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Reflexões sobre os desafios no ambiente hospitalar que podem impactar na construção e no exercício da autonomia do paciente e o uso da mediação

Luiza Soalheiro
18/02/2025
O conflito é inerente à convivência humana e pode se instaurar em diversos contextos e ambientes, entre eles, nos espaços que lidam com a saúde humana.
Com frequência, a angústia, o medo, a falta de informação adequada à realidade do paciente e a insegurança que, normalmente, se misturam às demais cargas emotivas, tornam próspera a instauração de conflitos no ambiente hospitalar ou em outro espaço em que são prestados os cuidados de saúde como, por exemplo, no próprio lar do paciente.
Justamente, nesse cenário, por vezes, conflituoso, o paciente com competência terá que tomar decisões sobre sua saúde, ou não tendo competência para tanto, seus familiares assumirão esse papel. Contudo, a falha na comunicação entre médico e paciente, ou entre médico e familiares do paciente, pode levar ao conflito, e uma vez instaurado, o exercício da autorregulamentação do paciente poderá ser afetado.
Nesse sentido, questiona-se: Nos tratamentos de saúde continuados, se surgir conflito na relação médico-paciente de forma a comprometer o exercício da autonomia privada do paciente para a tomada de decisão sobre o tratamento de saúde, a mediação pode ser um meio facultado às partes para contribuir com o exercício de autodeterminação do paciente?
As eventuais respostas a essas indagações foram desenvolvidas de modo mais detalhado na Tese de Doutorado desta autora, que posteriormente foi revisada e publicada em livro intitulado “Mediação na Relação Médico-Paciente”. Nesses estudos, caminhou-se para a conclusão de que a preservação da pessoalidade do paciente, diante de um conflito médico-paciente, pode ser potencializada pelo uso da mediação.
Por isso, nestas breves considerações, a proposta é trazer alguns exemplos/peculiaridades que permeiam, especialmente, as unidades de saúde, suscitando reflexões sobre os problemas e as dificuldades que podem impactar na autonomia do paciente caso ele venha a tomar decisões sobre um tratamento de saúde continuado.
De início, pode-se afirmar que o eventual desrespeito, pelo médico, e a própria condição de vulnerabilidade do paciente trazem desigualdades para a relação. Tal vulnerabilidade se correlaciona com o poder, uma vez que, diante de determinada situação, pode se observar de um lado um sujeito com poder, por exemplo, o médico, e do outro alguém (paciente) que pode ser ferido pelas atitudes do primeiro.
Levando-se em consideração que, ainda, hoje, a relação médico-paciente, não raro, releva-se assimétrica, o paciente normalmente é a parte vulnerável, o que deve ser analisado caso a caso. Nesse horizonte, vale também dizer que a autonomia do paciente não elimina sua vulnerabilidade. Ao revés, convivem juntas. “De tal modo, ainda que se pretenda incidir reforços na majoração da condição autônoma do sujeito, esta não é capaz de excluir ou anular a sua condição de vulnerável.” (Vasconcelos, 2020, p. 79). Por isso, o médico deve dar atenção a cada aspecto da pessoalidade do paciente, respeitando tanto sua vulnerabilidade como sua autonomia, e as inferências dessas na vida daquele.
Pode-se atestar que, na relação médico-paciente, “há um poder institucionalizado, posto na ordem do discurso médico, que eleva esse profissional de saúde a uma condição de sujeito determinante – ou dominante – de condutas no contexto relacional – sejam elas ações e omissões” (Vasconcelos, 2020, p. 116). Como resultado, essa hierarquização estimula a desigualdade na relação médico-paciente, fortalecendo a possibilidade do aparecimento de conflitos. Por essa razão, busca-se apresentar a mediação não só como possibilidade de redução da vulnerabilidade do paciente, mas também como meio a potencializar a construção da sua autonomia diante de um conflito que venha a se instaurar na relação com seu médico.
A mediação, enquanto método consensual de tratamentos de conflitos em que as partes já possuem vínculo relacional continuado, e um terceiro – denominado mediador – sem poder decisório, pode orientar e estimular os sujeitos a construírem as próprias saídas aos entraves pessoais, os quais incluem os desenvolvidos entre médico-paciente. Por essa abordagem, o mediador estimula o médico e o paciente a assumirem o protagonismo da situação, para que possam se perceberem inseridos no conflito para que, a partir desse reconhecimento, encontrem saídas compartilhadas.
