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“Querida Elena Sergueevna (1988)”: Dignidade humana no cinema russo em tempos de “nadificação”

NADIFICAÇÃO

José Manuel de Sacadura Rocha

José Manuel de Sacadura Rocha

07/03/2017

Para meu pai, in memoriam

1   Introdução

Gostaria de falar de um filme pouco conhecido do grande público, chamado “Querida Elena Sergueevna” (URSS, 1988, 94min, direção e roteiro de Eldar Riazanov).

Em janeiro de 2016 aconteceu a 1ª Mostra de Cinema Russo Contemporâneo (Caixa Cultural, São Paulo, Capital – 14-27 de janeiro de 2016). A mostra pretendeu mostrar a produção do cinema russo moderno, mas o mais importante – e didático! – foi assistir a filmes que retratavam a vida e a sociedade no período final da ex-União Soviética e a “passagem” para a sociedade de mercado “liberal” (os filmes datavam, ao tempo de suas filmagens, de 1984 a 2012). O filme que gostaria de comentar – “Querida Elena Sergueevna” – exprime exatamente esse momento de transição, uma sociedade em que milhões de indivíduos se veem na necessidade de enfrentar o choque “cultural” – moral e político –, proposto na mudança econômica da Perestroika (“abertura”), “encontro” entre o Leste (East) e o Oeste (West), entre o “velho” e o “novo”, entre o “antigo” e o “moderno”, entre a “concorrência” e a “vivência”.

2   A Narrativa

No dia de seu aniversário, Elena Sergueevna, professora de um ginásio russo, recebe a visita em sua casa de quatro alunos. Agradecida e surpresa pela lembrança dos alunos – lhe trazem flores! -, ela os recebe em sua casa afetuosamente. Mas durante a noite percebe o verdadeiro motivo da visita. O grupo, composto por três rapazes e uma moça, entre 18 e 20 anos, pretende convencer a professora Elena a mudar as notas das provas do semestre, cuja aprovação serve para ingressarem na universidade. Se reprovarem terão que repetir o semestre e estarão impedidos de concorrerem às vagas das universidades, o que, segundo eles, isso lhes atrasaria a escolaridade e o ingresso no mercado de trabalho. Vendo que a professora não cederia a alterar as notas nem a lhes entregar a chaves do armário onde as provas estão, para que eles pudessem trocar as provas por outras já gabaritadas, partiram então para bestial agressão.

Inicialmente de forma sutil, depois com chantagem, prometendo transferir a mãe da professora de um hospital público, onde estava internada, para um privado onde o pai de um dos alunos é diretor; partindo para a tortura psicológica, arrancando o fio de telefone para que ela não pudesse pedir socorro; destruindo os poucos e “antigos” móveis que a casa humilde da professora conserva; com violência verbal e moral comparando-a a  uma sociedade fracassada e velha. Mas quando um vizinho ouvindo o barulho bate na porta reclamando, a professora protege os alunos dizendo que era apenas uma festa de aniversário. O fato é que a professora Elena é resoluta, não cede à chantagem,  à agressão e a imoralidade dos alunos, principalmente do mais velho que se coloca como líder.  Ela diz que não dirá onde a chave do armário da escola está “a não ser morta”.

É então que o líder do grupo tem a ideia de forçar a professora a revelar onde está as chaves, ameaçando estuprar a única jovem do grupo, virgem, partindo para a agressão à moça e a forçando ao ato sexual. Nesse momento, acreditando que ele estupraria a jovem, a professora Elena diz que as chaves estão no bolso do próprio líder! – ele as havia colocado ali quando tirou o chaveiro da porta e a trancou para que a professora não saísse de sua casa. Ato contínuo os jovens saem de casa, mas por pressão de um, em um último rasgo de decência – como que a se deixar no ar algo de “condescendência” com os mais jovens, ou como que a se resgatar a “esperança” -, o líder deixa as chaves em cima da mesa. A professora Elena Sergueevna se tranca no banheiro. A jovem aluna em prantos corre para a porta do banheiro e chama pela professora dizendo que eles não levaram a chave. Mas a professora Elena não responde e não abre mais a porta do banheiro de um pequeno apartamento de quarto e sala, completamente destruído. A dignidade humana, contudo, permanecia intacta na “jovem” professora carola, cinquentona, que usava vestidos velhos, que se penteava de forma a esconder os cabelos compridos num coque preso por um alfinete de avó!

3   O Contexto

É de notar que neste momento o filme retrata exatamente a “passagem” de uma sociedade em que a escolarização promovia a sucessão de estudos sem “concorrência” de vagas, pois existia escolaridade para todos os alunos em todos os níveis, para uma busca “meritocrática”, já que com a queda da URSS a Rússia passava por sérios problemas econômicos, meio à sua inserção na sociedade de mercado global, e via-se “envolvida” com uma administração pública sem recursos para atender aos programas sociais que durante dezenas de anos custearam as necessidades fundamentais da sociedade, como a escolaridade e acesso ao ensino superior.

É neste contexto que os alunos e a professora se encontram, não exatamente em lados opostos, não por este requinte indesejável de avaliação institucional oficial, mas ela e os alunos na situação de “concorrência pela sobrevivência”, algo que, verdadeiramente, aqui nos importa assinalar, uma “abertura” para as forças de mercado, tão abrupta em que afinal todos são vítimas. Algo que para nós, quando nascidos meio à desenfreada concorrência de mercado, é percebido como “natural”, destarte a falta de valores sólidos e de caráter que muitas vezes somos obrigados a preterir, e nos comprazamos com a meritocracia como o balsamo inglês da “evolução das espécies”, como se efetivamente  o “fetiche” das mercadorias e do trabalho deve solapar de seus horizontes as vidas dos mais “fracos”.

4   A Moral

Por isso nada a estranhar que jovens que não haviam nascido nesta paradoxal realidade das estruturas de mercado concorrencial, tão rapidamente tenham perdido a noção de limite e de decência, e tenham chegado tão rapidamente a níveis tão baixos de caráter e de brutalidade com uma professora que, apesar de viver a mesma experiência derradeira de todo  uma mudança estrutural–econômica  e política, consequentemente de valores morais próprios e relações interpessoais, permanece como o ultimo baluarte da “dignidade humana”.

5   Conclusão

Na modernidade concorrencial os sujeitos pensam como “1”, enquanto a “dignidade humana” diz respeito a “muitos”. A professora sendo “uma”, pensa em “muitos” (talvez até naqueles que com maior esforço passaram em seus exames, ou, quiçá, apenas no futuro de seu país?!). Talvez ela pense simplesmente apenas em sua dignidade. Mas aqueles alunos, apesar do “grupo”, pensam como “um”!

Vive-se em tempos de “nada”: existem os que “nada têm” para oferecer, existem os que “vendem” o pouco-ou-nada que têm para oferecer, e existem os que quase “nada querem” em troca pelo muito que podem oferecer. Os primeiros são muitos, nos ferem com sua ignorância pretensiosa e arrogante; os segundos são essa imensa “existência vegetativa” que se acopla ao poder e destrói as esperanças e a seriedade em nome de uma subalternidade monetária.

Mas existe um tipo de pessoa que é eterna, spinoziana, verdadeiros combatentes nas frentes contra a insensatez, a irracionalidade, a miséria espiritual, a barbárie e o egoísmo mercadológico: estes são a professora Elena Sergueevna, que preferem “partir” a compactuar e acobertar a desumanização da concorrência sem dignidade de pessoas que só podem se olhar no espelho, e para seus filhos, meio a uma “nadificação” que se constitui pela quantidade de igual espécie.


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