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FINANCEIRO E ECONÔMICO
O duelo ideológico fiscal: entre a austeridade e o desenvolvimentismo
Marcus Abraham
30/06/2023
Em todas as áreas do conhecimento humano, é muito comum encontrarmos posicionamentos distintos – por vezes até antagônicos – quanto à visão e convicção sobre os mesmos temas e questões.
Na política, por exemplo, contrastam as visões da direita e da esquerda, as quais se refletem na economia especialmente quanto ao papel do Estado (se neutro ou intervencionista), a partir das posições adotadas por governos liberais ou socialistas.
Igualmente, no Direito, tal cisão é muito comum. Assim ocorre no Direito Penal, diante de posicionamentos distintos de “garantistas” e de “punitivistas”. Já no Direito Tributário, temos aqueles que são “pró-fisco” e os que são “pró-contribuinte”. No Direito Internacional Público, há a corrente subjetivista e a objetivista. O fato é que, em quase todas as áreas do Direito, existem ao menos duas linhas de pensamento.
Entretanto, em todos esses casos, não é possível afirmar que um dos lados é o correto e o outro equivocado. Trata-se apenas de ideologias distintas.
Distintas formas de aplicação das normas do Direito Financeiro
No texto de hoje da Coluna Fiscal, pretendemos deitar o olhar sobre as distintas formas de aplicação das normas do Direito Financeiro, com especial destaque para os que interpretam os seus dispositivos constitucionais ou legais sob a ótica do equilíbrio e da austeridade fiscal, de um lado, enquanto outros adotam a linha desenvolvimentista, que se caracteriza pela intervenção estatal na economia, pregando o investimento direto de recursos públicos no fomento da produção industrial, do comércio e dos serviços, a fim de gerar empregabilidade e incremento da renda e reduzir as desigualdades sociais, além da utilização do incremento da “máquina estatal” e do funcionalismo público para os mesmos fins.
Em síntese, esse debate gira em torno, essencialmente, da proposta de controlar ou não os gastos públicos de um lado, e de incrementar ou não a arrecadação de receitas públicas, do outro, e, em paralelo, administrar o crédito público através das taxas de juros (elevadas ou reduzidas), assim como pelo controle e direcionamento de instituições financeiras públicas de fomento e de empresas estatais aos seus objetivos.
Este último, o desenvolvimentismo no Brasil, tende a considerar como não imperativas as normas que direcionam ao equilíbrio fiscal e à sustentabilidade financeira, diversamente do liberalismo que as tomam com maior rigor e as interpretam de maneira ampliativa.
Neste duelo ideológico, um dos principais aspectos é o do equilíbrio fiscal, revelado pela busca de superávits fiscais e redução da dívida pública, ou, ao revés, pelas propostas de aceitação e convivência com déficits públicos.
Equilíbrio fiscal
A previsão legal do equilíbrio fiscal já podia ser encontrada nos arts. 7º, § 1º e 48, alínea “b” da Lei 4.320/1964. Isso porque o primeiro dispositivo prevê que, em casos de déficit, “a Lei de Orçamento indicará as fontes de recursos que o Poder Executivo fica autorizado a utilizar para atender a sua cobertura”. O segundo já autorizava o contingenciamento de despesas, ao disciplinar a fixação de cotas trimestrais de despesas. Para tanto, tal regra expressamente estabelece que se deverá “manter, durante o exercício, na medida do possível o equilíbrio entre a receita arrecadada e a despesa realizada, de modo a reduzir ao mínimo eventuais insuficiências de tesouraria”.
Outro importante dispositivo que traduz o princípio do equilíbrio fiscal é o § 1º do art. 1º da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), que estabelece a ação planejada e transparente para a prevenção de riscos e a correção de desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange à renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar. Com igual sentido, o art. 4º, inciso I, alínea a, da mesma LC nº 101/2000, determina que a lei de diretrizes orçamentárias disponha sobre o equilíbrio entre receitas e despesas.
Dentre os vários dispositivos da LRF, merece destaque, ainda, o artigo 9º. Este impõe que, caso verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público deverão promover, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subsequentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias.
