conjecturas.  

Dito isso, respondi que o direito não me parecia, em primeiro lugar, um vinho D.O.C.G. Houve um tempo, em que se acreditava que o direito poderia ter denominação de origem controlada e garantida. Havia claramente um direito brasileiro, um direito alemão, um direito americano, um direito português. Cada sistema jurídico teria um terroir inescapável. O terroir do direito já foi o burgo, o arquiducado, o reino, o Estado-nação mas, hoje, porém,  cada vez, mais, o terroir do direito abre-se a territórios diversos, de influências globais, fluidificando-o. Concluí que o direito poderia ser um bom vinho de mesa. 

Nisso, porém, não havia nenhuma consideração de mérito ou qualidade. Ser um “vinho de mesa”, “vin de table” ou “Tafelwein” não é obrigatoriamente um mau indicador. Já tomei grandes vinhos de mesa, produzidos no quintal da casa de alguns amigos italianos. Há mesmo o exemplo dos  “Supertoscanos”, cujos produtores não queriam seguir as regras rígidas impostas pelo sistema de denominação de origem italiano e preferiam a classificação “vino da tavola”. Sassicaia e Tignanello nasceram como vinhos de mesa. 

E por falar em Supertoscanos, ainda há uma outra característica interessante nesses vinhos, que também se aplica ao direito. Eles são vinhos de assemblage, de corte ou blend. Direito é sincretismo, mistura, e esses vinhos que reúnem duas ou mais cepas trazem a dimensão da pluralidade para alcançar maior estrutura, aromas mais complexos, equilíbrio em seus taninos e acidez e completude em suas qualidades.

Esse é o dia a dia do jurista e da juridicidade: reunir, agregar, juntar divergências. Um grande vinho de assemblage, como um supertoscano, é um trabalho muito intrincado, assim como é a construção de um sistema jurídico. O todo é muito maior que a soma individual das características e qualidades individuais de cada uva.

Galileu Galilei disse um dia que “il vino è un composto di umore e luce.” O I Congresso Luso-Brasileiro de Direito do Vinho constituiu, também, isso mesmo: um tempo de alegria, de (re)encontro com colegas e lugares queridos, e de muito aprendizado. 

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