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Quais os limites dos auditores fiscais? É prudente limitar o Estado!
Lenio Streck
24/05/2019
Há um assunto que está dando pano para manga. O relator da Comissão Mista de Deputados e Senadores que analisou a MP nº 870/2019 (CF, artigo 62, parágrafo 9º) inseriu no texto o seguinte artigo sobre a competência da Receita Federal do Brasil em matéria criminal:
Artigo 64-A. A Lei nº 10.593, de 6 de dezembro de 2002 passa a vigorar com a seguinte alteração:
“Artigo 6º. […] parágrafo 4º. Para os fins do artigo 106, inciso I, da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), entende-se que: I – a competência do Auditor-Fiscal da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil limita-se, em matéria criminal, à investigação dos crimes contra a ordem tributária ou relacionados ao controle aduaneiro; II – os indícios de crimes diversos dos referidos no inciso anterior, com os quais o Auditor-Fiscal da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil se depare no exercício de suas funções, não podem ser compartilhados, sem ordem judicial, com órgãos ou autoridades a quem é vedado o acesso direto às informações bancárias e fiscais do sujeito passivo.”
Esse parecer foi aprovado pela Comissão Mista na sessão de 09.05.2019, pendendo a medida provisória do exame em separado das duas Casas do Congresso Nacional (CF, artigo 62, parágrafo 9º). A questão que se coloca é se a inclusão é (in)constitucional. Ministério Público e Auditores dizem que a inserção é inconstitucional. Vou procurar demonstrar que a emenda é constitucional. Ou melhor: ela não é inconstitucional.
Antes de qualquer coisa, é necessário fugir de um certo panconstitucionalismo – parente do panprincipiologismo – que acaba colonizando sobremodo o “mundo da vida” da ordinariedade jurídica. Daí que, como o faz muito bem Otavio Luiz Rodrigues Jr. no âmbito do Direito Civil, penso que devemos resgatar o estatuto epistemológico do Direito Tributário e das leis que tratam da proteção do cidadão, ultrapassando uma espécie de Estado Social autoritário tardio, em que os direitos individuais sucumbem face à coletividade.
Explico essa última afirmação, lembrando aqui de uma frase de Robert Alexy, no livro El concepto y la validez del Derecho (Barcelona: Gedisa, 2004, pp. 204-209), em que o jusfilósofo alemão alerta categoricamente para o fato de que, entre um direito individual e um interesse coletivo, há sempre a prevalência prima facie do direito individual fundamental. Pode até haver, ao final, prevalência de um interesse coletivo, mas jamais esta prevalência será prima facie. E complementa: Somente uma teoria política coletivista seria capaz de justificar a prevalência do bem coletivo em relação ao direito individual. E sobre isto o jurista alemão é peremptório.
Dito isto, ficam fragilizadas, prima facie, as alegações de que o emendamento provoca prejuízos à coletividade ou ao combate à impunidade. Alegações de caráter abstrato e metafísico que necessitariam de uma adequada prognose.
Explico, de novo. Qualquer (contra-)proposta fundada em especulações e/ou conceitos abstratos – especialmente aquelas e aqueles com os quais somos todos capazes de concordar – exigem uma adequada prognose, sob pena de justificarem qualquer coisa. Somos todos contra a corrupção; se eu digo que x favorece a corrupção, ora, então todos têm de ser contra x. Certo? Quase.
Eu tenho a responsabilidade de mostrar que x efetivamente favorece a corrupção. Se assim não o for – ou seja, se for possível atrelar qualquer coisa a uma premissa mais fundamental sem a devida justificativa –, não seremos apenas reféns, mas reféns que, vejam só, têm de agradecer por termos aqueles que sabem melhor do que nós o que realmente queremos. Essa é, e sempre foi, a receita para todo tipo de autoritarismo (do qual a história fornece mais exemplos do que gostaríamos).
É dizer: a proposta fragiliza a luta contra a corrupção? O ônus epistêmico de demonstrar se é isso que ocorre na prática está com quem faz a alegação.
