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O Olhar do Povo

DECISÕES JUDICIAIS

LÓGICAS DA JUSTIÇA

PODER JUDICIÁRIO

José Osmir Fiorelli

José Osmir Fiorelli

18/04/2018

Neste ensaio, a partir de três cenários, narram-se percepções a respeito de decisões judiciais. Delongas e subjetividades acentuam as diferenças, possivelmente inconciliáveis, entre as lógicas da Justiça, esta ancorada nas leis, e da sociedade, influenciada por emoções provocadas pelos acontecimentos.

Cena 1 – Madrugada. Representante do povo, notoriamente embriagado, em elevada velocidade, projeta o veículo contra outro. Dois jovens falecem. No julgamento, protelado astutamente para quase uma década depois, a Justiça descarta a embriaguez como prova, acatando argumento da defesa, pois teria sido produzida, pelo réu, contra ele mesmo.

Cena 2 – Membro da melhor sociedade, dono de significativo currículo, recolhe garota adolescente à margem de rodovia e a conduz a motel próximo. Detido em flagrante pela Polícia Militar. Permanece detido por algumas horas. A garota retorna ao anonimato.

Cena 3 – O dia nasce. Empresário divertira-se à noite em um desses muitos locais remotos, comuns nas periferias de grandes cidades. No retorno ao lar, só “dá carona” para o cansaço e o sono, acentuados por bebida e horário. A velocidade completa o quadro: adormecido, em uma curva, projeta-se contra um ponto de ônibus. Neste, um grupo de jovens aguarda o primeiro coletivo. Catástrofe.

Sobre essas cenas convergem diversos olhares:

– dos advogados constituídos pelos réus;

– dos promotores de Justiça;

– dos próprios réus e de seus familiares;

do povo em geral: o foco deste ensaio.

O povo analisa e “julga”. Baseia-se, principalmente, nas notícias (de TV, jornais, revistas) e, atualmente, nos comentários multiplicados pelas redes sociais. Pouco expressivas outras formas de acesso aos fatos.

À população interessa a Justiça, capaz de nivelar, em direitos, poderosos e cidadãos comuns, “iguais perante a Lei”. É-lhe incompreensível que o carisma de defensores ou investigados, a falta de dedicação ou a insuficiência de investigadores, a competência teatral da defesa ou da acusação, amizades e prestígio de pessoas, entre outros fatores subjetivos prevaleçam ou modifiquem resultados na apuração e no posterior julgamento de um delito.

Contudo, ocorrem situações em que as decisões se encontram distantes do que, efetivamente, o povo compreende a respeito dos acontecimentos. Resultado: surgem sentimentos de espanto, indignação, revolta, desconfiança e outros que contribuem para denegrir a imagem do Poder Judiciário e dos operadores do Direito junto à população.

Cena 1 – um mero descuido

Aquele que abrevia vidas pertence a família tradicional, prestigiada no cenário político e econômico regional. Palavra-chave: “poder”, que se faz sentir desde o primeiro momento: na cena do crime surge um parente, prepotente e ostensivo, com o objetivo explícito (e bem-sucedido) de influenciar na investigação – intimida e dá o tom da futura sinfonia jurídico-policial. O noticiário alimenta a suspeita popular.

Multiplicam-se as protelações comandadas pela defesa astuciosa – e aceitas pelo Poder Judiciário. A estratégia estende-se à investigação, tornada morosa e inconclusiva.

Os anos arrastam-se. A descrença popular atinge o máximo quando se divulga a tímida sentença.

Se, aos familiares, resta o consolo da vitória no tribunal, para a população permanece o evidente temor: “com essa penalidade… não há motivo para se preocupar”; “nem vai preso!”. De fato, o recurso transcorre em liberdade e a pena enseja cumprimento domiciliar.

A irrelevância da punição alimenta o entendimento de que os poderes social e econômico são, de fato, respeitáveis.

Cena 2 – a garotinha e a autoridade

Nas margens das rodovias garotas batalham, abreviam a vida, dia por dia, na atividade de comercializar o corpo.

Com os costumeiros clientes, sujos, cansados e entediados, compartilham carências e mediocridade no enfrentamento das misérias do cotidiano.

Desta vez, algo diferente sinaliza na alça de acesso. A jovem agilmente encaminha-se para o veículo de luxo. Ao volante, pessoa bem vestida, sorriso largo, bons modos. Sinais de riqueza. O ar condicionado acentua o convite. Porta destravada. A garota entra.

Entretanto, todo poderoso possui inimigos. A delação surte efeito: a guarnição policial coloca-se a caminho. Autoridade e companheira detidos no motel mais próximo. Ela, “de menor”. Xeque!

