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O novo dano moral trabalhista – Um ensaio sobre a cegueira (do legislador)
Nelson Rosenvald
09/01/2018
Definitivamente, trata-se de tarefa inglória a tentativa de resumir em um artigo de seis parágrafos todos os equívocos localizados na reforma da CLT, especificamente no que concerne ao dano moral trabalhista. Doutrinadores do direito do trabalho já se manifestaram amplamente sobre o assunto, pela emergência do exame de questões que impactarão na atuação diária de advogados e juízes. Talvez seja a hora de um civilista repercutir os pontos negativos desse pequeno “grande” tema da Lei n. 13.467/17 (atualizado pela MP 808/17), tendo em conta que os conceitos nela empregados se localizam na teoria geral da responsabilidade civil, sem jamais olvidarmos dos direitos fundamentais envolvidos nessa área tão sensível das relações trabalhistas.
Inicialmente, manifesto a minha incredulidade diante do art. 223-A da Reforma da CLT, dispondo que “Aplicam-se à reparação de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho apenas os dispositivos deste Título”. Na sequência, a lei enuncia que a “A etnia, a idade, a nacionalidade, a honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, o gênero, a orientação sexual, a saúde, o lazer e a integridade física são os bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa natural (art. 223-C, redação da MP 808/17). Vale dizer, o legislador viola a norma do art. 5º V, da CF, estabelecendo um insensato critério “numerus clausus” de situações existenciais que se projetam nas relações de emprego. Por mais generosa que tenha sido a referida listagem apriorística, ela não é capaz de mediatizar as inúmeras emanações da personalidade humana, tais como aquelas que impactam nas relações trabalhistas, como o dano moral por “tédio” e o direito de “desconectar”. Lembremos sempre de Saramago, no livro ‘Ensaio sobre a cegueira’: “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome. Essa coisa é o que somos”. Para evitarmos a medida extrema da inconstitucionalidade, a tendência inexorável é que o catálogo legal seja interpretado apenas como exemplificativo, pois o desafio do magistrado – e nisto se encontra o pioneirismo da doutrina – é a de delimitar critérios objetivos para evidenciar a existência de um dano, em uma linha de ponderação entre os interesses dignos de proteção de empregador e empregado. Selecionados os interesses que concretamente merecerão acolhida, o magistrado os localizará entre os danos extrapatrimoniais, sem alusão às míopes seleções infraconstitucionais em abstrato. A novidade legislativa não significa necessariamente inovação, originalidade e progresso. Melhor ficarmos onde estamos.
A segunda falha da reforma trabalhista consiste na imposição de uma tabela de danos extrapatrimoniais no art. 223-G (exceto para aqueles decorrentes de morte, conforme § 5º, introduzido pela MP 808/17), oscilando entre 3 e 50 vezes o “último salário contratual do ofendido”, conforme a ofensa seja de natureza leve (mínimo), até alcançar a ofensa de natureza gravíssima (máximo). Inicialmente, o legislador criou parâmetros abstratos para que o juiz possa objetivamente alcançar a sua conclusão quanto à classificação da natureza da lesão (tratarei adiante disso), o que em si, não é um demérito. Contudo, o grave reside em converter tais critérios em um aprisionamento dos valores reparatórios, com a agravante da qualificação dos montantes com base no salário de cada vítima, o que obviamente é um retrocesso na refinada consideração dos valores existenciais de cada ser humano em uma perspectiva alheia à órbita do mercado. Em uma comparação singela, a Lei n. 13.467/17 diferencia a extensão do mesmo dano causado a um vigia de uma empresa e de seu presidente, da mesma forma que o valor que se deva atribuir a indenização de que destrói uma geladeira no cotejo com um automóvel. Se para muitos, o tabelamento seria elogiável em termos de segurança jurídica, temos que compreender que no século XXI, segurança jurídica não mais significa a exclusiva tutela da conservação de situações patrimoniais, porém, a sua adequação com a garantia de acesso a direitos fundamentais, dentre os quais podemos incluir a vedação de categorias apriorísticas que reduzem uma infinidade de comportamentos antijurídicos a meros preços tabelados, o quê não apenas “coisifica” o ser humano, como, especificamente na reforma da CLT, permite que o empregador possa antecipadamente calcular o valor da lesão a direitos da personalidade e “internalizá-los” nos processo produtivo. A MP 808/17 alterou a referida parametrização, substituindo o critério remuneratório da vítima para limites máximos atrelados a múltiplos dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. Contudo, persiste a crítica quanto ao “aprisionamento” dos valores reparatórios e as suas deletérias consequências.
Prosseguindo, enuncia o art. 223, “b”: “causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação”. Parece que o legislador confundiu a básica distinção entre a titularidade de direitos da personalidade com a titularidade à pretensão compensatória de danos morais. Mesmo que o passamento provoque a extinção da personalidade e a sua consequente intransmissibilidade, algumas situações existenciais se prolongam na órbita pessoal de cada um dos que compõem o núcleo familiar. A memória do morto concerne a um conjunto de bens da personalidade que transcendem a pessoa do falecido e se incorporam na subjetividade de cada sobrevivente. A honra, o nome, a identidade do “de cujus” remanescem albergados pelos lesados indiretos. Restringir a exclusividade da titularidade da pretensão reparatória ao dano extrapatrimonial ao próprio trabalhador é um desprestígio a boa técnica e à obviedade da constatação de que quando atingidos pelo dano reflexo (ou por ricochete), os familiares não se tornam legitimados extraordinários a agir no interesse do falecido empregado. Pelo contrário, são os verdadeiros titulares das referidas situações jurídicas (parágrafo único, art. 12, CC), o que os legitima a agir em nome próprio na persecução da reparação pelo dano moral.
