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O Mito do Delator Leal: Sobre a Recente Orientação do MPF para Operar a Colaboração Premiada
Víctor Gabriel Rodríguez
12/06/2018
O MPF acaba de emitir um documento denominado “Orientação Conjunta”[1], para direcionar seus membros sobre princípios e procedimentos ao operarem a chamada “colaboração premiada”. Trata-se de um esforço de unificação bastante louvável, mas que aqui aproveitaremos para fim paralelo: refletir sobre as abertas chagas da delação, as contradições que não se solucionaram ainda. Quer dizer, como o documento é uma extensão do texto da lei, por razões lógicas, ele reproduz ou fermenta os mesmos conflitos principiológicos dela.
Daí que analisar o que existe por trás da “Orientação Conjunta” implicaria revisar todo o tema, por ora nos fixamos em três pontos: (1) a definição ali concedida ao instituto da “colaboração”; (2) a paradigmática “negociação com lealdade e boa-fé”, e as (3) consequências de um eventual acordo não firmado. São pontos que a Orientação teve a coragem de enfrentar, viabilizando nossos comentários.
(1) O capítulo 1 da Orientação Conjunta, intitulado “Da Definição e Finalidade”, traz um, com todo o respeito, nada preciso intento de conceituação do instituto. E diz que o acordo “é negócio jurídico processual, meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse público (…)”. A construção da frase – se é que não há erro material – evidencia fuga à definição esperada: ao alocar o “meio de obtenção de prova” como aposto do “negócio jurídico processual”, não permite a soma em paralelo do significado de ambas as locuções. Propositalmente ou não, ser “meio de obtenção da prova” vem como mero aclaramento de “negócio jurídico processual”[2], o que, para dizer o mínimo, não parece contribuir ao conceito pelo qual ansiamos. Afinal, aquele que, no texto, avoca-se como único operador do instituto[3] deveria transmitir com clareza seus pressupostos.
No negativo, a definição fala mal, mas diz muito: sua tergiversação tem o claro fim de negar a natureza penal material da delação, para, assim, conservar o instituto como sistema processual. Com um aparente desleixo na construção, enuncia suas bases por esses únicos predicativos: “negócio processual” e “provas”.
Esse desígnio de esfumar a evidente natureza material da colaboração repete-se naqueles que hoje a operam. Já sabemos, de outros textos em que tenho insistido no tema, que o instituto se ancora em elementos de natureza substantiva, como a dosimetria da pena (inclusive por fixação de regime), o perdão judicial e, mesmo, a punibilidade. Todos eles, monopólio das regras da Parte Geral do Código Penal e das normas constitucionais que sobre este incidem.
Pois as consequências do reconhecimento dessa natureza substantiva seriam automáticas, como já comentamos, a partir mesmo da retroatividade: uma delação que revele delito em que o concerto criminoso houve antes da entrada em vigor da norma estaria, em nossa opinião, sob sério risco de inconstitucionalidade, entre outros. É parte das Antinomias da Delação[4], de que cuidamos, mas que aqui não há que aprofundar.
(2) O segundo e o terceiro pontos são aspectos da negociação por ela mesma. Porque existem diferenças essenciais no acordo de colaboração premiada, se comparado a um procedimento negocial qualquer, mesmo dentro do processo. Em nossa obra, desenvolvemos cinco dessas distinções[5], mas aqui cuidamos de duas, que do Documento Ministerial melhor se destacam, uma anterior e outra consequencial.
A primeira é o grande paradoxo subjetivo da negociação. Porque o documento, além de muito repetir sobre “absoluto sigilo” e “marco de confidencialidade”, exige como “obrigação mínima”, do colaborador, que se porte “sempre com honestidade, lealdade e boa-fé”[6]. E, para garantir que isso se concretize – diz a Orientação Conjunta – há que inscrever no acordo de delação uma “cláusula de boa-fé e confiança”[7].
A ironia da exigência me permite a força da ilustração de lembrar do debate televisivo entre Jânio e Brizola. Sim, porque naquele diálogo antológico de que os mais velhos nos recordamos, o ex-Presidente dispensou o adversário de fazer uma citação de Lacerda, porque, em palavras de Jânio, seria o mesmo que “colocar Satanás ou Asmodeus para comentar as Escrituras”. Algo assim. Não quero chamar o delator de demônio, tampouco posso fugir a evidenciar o paradoxo que constitui exigir dele que se porte com “lealdade e boa-fé”[8]. Afinal, o único requisito para construir-se um delator é que ele esteja a cometer um ato de deslealdade e má-fé, a “colaboração” mesma.