A Constituição Federal de 1967, em seu art. 66, versava, expressamente, sobre o equilíbrio fiscal (equilíbrio fiscal em sentido formal): “Art. 66. O montante da despesa autorizada em cada exercício financeiro não poderá ser superior ao total das receitas estimadas para o mesmo período”. Já a Constituição Federal de 1988 não trouxe o respectivo princípio de modo expresso, substituindo a previsão constitucional anterior pela chamada “Regra de Ouro” do equilíbrio fiscal contemporâneo (equilíbrio fiscal em sentido material), nos termos do art. 167, inciso III, que assim dispõe: “São vedados: III – a realização de operações de crédito que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta”.
Na mesma linha da limitação de empenho da LRF, temos na Constituição atual o artigo 167, § 18, estabelecendo que, se for verificado que a reestimativa da receita e da despesa poderá resultar no não cumprimento da meta de resultado fiscal estabelecida na lei de diretrizes orçamentárias, os montantes destinado às emendas individuais e de bancada impositivas (previstos nos §§ 11 e 12 deste artigo) poderão ser reduzidos em até a mesma proporção da limitação incidente sobre o conjunto das demais despesas discricionárias.
Sem o objetivo de esgotar os exemplos constitucionais, destacamos ainda o artigo 167-A: caso seja apurado que, no período de 12 (doze) meses, a relação entre despesas correntes e receitas correntes supera 95% (noventa e cinco por cento), no âmbito dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, é facultado aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público, ao Tribunal de Contas e à Defensoria Pública do ente, enquanto permanecer a situação, aplicar o mecanismo de ajuste fiscal através de uma série de vedações com gastos de pessoal. Igual linha temos na previsão do artigo 169, determinando que a despesa com pessoal ativo e inativo e pensionistas da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios não pode exceder os limites estabelecidos em lei complementar.
Sustentabilidade financeira
Em paralelo ao equilíbrio fiscal, temos assistido à ascensão e consolidação do ideal de sustentabilidade financeira, postulado que busca não só um equilíbrio das contas públicas na relação entre despesas e receitas, mas almeja alcançar resultados eficientes que permitam a protração no tempo deste equilíbrio de modo estável ou sustentável para as presentes e futuras gerações, com a gestão racional e prudente da dívida pública, numa noção de solidariedade e equidade intergeracional. Noutras palavras, podemos dizer que a sustentabilidade fiscal busca garantir a capacidade de o Estado manter a sua solvabilidade e satisfazer necessidades atuais sem comprometer a satisfação das necessidades futuras.
A importância da sustentabilidade fiscal (financeira, orçamentária e da dívida) tem sido cada vez mais reconhecida. Não à toa, a Emenda Constitucional 109/2021 introduziu expressamente na Constituição Federal a previsão da sustentabilidade da dívida pública em diversos dispositivos. No conteúdo da Lei de Diretrizes Orçamentárias, inseriu o preceito de se garantir a “trajetória sustentável da dívida pública” (art. 165, § 2º).
No artigo 163, inciso VIII, acrescentou que lei complementar disporá sobre a sustentabilidade da dívida, especificando: a) indicadores de sua apuração; b) níveis de compatibilidade dos resultados fiscais com a trajetória da dívida; c) trajetória de convergência do montante da dívida com os limites definidos em legislação; d) medidas de ajuste, suspensões e vedações; e) planejamento de alienação de ativos com vistas à redução do montante da dívida. E acrescentou o artigo 164-A para estabelecer que a “União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem conduzir suas políticas fiscais de forma a manter a dívida pública em níveis sustentáveis, na forma da lei complementar referida no inciso VIII do caput do art. 163 desta Constituição”. E o respectivo parágrafo único contempla que a “elaboração e a execução de planos e orçamentos devem refletir a compatibilidade dos indicadores fiscais com a sustentabilidade da dívida”.
O embate entre as diferentes formas de pensar as contas públicas é algo que sempre existirá em qualquer sociedade contemporânea, inclusive no Brasil. Contudo, nos últimos anos, como visto nos parágrafos anteriores, surgiram em profusão dispositivos constitucionais e legais de direito financeiro que não podem ser ignorados. O ponto central repousará na interpretaçãojurídica a ser realizada sobre esse arcabouço normativo, colocando para os poderes constituídos e a sociedade brasileira um verdadeiro desafio: como trilhar um caminho que, sem perder de vista a realização de direitos fundamentais e sociais, garanta o desenvolvimento sustentável de nossa nação.
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