Quarta crítica: O art. 223-B insere “a fórceps” a concepção de que a pessoa jurídica sofre “dano de natureza extrapatrimonial” e detém uma “esfera moral e existencial”. Para alguns, o legislador apenas estaria seguindo a Súmula 227 do STJ, que há muito reconhece o dano moral sofrido pela pessoa jurídica. Não adiro a esse raciocínio. O referido enunciado é pragmático, nomeando como dano moral aquilo que consiste em lesão a interesses financeiros merecedores de tutela, apenas para facilitar a quantificação da reparação, permitindo aos juízes o arbitramento discricionário do valor da compensação de danos morais de uma pessoa jurídica, ao invés da tradução em números fiéis da árdua prova da extensão dos danos econômicos decorrentes da ofensa a um patrimônio imaterial. Já na reforma trabalhista, o legislador suplantou a frágil ficção jurisprudencial da dicotomia honra subjetiva x honra objetiva, substituindo-a pela pura e simples homogeneização axiológica entre o ser humano e a empresa. O fato é que a pessoa jurídica não titulariza direitos da personalidade, sendo a dignidade um atributo que concerne à humanidade. Por mais que art. 223-D tenha cuidadosamente evitado a transferência de características biopsíquicas do ser humano para uma realidade técnica, qualificou os bens jurídicos da “imagem, marca, nome, segredo empresarial e o sigilo da correspondência”, como atributos existenciais da empresa, quando, em verdade, tratam-se de ativos intangíveis de natureza econômica, ostentando os consequentes danos um cariz patrimonial imaterial. Ilustrativamente, o dano injusto decorrente de uma negativação no cadastro, afeta a credibilidade da corporação (“reputational damages”) naquilo que se traduz pela perda de clientes/fornecedores e redução do valor de mercado, dentre outros abalos financeiros.
Para terminar, uma quinta afronta à técnica jurídica é aferida na análise do conjunto de critérios objetivos oferecidos pela Lei n. 13.467/17 para amparar o arbitramento da compensação por danos morais. Dentre os 12 incisos do art. 223-G, os 6 primeiros e o último corretamente aferem a extensão do dano e os reflexos da ofensa na órbita existencial do ofendido. Todavia, são completamente despropositados os incisos VII a XI, que, sucessivamente, referem-se: ao grau de dolo ou culpa do agente; a ocorrência de retratação espontânea; ao esforço efetivo para minimizar a ofensa; ao perdão, tácito ou expresso e a situação social e econômica das partes envolvidas. Com chave de ouro, o § 3o, do citado 223-G, acresce que “Na reincidência de quaisquer das partes, o juízo poderá elevar ao dobro o valor da indenização” (Redação da MP 808/17). Pois bem, a função compensatória da responsabilidade civil – evidenciada no artigo 944 do Código Civil – limitou a reparação à extensão dos danos concretamente causados ao ofendido, vedando a introdução de considerações sobre as vicissitudes do ofensor (intensidade da culpa, comportamento pregresso ou posterior ao ilícito e a sua condição econômica). A incorporação desses elementos punitivos só seria possível se o legislador estipulasse critérios objetivos para uma condenação autônoma a uma pena privada. Nada obstante, a reforma trabalhista optou por hipertrofiar o dano moral, introduzindo elementos que lhe são estranhos, transcendendo o seu viés puramente reparatório de lesões existenciais, anabolizando a sua quantificação, sob o fundamento de uma pseudofinalidade punitiva, pautada na extrema reprovabilidade do comportamento do ofensor e em sua portentosa condição econômica. Houve uma verdadeira “perda de uma chance” do legislador criar uma pena civil com caráter punitivo e pedagógico de desencorajamento de atitudes antissociais seja pelo empregador acionado, como pelos demais “players” do mercado. Outra consequência da mencionada atecnia é que qualquer empregador poderá reverter uma vultosa condenação monocrática por dano moral, quando a fundamentação tenha considerado a reprovabilidade de sua conduta e a sua aptidão financeira como parâmetros de majoração da reparação.
Como de costume, atenho-me à métrica dos seis parágrafos e poupo o leitor de novas críticas ao modelo do dano moral trabalhista. Até mesmo, pelo fato de que a elegância pede a concisão do discurso. Assim, “terceirizo” esse sétimo e derradeiro parágrafo ao próprio legislador reformista, que, não satisfeito em errar em escala industrial, superou-se na falta de refinamento, produzindo regras óbvias e supérfluas como as dos artigos 223-E e 223-F: “São responsáveis pelo dano extrapatrimonial todos os que tenham colaborado para a ofensa ao bem jurídico tutelado, na proporção da ação ou da omissão”. “A reparação por danos extrapatrimoniais pode ser pedida cumulativamente com a indenização por danos materiais decorrentes do mesmo ato lesivo”. “§ 1o Se houver cumulação de pedidos, o juízo, ao proferir a decisão, discriminará os valores das indenizações a título de danos patrimoniais e das reparações por danos de natureza extrapatrimonial”. “§ 2o A composição das perdas e danos, assim compreendidos os lucros cessantes e os danos emergentes, não interfere na avaliação dos danos extrapatrimoniais”.
Veja também:
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