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MP nº 1.085: a má-fé como elemento necessário para a configuração de fraude à execução
Bruno Mattos e Silva
07/04/2022
A Medida Provisória nº 1.085, de 27 de dezembro de 2021, introduziu elemento nunca até então existente na legislação para a configuração de fraude à execução na hipótese de existência de demanda capaz de levar o devedor à insolvência: a má-fé do comprador.
A relevância da existência ou inexistência de má-fé por parte do comprador para a configuração de aquisição em fraude à execução já havia passado a ser controvertida em razão de julgamentos do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Esses julgamentos, embora não contassem com a unanimidade dos ministros do STJ, deram origem à Súmula nº 375 do STJ.
Súmula nº 375 e a má-fé
“Súmula nº 375: O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhorado bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.” (original sem destaques)
A Súmula nº 375 do STJ foi mais um grosseiro exemplo de jurisprudência contra legem, além de discrepar da doutrina e da jurisprudência majoritária dos demais tribunais até então.
Histórico da legislação processual sobre o assunto
Vejamos o que dispôs a legislação processual ao longo do período republicano. No período anterior a Getúlio Vargas, legislar sobre processo civil era matéria de competência dos Estados e não da União. Vamos começar com o Código de Processo Civil do Estado de São Paulo (Lei Estadual nº 2.421, de 14 de janeiro de 1930).
“Art. 950. Verifica-se a fraude de execução:
I – Quando o acto é precedido de arresto, sequestro, penhora ou citação para acção real ou pessoal, reipersecutoria, inscriptos, em se tratando de immovel, na fórma do decreto legislativo n. 4.827, de 1924;
II – Quando é praticado na imminencia da penhora, por haver execução apparelhadaoutitulo que dê direito à acção executiva, protestado por falta de pagamento;
III – Quando o adquirente dos bens tem razão para saber da pendência de demanda e da inexistência de outros bens do devedor, sufficientes, livres e susceptiveis de penhora.” (original sem destaques)
Como se vê, a legislação paulista diferenciava, para efeito de configuração de fraude à execução a existência de processo de conhecimento da existência de processo de execução (ou de “fase de cumprimento de sentença”, caso assim se queira chamar o processo de execução).
No caso da existência do processo de execução, sequer se exigia que o vendedor pudesse vir a ficar insolvente: a venda do bem, por si só, configuraria fraude à execução. O mesmo ocorria na hipótese de protesto de título executável, uma vez que isso já ensejaria a possibilidade de execução do título.
Já na hipótese de processo de conhecimento, a norma estabelecia algo semelhante à legislação que iria ser editada ao longo de décadas: não exigia que o exequente deveria provar a existência de má-fé por parte do comprador, mas a fraude à execução somente iria se configurar na hipótese de inexistência de outros bens passíveis de penhora.
Código de Processo Civil de 1939
Por ocasião do advento do Código de Processo Civil de 1939 (Decreto-lei nº 1.608, de 18 de setembro de 1939), foi abolida a diferença entre as hipóteses da existência de processo de conhecimento e processo de execução. Contudo, a questão da existência de boa-fé ou de má-fé por parte do comprador continuava irrelevante.
“Art. 895. A alienação de bens considerar-se-á em fraude de execução:
I – quando sôbre êles fôr movida ação real ou reipersecutória;
II – quando, ao tempo da alienação, já pendia contra o alienante demanda capaz de alterar-lhe o patrimônio, reduzindo-o à insolvência;
III – quando transcrita a alienação depois de decretada a falência;
IV – nos casos expressos em lei.” (original sem destaques)
Código de Processo Civil de 1973
A regulação permaneceu idêntica no Código de Processo Civil de 1973 (Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973): não se mencionava eventual má-fé do comprador, continuando esse elemento a ser irrelevante e impertinente para a configuração da fraude à execução:
“Art. 593. Considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens:
I – quando sobre eles pender ação fundada em direito real;
II – quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência;
III – nos demais casos expressos em lei.” (original sem destaques)
Código do Processo Civil em vigor
No Código do Processo Civil em vigor (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015), também não se verificou alteração quanto aos requisitos para a configuração de fraude à execução na hipótese de demanda tendente a levar o vendedor à insolvência: a boa-fé ou má-fé do comprador continuou a ser irrelevante:
“Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:
I – quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;
II – quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828 ;
III – quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude;
IV – quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;
V – nos demais casos expressos em lei.
- 1º A alienação em fraude à execução é ineficaz em relação ao exequente.
- 2º No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.
- 3º Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.
- 4º Antes de declarar a fraude à execução, o juiz deverá intimar o terceiro adquirente, que, se quiser, poderá opor embargos de terceiro, no prazo de 15 (quinze) dias.” (original sem destaques)
Aqui, um parêntesis: o § 2º do art. 792 do Código de Processo Civil em vigor é um tanto curioso. À primeira vista, parece até conter erro ortográfico, pois não há que se falar em local onde se encontra o bem na hipótese de bens não sujeitos a registro, que são bens móveis (exceto aviões e barcos, que são bens móveis, mas estão sujeitos a registro). Bens móveis, como o nome está a dizer, ou são bens que podem se mover ou são bens considerados móveis por disposição legal (ex. eletricidade). A única interpretação possível é a de que o § 2º se refere à aquisição de direitos incidente sobre imóveis não registráveis (ex. posse sobre bem imóvel em fracionamento irregular).