Outro motivo que pode levar ao entrave pode surgir em razão da insuficiência de tempo para atender o paciente e seus familiares, especialmente, nas instituições públicas e nos atendimentos privados, realizados por meio dos planos de saúde. Essa situação dificulta a compreensão do médico sobre a história de vida do paciente, suas necessidades e expectativas, bem como o entendimento do paciente sobre seu estado de saúde.
Um médico que se desentende com outro da equipe sobre os cuidados de um paciente com câncer, internado há bastante tempo em uma unidade de terapia intensiva, por exemplo, pode atender, precariamente, o paciente, não lhe prestando a devida atenção e escuta, em razão de estar com raiva, desatento ou distante daquela realidade. Por sua vez, esse médico não terá condições adequadas para compreender as características da pessoalidade do paciente, que, por sua vez, não será informado, suficientemente, a ponto de ter condições apropriadas para decidir sobre um tratamento de saúde continuado. Nesse contexto, naturalmente pode surgir um conflito entre médico e paciente/familiares. Realmente, trata-se de uma cadeia de consequências.
Realmente, a posição dos médicos, em um contexto de saúde, especialmente, médico-hospitalar, não se releva de facilidades, pois, associado ao cenário emocional e de vulnerabilidade do paciente e de seus familiares, há também um elevado número de demandas, o que não contribui para um processo de individualização do atendimento.
Os hospitais privados são atualmente vistos como empresas e exigem dos profissionais da saúde o cumprimento de metas de atendimentos. O excesso de atendimentos, em especial, aqueles realizados por médicos ligados ao setor público ou aos planos de saúde, normalmente com tempo de consulta previamente definida, afasta a construção de um ambiente voltado para garantir o bem-estar do paciente.
Com efeito, “humanizar a medicina é valorizar os desejos do paciente, reconhecendo suas vontades e suas demandas. É dialogar não só com ele, mas também com seus acompanhantes e com cada integrante da equipe responsável por seu tratamento” (Reis, 2018, p. 120). Neste panorama, “humanizar a assistência aos doentes implica tomar conta e cuidar do doente considerado pessoa integral, assisti-lo e atender a seus anseios, percebendo que, na dor e no sofrimento, suas necessidades de afeto e de acolhimento se intensificam” (Reis, 2018, p. 120).
Logo, o processo de humanização implica mudanças comportamentais por parte dos envolvidos nos contextos de saúde, as quais poderão impactar na relação médico-paciente. Infere-se, portanto, a necessidade de melhoria na comunicação entre médico e paciente e familiares dos pacientes, haja vista fortalecer o respeito aos princípios da autonomia privada e do livre desenvolvimento da personalidade, uma vez que preservará a possibilidade do paciente de reger sua própria vida, o que inclui os aspectos de sua saúde.
O aperfeiçoamento da comunicação permitirá que médicos e demais membros da equipe médica possam ouvir e interpretar a biografia do paciente e suas expectativas quanto ao seu projeto de vida. Por consequência, isso pode contribuir para a prestação de um serviço de saúde humanizado, favorecendo o ambiente para que não se tenham conflitos judicializados. Tal realidade pode ser construída a partir da aplicação da mediação nos conflitos entre médicos/hospitais e pacientes/familiares
REFERÊNCIAS
Reis, M. L. C. A. (2018). Bioética e humanização em saúde. Em Abreu, C. B. B. (org.). Bioética e gestão em saúde. (pp. 115-144). Editora Intersaberes.
Soalheiro, L. H. M. (2022). A construção da autonomia privada para a tomada de decisão nos tratamentos de saúde continuados: as estratégias da mediação como um potencial meio à autodeterminação do paciente. (Tese de Doutorado). Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Soalheiro, L. (2023). Mediação na Relação Médico-Paciente. Editora Foco.
Soalheiro, L. (2024). Análise de Conflitos e Desafios no Ambiente Hospitalar que Impactam o Exercício da Autonomia Privada do Paciente. Revista De Gestão Social E Ambiental , 18 (10), e08933. https://doi.org/10.24857/rgsa.v18n10-192