A dispendiosa máquina advocatícia atua com eficácia e eficiência: no dia seguinte, liberado, o cidadão lê seu nome em manchete do principal jornal da região. Com direito a foto. Escândalo! Perde o confortável cargo político; em alguns círculos, torna-se mal visto; obriga-se a estratégico confinamento em condomínio de luxo.

Nas rodas de elite, contudo, as conversas ganham, pouco a pouco, novos tons. Afinal, “a garota não passava de uma prostitutazinha de rodovia…”; “ele ficou é com dó dela…”; “ela só tinha a ganhar…”.

Para muitos, o tempo é o band-aid da moralidade.

Cena 3 – imprevisível, ma non troppo

Longa noite na balada… Álcool, companheiro inadequado. Evitar de que maneira? Todos fazem… Maconha? “… que mal faz um cigarrinho só?”. O cansaço instala-se; o cérebro implora sono reparador.

Quatro horas da manhã. Frustrado nas investidas, derrotado pelos jovens sarados, o solitário inicia a jornada de volta. A paisagem voa; na escuridão os faróis desenham o túnel de luz, e lá se vai, a perfurar as trevas. O medidor de velocidade encosta nos 130 km/h.

Quilômetros adiante, jovens deixam outra balada. Gente simples. Pobres. Insignificantes na estrutura social. Adolescentes em busca de aventura. Juntam-se no ponto do coletivo, próximo ao local. Aguardam o ônibus da madrugada.

Ali o encontro fatídico: o pequeno grupo e o motorista adormecido. A estrada, a curva retificada pelo cansaço, termina exatamente no abrigo onde se encontram os jovens, sonolentos e descuidados. O motorista acorda. Ao redor do veículo, espalham-se mortos, mutilados e feridos.

Avaliação da Promotoria: não há como imputar dolo a quem dorme. Teria sido uma decisão demorada, pensada, refletida. Inúteis as críticas da população, manifestas de inúmeras maneiras. Afinal, o ato foi consequência de um comportamento que se arrastou durante toda a noite.

O evento, contudo, trouxe à baila outro aspecto. Se um grupo de jovens da elite da cidade estivesse à saída de elegante estabelecimento, em conversa animada, na principal avenida e, de repente, o mesmo veículo, dirigido pelo mesmo cidadão, provocasse igual número de mortes, mutilações e ferimentos, como isso seria encarado pela Justiça? Culposo ou doloso? A resposta, para a população, é assustadoramente óbvia!

Incontáveis os casos em que o olhar da população e o olhar da Justiça convergem!

A Justiça viabiliza a vida social ao aparar arestas capazes de ferir o delicado tecido da convivência humana. Para muitos, é a grande responsável pela harmonia no convívio social.

Contudo, a prática bem-sucedida fica em segundo plano quando se avaliam os casos excepcionais e que revoltam os cidadãos. Nesta hora, prevalecem os efeitos das exceções!

Vários motivos contribuem para isso.

a) Efeito midiático

Comportamentos dos operadores do Direito, percebidos como ilógicos, constituem a cereja do bolo no banquete de escândalos de uma mídia faminta, ansiosa para divulgar o que há de pior. Arma-se o grande circo: mesas-redondas, depoimentos de especialistas, debates acirrados, opiniões de populares. Objetivo principal: ampliar a audiência.

b)Medo

Os desprovidos de privilégios temem exceções que possam tornar-se regra para eles. Quando o poder econômico, político, religioso ou de outra natureza parece triunfar por meio da reescrita da “verdade”, transformando os fatos, acentua-se a chama desse medo.

c) Desilusão

Do poder judiciário a população espera idoneidade. As pessoas percebem que os efeitos das decisões judiciais projetam-se para o futuro, afinal, no Judiciário, os agentes são, para todos os fins, perenes e praticamente inatingíveis. Nos demais poderes, existe a possibilidade do voto popular para promover alterações a curto e médio prazos, e, se isso não ocorre, a responsabilidade cabe aos eleitores.

Acentua esse entendimento a relativa dificuldade de acesso aos senhores do Judiciário, percebidos como distantes das pessoas comuns. Essa percepção valoriza suas decisões ainda mais, tornando-as referências. Possíveis equívocos tornam-se motivos de grande preocupação.

O “olhar do povo” inevitavelmente empresta um forte colorido emocional às decisões da Justiça. Evidente sinal de que as valoriza!

O que o povo vê

Os operadores do Direito – e o Judiciário, em particular – encontram-se em uma vitrine especialíssima. A sociedade enxerga os resultados concretos de suas ações e decisões. Dessa contemplação resulta a imagem que o povo desenvolve a respeito da Justiça. Isso é o que o povo vê.

Essa imagem deve ser continuamente zelada e aperfeiçoada, para que transmita, à sociedade, sentimentos de paz e confiança. Ou a Democracia sofre.


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