Voltarei ao ponto. Por ora, sigo.
Quais os limites dos auditores fiscais?
Também me parecem fragilizadas as alegações de que o parlamento não pode emendar uma medida provisória que visa reestruturar a Administração Pública. Seria forçar demais sustentar que o Parlamento não pode fazer aquilo para o qual foi escolhido. As limitações impostas pelo STF não se aplicam ao caso, pela estrita imbricação da matéria emendada e os (próprios) fins da Administração.
Se o Poder Executivo deseja reestruturar parte da Administração própria, em que dimensão a inclusão de garantias ao contribuinte e a explicitação de que compartilhamento de informações, por exemplo, devem passar pelo crivo do Judiciário, feririam a Constituição? Veja-se: mesmo que o Judiciário diga o contrário, o parlamento pode fazer uma lei alterando essa posição, desde que não ferida a Constituição. Simplificando: Montesquieu Módulo I, Kelsen Nível Básico.
Por outro lado, não parece ser um forte argumento dizer que o artigo 106, I, do CTN tem status de lei complementar e que por isso seria vedado o emendamento. Não há parametricidade constitucional para sustentar o status de exigência de lei complementar. Nesse caso, lei ordinária pode efetuar a alteração. Não há exigência expressa, desnecessária a Lei Complementar.
E como se confirma esse argumento? Simples. A Lei 10.593 de 2002 é, ela mesma, ordinária, e fala da competência dos auditores da Receita Federal. Consequentemente, a emenda na aludida medida provisória tem caráter interpretativo e não encontra óbice de natureza constitucional. É uma questão lógica. Pode num caso, não pode em outro? Por quê?
Que não se pense não haver pertinência temática. Possíveis arbitrariedades conceituais à parte, que tornam qualquer vocábulo um conceito prêt-à-porter, de que modo dizer que o conteúdo temático da emenda não se relaciona ao objeto da MP? É uma questão hermenêutica. Só seria possível dizer que definições de competência da República não guardam correlação com uma medida cujo escopo é precisamente “a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos ministérios” a partir de um textualismo ingênuo. Competência não faz parte da “organização básica”? O que é organização básica, afinal? Esse é o ponto.
Textos são eventos a serem lidos dentro de seu contexto, afinal; ignorar essa lição hermenêutica é manter-se preso a um oitocentismo que postula por um código perfeito, completo, universal, que antecipe tudo, que a tudo responda de antemão. (Impossível não lembrar de quem sustenta a execução provisória da pena a partir de uma leitura segundo a qual a Constituição não menciona a palavra “prisão” no inciso que positiva o princípio da presunção de inocência. Textualismo de conveniência, literalidade de ocasião.)
Sigo. Na verdade, o que vem sendo discutido é uma questão política. E é aqui que volto ao meu ponto fundamental: afinal, a própria dogmática revela ser esse um easy case. Só resta(ria), pois, tudo aquilo que pertence à outra esfera. Em termos kelsenianos, diria que, ultrapassada a esfera da Ciência, só me resta sujar as mãos com a linguagem objeto. Sem problemas quanto a isso.
Vamos lá. Explico. O que pode fazer a Receita Federal? Quais são as suas competências e atribuições? Esse “o que pode”, num Estado de Direito – e, até onde sei, ainda vivemos sob um –, tem seus limites na lei e na Constituição. Simples. Assim, cabe ao Parlamento definir – e reiterar o que já definiu, aliás com base na Constituição – quais são os atos ao alcance dessa valorosa categoria de funcionários públicos. Esse é o busílis. Discutir se os comandos da Constituição e as deliberações anteriores do Parlamento, agora reiteradas, são ou não “boas” não é um juízo jurídico. Juridicidade é imputação. A conveniência (dizer se é “boa” ou não) de um comando é uma coisa; a sua legalidade-constitucionalidade (imputação), outra.
