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Harmonização do Direito Privado Europeu – Parte V (Visão panorâmica)

UNIÃO EUROPEIA

Carlos E. Elias de Oliveira

Carlos E. Elias de Oliveira

14/07/2023

Nas colunas anteriores, buscamos tratar didaticamente do cenário institucional e normativa da União Europeia a fim de preparar o terreno para o foco destas séries de publicações: expor o cenário de harmonização jurídica no âmbito do direito privado europeu.

Voltamo-nos agora para essa meta.

Visão panorâmica da harmonização jurídica na União Europeia no direito privado

A harmonização internacional de direitos não necessariamente depende de uma de integração regional. Esta é apenas um catalisador da harmonização, a exemplo do que se testemunha com a experiência da União Europeia.

No caso da União Europeia, a harmonização jurídica no direito privado é fortemente estimulada pelos seus próprios fundamentos principiológicos, especialmente o da liberdade de circulação de pessoas, de capital e de trabalhadores1 bem como o da busca por criar um espaço de liberdade, segurança e justiça2.

Para viabilizar essa liberdade, é essencial que haja uma harmonização jurídica entre os Estados membros, de modo a garantir previsibilidade e segurança jurídica aos cidadãos e ao mercado. Devem-se reduzir, ao máximo, obstáculos jurídicos que inviabilizem ou dificultem demasiadamente a referida livre circulação.

Não se pretendem, com isso, eliminar as particularidades jurídicas de cada Estado membro. O TFUE é expresso em preconizar o respeito “dos diferentes sistemas e tradições jurídicos dos Estados-Membros” (art. 67º, item 1).

A harmonização jurídica da União Europeia caminha não apenas em aproximar as normas de direito material e processual em direito privado, mas também em uniformizar as regras de direito internacional privado (relativamente aos conflitos potenciais entre os ordenamentos diante de situações privadas transnacionais).

A doutrina costuma reportar-se a esse fenômeno na União Europeia como “europeização do direito internacional privado”3. Na verdade, o fenômeno vai além do direito internacional privado. A europeização é de todo o direito privado. Não se trata apenas de resolver potenciais conflitos entre os ordenamentos diante de situações transnacionais ou de harmonizar situações processuais (competência jurisdicional, cooperação judiciária etc.). Busca-se, também, propiciar aos sujeitos um espaço jurídico que abrange nações com ordenamentos, ao máximo, próximos, para assegurar segurança jurídica nos processos de circulação de pessoas, capital e serviços4.

Alcança os próprios direitos privados domésticos, com aproximação da regulamentação.

No âmbito do direito privado, a harmonização jurídica da União Europeia focou mais o direito contratual do que propriamente os direitos reais5.

Em um primeiro momento, os órgãos legislativos da União Europeia concentraram-se em direito do consumidor para resolver problemas mais pontuais. Houve várias diretivas nesse âmbito, como:

a) Diretiva 85/577, de 20 de dezembro6: protege o consumidor em compras a distância;

b) Diretiva 90/314, de 13 de junho7: trata de viagens combinadas.

A livre circulação de pessoas, de capital e de serviços no âmbito da União Europeia intensificou as relações jurídico-privadas transfronteiriças. Por consequência, aumentou o esforço por alcançar uma maior definição das regras de direito internacional privado e das regras comunitárias para dar segurança jurídica aos sujeitos.

Entre as várias questões jurídicas de direito internacional privado e de direito comunitário, estão as que tocam a harmonização internacional dos direitos reais, a qual esmiuçaremos mais à frente.

A harmonização jurídica na União Europeia tem avançado de modo expressivo, especialmente pela abundância de edição de Regulamentos e Diretivas em diversas matérias de direito privado.

A aproximação dos ordenamentos jurídicos dos Estados membros em matéria de direito privado é essencial para viabilizar a livre circulação de pessoas, de capital e de serviços. Sem previsibilidade e clareza do direito que será aplicado para reger as relações privadas, os sujeitos ficão acuados a praticar atos jurídicos transfonteiriços.

Regulamento Europeu das Sucessões mortis causa

Foi nesse contexto que, por exemplo, a União Europeia editou o Regulamento Europeu das Sucessões: o Regulamento UE nº 650/2012.

A referida norma comunitária buscou dar clareza e previsibilidade jurídicas às sucessões mortis causa transfronteiriça. Sem esse ambiente normativo previsível e seguro, os sujeitos seriam inibidos a exporem-se a relações jurídicas privadas internacionais.

