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DIREITO COMPARADO
Harmonização do Direito Privado Europeu – Parte VII (Lei do Domicílio habitual para definir a lei da sucessão mortis causa)
Carlos E. Elias de Oliveira
07/08/2023
Na coluna anterior, encerramos tratando do Regulamento Europeu das Sucessões. Seguiremos tratando dele e avançando para outros pontos da harmonização no Direito Internacional europeu.
Lei do domicílio habitual como elemento de conexão para a lei sucessória na União Europeia
Outro ponto importante no processo de harmonização do direito na União Europeia é a escolha de elementos de conexão compatíveis com essa finalidade. Elementos de conexão são regras de Direito Internacional Privado para resolver conflitos entre leis de diferentes países. São regras que definem se se aplicará a lei de um país ou a lei de outro.
Os elementos de conexão precisam ser hospitaleiros a situações transnacionais.
É o caso, por exemplo, do estatuto sucessório (ou seja, da definição da lei aplicável a regular a sucessão mortis causa): adotou-se, na União Europeia, como elemento de conexão, a lei de residência habitual do falecido1. Esse elemento de conexão favorece a circulação de riquezas, pois geralmente o centro da vida das pessoas e seu patrimônio costumam estar no seu domicílio2. Além disso, esse elemento de conexão coincide com o foro competente para lidar com a sucessão mortis causa3.
É verdade que a residência habitual como elemento de conexão apresenta alguns pontos negativos.
Um deles é a facilidade na sua alteração: basta o indivíduo mudar-se para outro local com ânimo definitivo. Esse caráter itinerante pode gerar um pouco de insegurança jurídica.
Outro ponto negativo é que, em alguns casos concretos, é difícil determinar qual é a residência habitual. O próprio Regulamento Europeu das Sucessões reconhece esse ponto negativo; tanto que, para alguns casos, a norma comunitária permite que o juiz indique o local com o qual o falecido guardava conexão manifestamente mais estreita à luz do caso concreto4. É o que expõem os Considerandos nº 24 e 255:
(24) Em certos casos, poderá ser complexo determinar a residência habitual do falecido. Poderá ser esse o caso, em particular, quando o falecido, por razões profissionais ou econômicas, tenha ido viver para o estrangeiro a fim de aí trabalhar, por vezes por um longo período, mas tenha mantido uma relação estreita e estável com o seu Estado de origem. Nesse caso, o falecido poderá, em função das circunstâncias, ser considerado como tendo ainda a sua residência habitual no Estado de origem, no qual se situavam o centro de interesses da sua família e a sua vida social. Outros casos complexos poderão igualmente ocorrer quando o falecido tenha vivido de forma alternada em vários Estados ou tenha viajado entre Estados sem se ter instalado de forma permanente em nenhum deles. Caso o falecido fosse um nacional de um desses Estados ou tivesse todos os seus principais bens num desses Estados, a sua nacionalidade ou o local onde se situam esses bens poderia ser um fator especial na apreciação global de todas as circunstâncias factuais.
(25) No que diz respeito a determinação da lei aplicável a
sucessão, a autoridade que trata da sucessão pode, em casos excecionais – quando, por exemplo, o falecido se tenha mudado para o Estado da sua residência habitual muito pouco tempo antes da sua morte e todas as circunstâncias do caso indiquem que tinha uma relação manifestamente mais estreita com outro Estado – chegar à conclusão de que a lei aplicável a
sucessão não deverá ser a do Estado da residência habitual do falecido, mas sim a lei do Estado com o qual o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita. No entanto, a relação manifestamente mais estreita não deverá tornar-se em fator de conexão subsidia’rio caso se revele complexa a determinação da residência habitual do falecido no momento do óbito.
Todavia, esses pontos negativos são robustamente desprezíveis se se levarem em conta as exuberantes vantagens desse elemento de conexão à criação de um espaço internacional hospitaleiro a situações jurídico-transnacionais6.
Além do mais, o próprio Regulamento Europeu fornece algumas ferramentas que aliviam esses pontos negativos.
É o caso, por exemplo, da supracitada autorização para o juiz afastar a lei da residência habitual do falecido em favor da lei do Estado com o qual o falecido guarde manifestamente mais estreita relação (art. 21º, nº 2, do Regulamento UE nº 650/2012). Consideramos que essa hipótese deve ser aplicada com extrema cautela, para não frustrar a legítima expectativa dos sujeitos e para não instigar empreitadas oportunistas de herdeiros que seriam beneficiados com o deslocamento da lex successionis do Estado da residência habitual para o Estado supostamente mais conexo.
Outra ferramenta que alivia os pontos negativos da lex domicilii para o estatuto sucessório é o caso do professio iuris em favor da lei da nacionalidade (art. 22º, nº 1º, do Regulamento UE nº 650/2012). Há quem critique a lex patriae como elemento de conexão por implicar uma discriminação quanto à nacionalidade. Todavia, essa crítica não prospera no presente caso, pois a lex patriae só será aplicada se a parte mesmo a eleger. Nessa situação, a lex patriae não gera discriminação quanto à nacionalidade, mas sim promove a autonomia da vontade e aumenta a previsibilidade jurídica aos sujeitos.
Prosseguiremos na próxima Coluna. Até lá!
1 Art. 21 do Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012).
2 O art. 34 do Regulamento Europeu das Sucessões admite o reenvio entre os Estados membros da União Europeia sem restrição. E acata o reenvio em favor de um Estado não membro que aplicaria a própria lei.
3 Art. 4º do Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012).
4 Art. 21º, nº 2, do Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012):
Artigo 21.º
Regra geral
Salvo disposição em contra’rio do presente regulamento, a lei aplica’vel ao conjunto da sucessão e’ a lei do Estado onde o falecido tinha reside^ncia habitual no momento do o’bito.
- Caso, a ti’tulo excepcional, resulte claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso que, no momento do o’bito, o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplica’vel nos termos do n.º 1, e’ aplica’vel a` sucessão a lei desse outro Estado.
5 Eur-lex, Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho. Data: 4 de julho de 2012-A (Disponível aqui).
6 PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 92, 2016, p. 135.