Enfim, no que é relevante, percebe-se que o inciso IV do art. 792 do Código de Processo Civil atualmente em vigor repetiu quase que textualmente a disposição do Código de Processo Civil de 1973: nenhuma exigência quanto a má-fé do comprador para configuração da fraude à execução.
A jurisprudência majoritária do STJ, portanto, continuou sendo contra legem, por estabelecer requisito que sempre fora impertinente e irrelevante para configuração de fraude à execução na hipótese de vendedor tendente à insolvência.
Medida Provisória nº 1.085
Essa questão mudou por ocasião do advento da Medida Provisória nº 1.085, de 27 de dezembro de 2021, que alterou o art. 54 da Lei nº 13.097, de 19 de janeiro de 2015: somente se caracteriza aquisição de imóvel em fraude à execução caso inexista boa-fé do comprador. A referida Lei nº 13.097/2015 havia sido uma frustrada tentativa de se exigir registro da ação que possa levar o vendedor à insolvência para configuração de fraude à execução. Essa tentativa de exigência, porém, não surtiu efeitos à época. Desta vez, o art. 54 passa a ser de teor seguinte:
“Art. 54. (…)
- 1º Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no registro de imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos art. 129 e art. 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.
- 2º Não serão exigidos, para a validade ou eficácia dos negócios jurídicos a que se refere o caput ou para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente de imóvel ou beneficiário de direito real:
I – a obtenção prévia de quaisquer documentos ou certidões além daqueles requeridos nos termos do disposto no § 2º do art. 1º da Lei nº 7.433, de 18 de dezembro de 1985; e
II – a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais.”
Não vamos discutir aqui se medida provisória pode alterar, por via reflexa, regra constante do Código de Processo Civil. Também não vamos tratar das certidões fiscais, que são exigidas pela Lei nº 7.433, de 18 de dezembro de 1985. Essas questões são analisadas na 14ª edição do nosso livro Compra de Imóveis: aspectos jurídicos, cautelas devidas, análise de riscos, edição 2022, já disponível no Mercado.
Interessa-nos neste artigo apenas tratar da evolução histórica dos requisitos legislativos para configuração de venda em fraude à execução na hipótese de devedor insolvente ou tendente a ser insolvente em razão de ação judicial.
Sobre a necessidade de registro para configuração de fraude à execução ao longo da história
Assim, surge uma pergunta: em algum momento da história legislativa brasileira foi necessário algum tipo de registro para configuração de fraude à execução na hipótese de ação tendente a levar o vendedor à insolvência? Vimos a legislação editada no período republicano. Vejamos agora as regras do período do Império.
No Regulamento nº 737, de 25 de novembro de 1850, o inciso III do art. 494 estabelecia algo que se aproximava da necessidade de conhecimento da situação de insolvência do vendedor por parte do comprador. Essa norma, porém, não tratava de boa ou má-fé do comprador, muito menos exigia qualquer registro para configuração da fraude à execução.
Houve um período em que a fraude à execução estaria caracterizada pela existência de sentença condenatória de obrigação de pagar. Contudo, isso também não se confunde com a necessidade de registro para a caracterização da fraude à execução.
O § 1º do art. 497 e o art. 498 da Consolidação das Leis do Processo Civil (Lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871) estabelecia que a sentença condenatória produzia hipoteca judiciária incidente sobre os bens do devedor, e sobre os bens alienados em fraude à execução, bem como essa sentença seria posteriormente inscrita no registro de hipotecas.
E o que seria bem alienado em fraude à execução naquela época?
O item 14 do Título LXXXIII do Terceiro Livro das Ordenações Filipinas era claro no sentido de que, durante a ação judicial, os bens imóveis já ficariam indisponíveis:
“E o que tiver bem de raiz, que valham o conteúdo na condenação, não os poderão alhear, durando a demanda, mas logo ficarão hypothecado, por esse mesmo feito e per esta Ordenação para pagamento da condenação.”
Antes da existência de um registro de propriedade de imóveis no Brasil, havia sido criado um sistema de registros de hipotecas. Isso pode parecer estranho nos dias de hoje. Na verdade, nos tempos coloniais não era incomum que bens móveis fossem mais valiosos que bens imóveis. Por isso a inexistência de registro de propriedade de bens imóveis, da mesma forma que bens móveis não eram sujeitos a registro. Com o desenvolvimento do país, foi necessária a criação de um registro de hipotecas, exatamente para dar segurança jurídica às operações de crédito.
Essa regra estava em sintonia com o mencionado art. 498: o registro da hipoteca judiciária não era requisito para configuração da fraude à execução. Pelo contrário: alienações em fraude à execução não obstavam a inscrição da hipoteca judiciária.
Trata-se, aliás, da mesma regra que existia no art. 224 do Decreto nº 3.453, de 26 de abril de 1865, que regulamentou a Lei nº 1.237, de 24 de setembro de 1864: a prévia inscrição da sentença condenatória no registro hipotecário não era requisito para a configuração de fraude à execução (“fraude da sentença”, na terminologia da época).
Portanto, a ineficácia em face do credor de alienação de bem em fraude à execução data dos tempos imperiais e se manteve no período republicano. Nunca foi necessário que o credor efetuasse qualquer registro para que se considerasse a venda de bens do devedor em fraude à execução. O que se modificou ao longo do tempo foi o momento em que a venda em fraude à execução estaria caracterizada: por ocasião da propositura da ação ou somente como consequência da sentença condenatória.
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