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Negócios imobiliários: Escritura pública vs instrumento particular

Carlos E. Elias de Oliveira

Carlos E. Elias de Oliveira

30/08/2024

Este artigo volta-se a discutir se é ou não viável (ou até recomendável) flexibilizar a obrigatoriedade de escritura pública prevista no art. 108 do Código Civil, que estabelece o seguinte:

Sobre o tema, recentemente, saiu mais um didático provimento da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ (CN-CNJ), sob a gestão proativa e incansável do ministro Luis Felipe Salomão, que liderou inúmeras iniciativas de alto impacto na organização das atividades notariais e registrais, como a elaboração de um Código Nacional de Normas – CNN-CNJ.

Trata-se do provimento 172, que introduziu o seguinte art. 440-AO ao CNN-CNJ:

Esse dispositivo consolida a interpretação sistemática e teleológica dada pelo Plenário do CNJ1 ao art. 38 da lei 9.514/97. Reconhece que, à luz desse preceito, somente as entidades integrantes do SFI estão autorizadas a formalizar, por instrumento particular, a alienação fiduciária em garantia de imóveis e os eventuais negócios jurídicos conexos.

Trata-se de uma das exceções legais à obrigatoriedade, prevista no art. 108 do Código Civil2, de escritura pública para negócios translativos ou de oneração de direitos reais sobre imóveis de valor superior à 30 salários mínimos.

Com preocupações didáticas – próprias de atos infralegais -, o supracitado dispositivo do CNN-CNJ foi além para apontar outros dois exemplos de exceções à obrigatoriedade do art. 108 do Código Civil: A de negócios translativos ou de onerações de imóveis promovidos por administradores de Consórcio de Imóveis e por entidades do SFH – Sistema Financeiro de Habitação (art. 45 da lei 11.795/08; art. 61, § 5º, da lei 4.380/64).

Instrumento particular na formalização de negócios imobiliários

Diante desse cenário, indaga-se: Dever-se-ia ou não alargar as exceções legais ao art. 108 do Código Civil, permitindo que particulares ou empresas possam formalizar negócios imobiliários por instrumento particular?

A resposta, a nosso sentir, é negativa.

Consideramos que essa ampliação seria extremamente danosa à segurança jurídica do nosso ordenamento e frustraria diversas finalidades de interesse público que pairam sobre o tráfego imobiliário.

Isso, porque há interesse público na exigência de escritura pública para negócios translativos ou de oneração de imóveis valiosos. Sobre o tema, tivemos a oportunidade de escrever em nosso manual de Direito Civil em coautoria com João Costa-Neto, in verbis:

Outro exemplo de finalidade que inspira a regra do art. 108 do CC é viabilizar a utilização dos serviços notariais na prevenção de crimes de lavagem de dinheiro e de financiamento de terrorismo e de proliferação de armas de destruição em massa, conforme arts. 137 e seguintes do CNN-CNJ. É que os tabeliães têm dever de reportar eventual indício desses crimes a partir de fatos insólitos nos negócios que vier a formalizar.

Na experiência brasileira, as exceções à obrigatoriedade de escritura pública têm ocorrido em favor de instituições financeiras e de administradoras de consórcios de imóveis3, que são submetidas a um regime rigoroso de fiscalização pelo Banco Central.

Entendeu o legislador que, por conta desse ambiente regulatório e fiscalizatório capitaneado por uma autarquia (o Banco Central), seria viável flexibilizar a obrigatoriedade de escrituras públicas para a formalização de negócios imobiliários “financiados” por essas entidades.

Não é, porém, adequado ultrapassar essa linha vermelha, abrindo espaço para que qualquer empresa ou particular possam lavrar instrumentos particulares com força de escritura pública em negócios imobiliários.

Transpassar o Rubicão aí seria abalar a segurança jurídica do sistema imobiliário brasileiro. Todas as finalidades de interesse público supracitadas se frustrariam.

Além disso, é segredo de Polichinelo que não necessariamente haveria barateamento para o consumidor, pois é consabido que os agentes privados costumam cobrar “taxas de escrituração” do consumidor ou majorar ocultamente o preço cobrado do consumidor, repassando a este os custos com profissionais contratados para a elaboração dos instrumentos.

A visão ora exposta encontra eco na comunidade jurídica majoritária do Direito Civil, do que dá prova o recente anteprojeto de reforma do Código Civil. Esse anteprojeto foi elaborado pela comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, nomeada pelo presidente do Senado4, presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão e sob a vice-presidência do ministro Marco Aurélio Bellizze.

Novo texto sobre a obrigatoriedade da escritura pública

A comissão, integrada por 38 juristas (com inclusão de professores, ministros do STJ e outros juristas), sugeriu a ampliação da obrigatoriedade da escritura pública para negócios imobiliários, exigindo-a mesmo para imóveis abaixo de 30 salários mínimos (com um desconto de emolumentos para esses casos). Veja o texto do novo texto sugerido para o art. 108 do CC:

Como se vê, em nome da preservação da segurança jurídica no tráfego imobiliário e na preservação dos diversos interesses públicos que rondam os negócios imobiliários, é inadequado entregar a atores privados o poder de elaborar instrumentos particulares com força de escritura pública, notadamente quando esses agentes não estiverem sujeitos a um rigoroso regime estatal de fiscalização.

Do ponto de vista operacional, temos testemunhado uma maximização constante na agilidade na confecção de escrituras públicas pelos cartórios de notas, especialmente depois da permissão dada para a elaboração de escrituras públicas eletrônicas com o provimento 100 do CNJ (o qual foi incorporado ao Código Nacional de Normas do CNJ – provimento 149).

Sempre é possível pensar em novas soluções, como, por exemplo, a de o cartório de notas manter escrituras públicas pré-prontas de vendas de uma determinada incorporadora para rápida assinatura (de modo eletrônico) com a concretização de venda.

Em suma, a formalização de negócios translativos ou de oneração de imóveis por meio de agentes sujeitos a um regime rigoroso de fiscalização pelo Estado é uma conditio sine qua non da preservação das diversas finalidades de interesse público que cerca o tráfego imobiliário. Não convém, pois, flexibilizar o art. 108 do Código Civil. Ao contrário, parece-nos mais adequada a alternativa de ampliação da obrigatoriedade de escritura pública na forma do apontado no anteprojeto de reforma do Código Civil.

Fonte: Migalhas

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NOTAS

1 CNJ, Procedimento de Controle Administrativo 0000145-56.2018.2.00.0000, Rel. Conselheiro Mário Goulart Maia, julgado em 8 de agosto de 2023.

2 Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.

3 Art. 6º da lei 11.795/2008.

4 Sobre os trabalhos da Comissão e o relatório final com o anteprojeto. Disponível aqui.

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