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DIREITO COMPARADO
Harmonização do Direito Privado Europeu – Parte II (Órgãos e normas da União Europeia)
Carlos E. Elias de Oliveira
29/06/2023
Na coluna anterior, expusemos conceitos gerais da União Europeia e de sua estrutura institucional.
Prosseguiremos hoje cuidando dos principais órgãos e das principais fontes normativas do bloco europeu, tudo com olhos em permitir a compreensão da harmonização jurídica do direito privado na Europa.
Principais normas do Direito da União Europeia: regulamentos, diretivas e precedentes do Tribunal de Justiça da União Europeia
O Conselho da União Europeia1 (ou apenas Conselho) é a principal instância decisória. É composto por ministros dos Estados membros, cujos votos possuem pesos diferentes a depender da sua bandeira.
Além de outras competências2, o Conselho exerce o papel de legislador, gerando os atos normativos comunitários.
Em geral, essa competência legislativa é exercida em conjunto com o Parlamento Europeu, mais especificamente quando for aplicável o processo legislativo ordinário.
Quando, porém, se trata de aplicação do processo legislativo especial, o Conselho, sozinho, é quem exerce a função de legislador.
Esclareça-se que o Parlamento Europeu3 exerce um papel de colegislador com o Conselho nos processos legislativos ordinários e um papel meramente consultivo no processo legislativo especial, além de outras atribuições4. Não tem competência para iniciativa legislativa: esta é da Comissão Europeia5. É composto por parlamentares eleitos pelos cidadãos dos Estados membros.
Os principais atos normativos da União Europeia são estes6:
a) Regulamento: é ato legislativo vinculante em todos os Estados membros;
b) Diretivas: é ato legislativo que estabelece um objetivo geral aos Estados membros. Cabe a cada Estado membro editar normas domésticas para cumprir o objetivo das diretivas. No acórdão van Duyn vs. Home Office e no acórdão Ratti, o TJUE admitiu que a diretiva possa ser aplicada diretamente contra o Estado membro a pedido do particular no caso de omissão legislativa doméstica diante de uma diretiva com regras incondicionais e claras7.
As questões de direito privado tratadas na União Europeia costumam ser veiculadas nesses dois atos normativos, além dos atos jurisdicionais do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).
Diretivas da União Europeia
A propósito do efeito vinculante das diretivas, convém deitar holofotes nos dois julgados supracitados.
O primeiro é o caso van Duyn vs. Home Office. Este decorreu de consulta feita ao TJUE (então, Tribunal de Justiça apenas) em 1974 pela Chancery Division da High Court of Justice da Inglaterra para interpretação do direito comunitário. Tratava-se de caso relacionado à livre circulação de trabalhadores. No caso concreto, o Reino Unido recusou a entrada de uma cidadã neerlandesa (a Sra. Ivonne van Duyn) para trabalhar de secretária na Church of Scientology. O motivo da recusa é o fato de o Reino Unido considerar a atividade da referida organização como de perigo social. A diretiva 64/221/CEE, todavia, estabelece que a negativa de ingresso de pessoas com fundamento na ordem ou segurança públicas só pode basear-se em comportamento pessoal do próprio indivíduo. Trata-se de regra destinada a limitar a discricionariedade das autoridades domésticas em matéria de entrada e expulsão de estrangeiros. Nesse caso, como a regra da referida diretiva não demanda nenhum ato posterior dos Estados membros por conta de sua clareza e pela falta de qualquer condicionante, o TJUE reconheceu-lhe efeito direto e vinculante contra o Reino Unido8.
No supracitado caso Ratti, o TJUE assentou que, se o prazo de adaptação da legislação interna a uma diretiva expirar, o Estado membro não pode aplicar suas regras domésticas contrariamente a um particular que tenha cumprido os requisitos da diretiva, mesmo em questões de direito penal. No caso concreto, o cidadão italiano Tullio Ratti havia sido incriminado com base em lei penal italiana que exigia a indicação, na rotulagem dos produtos, da presença de determinadas substâncias (benzeno, tolueno e xileno). Acontece que, à época dos fatos, o referido cidadão havia cumprido as exigências da Diretiva nº 73/173, de 3 de julho de 1973, e da Diretiva nº 77/728, de 7 de novembro de 1977, às quais a legislação italiana não se havia adaptado apesar do transcurso do pertinente prazo. Com base nisso, o TJUE entendeu que nenhum cidadão pode ser punido com base em uma lei penal doméstica que, mesmo após a consumação do pertinente prazo de adaptação, permanece incompatível com diretivas9.
Há outros julgados que reforçam a existência de efeito vinculante a diretivas com regras claras que independem de regulamentação. No acórdão Francovich, por exemplo, o TJUE esclareceu que o fato de os Estados membros terem liberdade para definir o modo como adaptará a legislação interna às diretivas não afasta o direito de os particulares invocarem direitos incondicionados previstos de modo claro na diretiva10.
Na próxima Coluna, seguiremos tratando do tema. Até lá.
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NOTAS
1 Site.
2 O Conselho da União Europeia também coordena as políticas dos Estados membros, elabora política externa e de segurança da União Europeia com base nas orientações do Conselho Europeu, celebra acordos da União Europeia com países terceiros ou organismos internacionais e adota o orçamento da União Europeia em conjunto com o Parlamento Europeu.
3 Site.
4 O Parlamento Europeu também emite pareceres sobre relatórios da Comissão, do Banco Central, além de manifestar-se consultivamente em outras questões e de colaborar com parlamentos nacionais.
5 Para aprofundamento, ver: EUROPARL. O poder legislativo. Disponível aqui.
6 Há, ainda, as Decisões (que só vincula os seus destinatários em específico), as Recomendações (que não vinculam) e os Pareceres (que também não são vinculantes).
7 Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 4 de Dezembro de 1974, Processo nº 41/74: Yvonne van Duyn vs Homme Office. Data: 4 de dezembro de 1974 (Disponível aqui).
8 Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 4 de Dezembro de 1974, Processo nº 41/74: Yvonne van Duyn vs Homme Office. Data: 4 de dezembro de 1974 (Disponível aqui).
9 Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 5 de abril de 1979, Processo nº 148/78: Ministerio Fiscal vs Tullio Ratti. Data: 5 de abril de 1979 (Disponível aqui).
10 Segue este excerto do sumário do acórdão Franovich: “A faculdade de um Estado-membro destinatário de uma directiva escolher entre uma multiplicidade de meios possíveis com vista a atingir o resultado estabelecido pela mesma não exclui a possibilidade de os particulares invocarem perante os órgãos jurisdicionais nacionais os direitos cujo conteúdo pode ser determinado com precisão suficiente apenas com base nas disposições da directiva.” (Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 19 de novembro de 1991: Andrea Francovich, Danila Bonifaci e outros vs República Italiana. Data: 19 de novembro de 1991 (Disponível aqui).