A questão que se põe, então, é: o legislador tem, no caso, liberdade de conformação ou não? Se a resposta for positiva, simplesmente não há que se discutir se, moralmente, a decisão anterior – agora reforçada pela regra interpretativa – é conveniente. Prima facie, sempre o cidadão deve ter suas garantias preservadas. Para dizer o contrário, o ônus é da parte mais forte, o Estado. Aliás, examinando recentes acontecimentos (vazamentos, etc.), parece mais do que justificado o emendamento que o Congresso deseja fazer.
Frise-se que o STF tem posição no sentido de que a competência dos outros órgãos, diversos da polícia e do Parquet, limita-se a que “promovam, por direito próprio, em suas respectivas áreas de atribuição, atos de investigação destinados a viabilizar a apuração e a colheita de provas concernentes a determinado fato que atinja valores jurídicos postos sob a imediata tutela de referidos organismos públicos” (2ª Turma, HC nº 89.837/DF).
A Constituição estabelece – e o STF robora essa dicção – que os Fiscos não têm competência para investigar crimes não fiscais (ou aduaneiros, para a Receita Federal). A limitação constitucional é reiterada, no âmbito da União, pelo artigo 6º da Lei nº 10.593/2002, que lista de forma taxativa as atribuições dos Auditores-Fiscais e dos Analistas-Tributários, sem nelas incluir a investigação de crimes alheios às relações tributárias ou aduaneiras.
Examinando a emenda à MP, fica difícil espiolhar inconstitucionalidades de uma matéria que apenas explicita e coloca limites à atuação dos auditores fiscais. Ademais, afirmar, em lei, que os indícios de crimes diversos dos referidos no inciso anterior, com os quais o Auditor-Fiscal da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil se depare no exercício de suas funções, não podem ser compartilhados, sem ordem judicial, com órgãos ou autoridades a quem é vedado o acesso direto às informações bancárias e fiscais do sujeito passivo, é apenas colocar o selo de garantia a favor do cidadão, imunizando-o de vazamentos e atividades sem autorização judicial. Reserva de jurisdição não pode ser inconstitucional; não em uma democracia que se respeite enquanto tal, especialmente quando temos que a democracia é por excelência o regime do respeito às regras do jogo (Bobbio).
De novo: dizer que a necessidade de buscar autorização judicial é uma demasia e que isso proporciona(rá) impunidade é apenas um juízo moral ou político sobre a alteração legislativa. Como referi, trata-se de prestigiar o legislador e o estatuto epistemológico da legislação tributária.
O quero dizer com isso é que o processo de interpretação do Direito por vezes apresenta armadilhas. Casos simples são transformados em casos complexos, como, por exemplo, alçar à discussão ao âmbito da Constituição para, em um segundo momento, a partir de uma parametricidade artificial, encontrar o cotejamento.
É como o caso de um cidadão que tem seu sossego e sua privacidade atacadas por um pregador de certa Igreja que acha que Deus é surdo e, em vez de se resolver o problema aplicando uma simples regra constante na Lei Ambiental, ou o artigo do Código de Posturas que limita horário de ruído e altura (limite de decibéis), constrói-se uma “ponderação” de princípios (de um lado, a privacidade, de outro a liberdade religiosa) de forma ficta, com o intuito de alçar à discussão a um status que ela não tem. Aliás, aqui já deixo a vacina contra um eventual uso da ponderação…
Ou seja, uma simples regra ordinária resolve a querela. É o estatuto epistemológico da legislação ordinária assumindo um locus na democracia, reservando o exame da parametricidade constitucional para casos em que, efetivamente, haja uma matéria constitucional.
Como um constitucionalista de estilo tradicional, defensor ferrenho da força normativa da Constituição, como histórico crítico da dogmática – que, de fato, me parece demasiadamente crono e factumfóbica –, sou insuspeito para dizer isso.
É como o sujeito que não consegue assistir a um filme na televisão. Pega as ferramentas, chama técnicos, eletricistas, liga para a operadora de TV a cabo, bate no televisor, processa o canal, chuta o cachorro… quando era só ligar a televisão que estava fora da tomada. Às vezes, as soluções estão bem próximas.
Parece ser o caso em discussão.
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