A não ser que creiamos que o delator, em lugar de ser alguém que – dentro de seu absoluto Direito – joga com punibilidade e pena, é um “revertido ao bem”. Numa conversão milagrosa, como aquela do cavaleiro que, em Damasco, cai cego ao chão após ver a luz divina. Um mito belo para o chamado Apóstolo das Gentes, mas distante do cotidiano penal: o delator não está em busca de uma inquebrantável amizade com o Estado brasileiro, senão de um acordo que lhe implique vantagens, a exercer um direito que a lei lhe consagra. E a lei, de modo mais realista que a Orientação, não menciona deveres de confiança[9], talvez porque saiba que a lei não pode impor virtudes.
(3) O terceiro ponto é a contrapartida do anterior. Quer dizer, da mesma forma como não há como exigir, na prática, que um delator tenha “boa-fé”, apenas por inscrevê-la na lei, tampouco se pode garantir que autoridades guardem as informações a elas reveladas com o sigilo absoluto de um padre confessor.
Nesse aspecto, outro importante diferencial da delação é que, se em uma negociação comum, entre partes, demanda-se um full disclosure, uma amplitude geral de informações prévia à firma de qualquer pacto, no acordo de delação isso é impossível por origem: a informação não é premissa da negociação, é a própria forma de adimplemento do pacto. A informação que inaugura o diálogo é quase a mesma que representa o cumprimento do acordo, então a interrupção dele é uma fantasia prevista em lei: a desistência do acordo, quando já concedidas as linhas mestras da delação.
A “Orientação Conjunta”, sobre o tema, prescreve relevante norma ética, ao dizer que, se o acordo não se celebrar, “o Ministério Público não poderá se valer das informações ou provas apresentadas pelo colaborador para qualquer outra finalidade”. É bonito de se ver, até porque, tenham ou não notado[10], a orientação eticamente supera a constrição da própria lei, que dispõe apenas que não se usem as provas autoincriminatórias contra o próprio delator, arrependido[11].
Ainda assim, na prática parece pouco garantido. Afinal, não se trata somente de que as autoridades não revelem uma informação a elas transmitida, mas de que se a mantenha totalmente estéril, o que se nos afigura quase impossível quando revelados delito e autoria diante daqueles que têm a nobre missão de combater a criminalidade. Sejamos claros: por maior que seja o sigilo imposto às autoridades, as informações trazidas pelo delator-desistente correm o risco seríssimo de desatarem investigações, conquanto por vias indiretas. Afinal, para usar uma imagem bem ilustrativa, o círculo de segredo não me parece maleável: ele foi rompido pelo delator, e não apenas alargado para incluir as autoridades negociantes. É o que, em nossa opinião, denota a irreversibilidade prática do procedimento de negociação, numa visão realista.
O documento ministerial é sim meritório, nossa crítica permanece apenas no de sempre, a romântica eloquência com que todas as autoridades têm encoberto o instituto da delação, mesmo em seus conceitos, para sequer tangenciar suas bases mais concretas. O utilitarismo não é um pecado em si mesmo, e ao assumi-lo se faz o melhor caminho para evitar que a norma tenha de se circundar de uma retórica tão imprecisa quanto incrível, invocando boa-fé, lealdade, confiança ou segredo absoluto entre persecutores e delatores.
[1] Orientação Conjunta nº 01/2018, datada de 23 de maio.
[2] É matéria para outro escrito o fato de que a Orientação determine que na “Base Jurídica” de qualquer acordo de delação se faça constar o art. 3º, §§ 2º e 3º, do CPC (item 24.1).
[3] Assim é que o § 2º do documento bem delimita um papel coadjuvante à polícia: “2. A exclusividade para celebração de acordo de colaboração premiada pelo Ministério Público Federal não impede o auxílio ou a cooperação da Polícia Federal.”
[4] Desenvolvemos, em nossa obra, sete antinomias da delação premiada. Vide: RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel, Delação Premiada: Limites éticos ao Estado, Rio de Janeiro: Forense, 2018.
[5] RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel, Delação Premiada: Limites éticos ao Estado, Rio de Janeiro: Forense, 2018, no capítulo 13.
[6] § 24.5.c, do documento.
[7] § 25 do documento.
[8] Apenas para constar, a expressão “boa-fé” aparece por cinco vezes no documento ministerial.
[9] Claro que por trás dessa exigência está a má experiência com o caso Joesley Batista. Não pretendemos nos pronunciar especificamente, mas cremos que não se pode impor a qualquer delator a obrigação de transformar-se em mártir, e não se locupletar de seu ato antiético, porém legal. Essa tentativa é resquício da visão da pena como mal compulsório, que há de se abandonar se o desejo é mesmo a chamada justiça premial. É matéria para outro texto nosso.
[10] Parece que houve, sim, nota, pois o § 39 reproduz a constrição exatamente como o texto da Lei 12.850/2013.
[11] Art. 4º, § 10, da Lei 12.850/2013.
Veja também:
- A delação premiada como fonte de conflitos
- Delação premiada 3: o problema do Estado traidor
- Delação Premiada 2: Custo Humano e Extermínio Natural
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