Se o sujeito não tem clareza sobre como será a sucessão mortis causa caso ele tenha bens em outros países ou caso ele se mude do seu país de origem, a tendência é que esse fato seja um entrave à circulação transnacional. É nesse sentido que o Regulamento Europeu das Sucessões nasceu, pois, conforme seu Considerando nº 7:

(7) É conveniente facilitar o bom funcionamento do mercado interno suprimindo os entraves a` livre circulac¸a~o de pessoas que atualmente se defrontam com dificuldades para exercerem os seus direitos no a^mbito de uma sucessa~o com incide^ncia transfronteiric¸a. No espac¸o europeu de justic¸a, os cidada~os devem ter a possibilidade de organizar antecipadamente a sua sucessa~o. E’ necessa’rio garantir eficazmente os direitos dos herdeiros e dos legata’rios, das outras pessoas pro’ximas do falecido, bem como dos credores da sucessa~o. 

Essa preocupação já estava presente desde quando o Regulamento Europeu das Sucessões era apenas um projeto. Em 2009, no Documento de Trabalho dos Serviços da Comissão, foi realçada a elevada importância em haver uma harmonização das regras sucessórias no espaço europeu8. Segundo o referido documento, em 2009, o volume patrimonial envolvido em sucessões mortis causa na União Europeia chegava a 646 bilhões de euros por ano. Estima-se que cerca de 10% desse volume dizem respeito a sucessões transnacionais. Sem uma regra sucessória de harmonização, o volume de bens que poderiam ficar fora do mercado por transtornos jurídicos em matéria sucessória seria expressivo. Os indivíduos seriam desencorajados a realizar relações privadas transnacionais pela insegurança jurídica da partilha de seus bens situados em outros países. Ter regras sucessórias claras e harmonizadas para sucessões transnacionais é um fundamental para alcançar a livre circulação de pessoas, de capital e de serviços.

O Regulamento Europeu das Sucessões centra-se em definir apenas questões transnacionais estritamente de direito sucessório, como a definição de quem são os sucessores e o modo de repartição do acervo hereditário. Foca essas questões sob o aspecto de conciliar os diversos ordenamentos jurídicos da União Europeia. Em suma, ele trata de três questões básicas diante de situações jurídicas transfronteiriças: (1) competência jurisdicional internacional; (2) conflitos de leis no espaço; e (3) forma de reconhecimento e de execução de decisões estrangeiras9.

Na próxima Coluna, prosseguiremos tratando do tema.

Fonte: Migalhas

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NOTAS

1 Reportamo-nos especialmente ao Título II do TFUE, que trata da livre circulação de mercadorias (arts. 28º e 29º) e ao Título IV, que lida com a livre circulação de pessoas, serviços e capitais (arts. 45º a 66º) do TFUE.

2 Remetemo-nos ao Título V do TFUE, que trata do fato de a União Europeia ser um espaço de liberdade, segurança e justiça.

3 Nesse sentido: (1) JAEGER JUNIOR, Augusto. Europeização do Direito Internacional Privado: caráter universal da lei aplicável e outros contrastes com o ordenamento jurídico brasileiro. Curitiba: Juruá, 2012; (2) RIBEIRO, Geraldo Rocha. A Europeização do Direito Internacional Privado e Direito Processual Internacional: algumas notas sobre o problema da interpretação do âmbito objetivo dos regulamentos comunitários. In: Revista Julgar, nº 23, maio/agosto 2014, pp. 265-292 (Disponível aqui).

4 Gustavo Ferraz de Campos Monaco e Rui Manuel Moura Ramos coordenaram uma obra destacando diversos aspectos da unificação europeia do direito internacional privado: “Aspectos da Unificação do direito internacional privado” (MOURA RAMOS, Rui Manuel Gens de; MONACO, Gustavo Ferraz de Campos (Coord.). Aspectos da Unificação europeia do direito internacional privado. São Paulo: Intelecto, 2016).

5 MORENO, Hector Simón. El processo de armonización de los derechos reales em Europa. Valência/Espanha: Editora Tirant, 2013, p. 23.

6 JO nº L 31, número 372, de 31 de dezembro de 1985.

7 JO nº L23, número 158, de 23 de junho de 1990.

8 Eur-lex, Documento De Trabalho Dos Servic¸os da Comissa~o que acompanha a Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo acompete^ncia, a lei aplica’vel, ao reconhecimento e execuc¸a~o das deciso~es e dos actos aute^nticos em mate’ria de sucesso~es e a` criac¸a~o de um certificado sucesso’rio europeu. Data: 14 de outubro de 2009 (Disponível aqui).

9 Essas três questões básicas de direito internacional privado em matéria de sucessão foram disciplinadas em um único regulamento: o Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012). Não se deu o mesmo em matéria obrigacional. O legislador comunitário fragmentou a disciplina em três regulamentos. Um foi para disciplinar forma de reconhecimento e execução de atos estrangeiros: Regulamento UE nº 1.215/2012. Outros dois para disciplinar as questões de competência jurisdicional internacional e de conflitos de lei no espaço em matéria de obrigações contratuais (Regulamento Roma I, ou seja, Regulamento nº 593/2008) e de obrigações extracontratuais (Regulamento Roma II, ou seja, Regulamento UE nº 864/2007).

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