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Direito Multiportas no Brasil – entre a Metáfora Espacial do Dogma e a Realidade Temporal da Vida

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Direito Multiportas no Brasil – entre a Metáfora Espacial do Dogma e a Realidade Temporal da Vida

DIREITO DEMOCRÁTICO

DIREITO MULTIPORTAS

MEDIAÇÃO DE CONFLITOS

Carlos Eduardo de Vasconcelos

Carlos Eduardo de Vasconcelos

08/07/2025

O presente artigo propõe uma reflexão sobre a natureza dual do Direito Democrático, concebendo-o como um campo de tensão entre a pretensão de universalidade, expressa por sua dogmática – organizada na metáfora espacial do ordenamento – e a realidade sócio-cultural concreta da cidadania, situada no tempo e marcada pela temporalidade da vida. Para mediar, em última instância, esse complexo, estão as regras sobre regras da hermenêutica jurídica constitucional. É adotada a distinção entre espaço e tempo como categorias epistemológicas. O texto problematiza o Direito Democrático Multiportas, em busca de equilibrar as normas jurídicas tendencialmente estáveis com as transformações históricas emanadas da prática social. Dentre outros autores brasileiros e estrangeiros, esta análise toma como referência Habermas, Rawls, Dworkin e Radbruch, incluindo algo sobre a teoria das metáforas aplicada ao pensamento jurídico. Cuida-se do Direito, não apenas em sua dimensão formal, mas inserido na realidade do mundo da vida, compondo um Sistema complexo, de múltiplas portas, integrado aos vetores da dogmática e da hermenêutica. Destaca-se, ainda, o conceito de combatividade construtiva para essa advocacia multiportas, na governança construtiva, não violenta, ética, da busca de superação dos padrões autocráticos da violência grupal; com vistas ao sustento e aprimoramento do Direito Democrático. 

Palavras-chave: Direito Multiportas; Dogmática Jurídica; Temporalidade; Mundo da Vida, Hermenêutica; Combatividade Construtiva; Advocacia.

1. Introdução

O Direito Democrático é fruto de uma construção histórica orientada pela necessidade de limitar o poder e organizar a convivência social de modo ético, justo e plural. Sua função essencial consiste em garantir que nenhuma força — seja estatal, oligárquica, estrangeira  ou militar — exerça dominação arbitrária sobre a cidadania. 

Entretanto, para realizar tal missão, o Direito Democrático recorre a uma estrutura metaforicamente dogmática que, por sua natureza, busca afirmar referenciais de estabilidade, coerência e previsibilidade, estruturando o ordenamento jurídico como um espaço normativo organizado. Essa dimensão normativa se expressa por meio daquilo que se denomina metáfora espacial da dogmática: um conjunto de marcos, fronteiras e mapas simbólicos que oferece segurança jurídica e delimita os contornos das relações sociais. 

Contudo, o Direito Democrático não se esgota nessa espacialidade normativa. Ele se realiza, fundamentalmente, na experiência concreta do mundo da vida, entendido aqui não como uma abstração teórica, mas como a própria realidade sócio-cultural da cidadania, situada no tempo e marcada pela temporalidade. 

É nesse horizonte que emerge a tensão constitutiva do Direito Democrático: por um lado, a busca por estabilidade e ordem jurídica, representada pela dogmática; por outro, a necessidade permanente de dialogar com as transformações históricas, culturais e sociais que caracterizam o mundo da vida. Sendo Importante esclarecer, desde logo, que a hermenêutica não se limita a ser uma reprodução passiva das práticas sociais. Ela não opera como reflexo mecânico da vida, nem como licença para a subjetividade desenfreada. Ao contrário, a hermenêutica jurídica é uma prática normativa qualificada, que articula as regras de conduta da dogmática aos princípios éticos e políticos já institucionalizados como ordem democrática. É por efeito dela que o Direito se atualiza, ressignifica e mantém sua integridade frente às demandas do tempo. 

Neste contexto, ganha centralidade uma noção que este trabalho busca destacar: a da combatividade construtiva, na prática de uma comunicação construtiva; não violenta. Trata-se de um modo de atuação que pressupõe a inevitabilidade dos conflitos, inerentes à vida em sociedade. E que lida com as disputas dele decorrentes de maneira ética, dialógica e colaborativa, orientada por habilidades e competências na livre construção de soluções de ganha-ganha. Tais práticas ampliam a nossa inteligência relacional, que se articulada em  estratégias agregadoras. 

Essa combatividade construtiva, quando adequadamente desenvolvida, revela-se como um modo saudável e eficaz de superação dos padrões de violência que historicamente ameaçam a coesão social, a dignidade humana e a própria democracia. Em lugar da lógica adversarial destrutiva, propõe-se uma lógica de enfrentamento ético, com governança capaz de transformar o conflito em oportunidade de construção social e de afirmação da direitos. 

Nesse processo, a advocacia assume um papel civilizatório fundamental. Mais do que uma atividade de defesa técnica de interesses, a advocacia, quando comprometida com os valores democráticos, torna-se agente de pacificação social, articulador de diálogos e protagonista na construção de uma cultura jurídica sensível ao tempo, à vida e às exigências de justiça. Juristas com essa postura negociadora, diplomática, atuando nacional e internacionalmente, praticaram uma advocacia que salvou o mundo de autocracias, em benefício da liberdade e do Direito Democrático. E agora podemos ir além, com a facilitação e o impulsionamento colaborativo da inteligência artificial.

2. A espacialidade dogmática: o Direito como mapa normativo

A dogmática jurídica – expressão metafórica de dogmas religiosos – opera como tentativa de criar um espaço normativo estável, um mapa simbólico que oferece segurança e previsibilidade na organização da vida social. Essa espacialidade dogmática, aplicada no direito, é um artifício que se fez e faz necessário ao processo civilizatório, mas obviamente precário. Seres humanos não são geometria, ferramentas, bússolas ou cálculos matemáticos. Não somos deuses infalíveis. porque nós, humanos, somos mortais e frágeis. A dogmática não nos basta. 

Ocorre que, como observa Habermas (1997), a legitimidade do Direito moderno decorre de um processo racional de construção normativa, que busca fixar parâmetros de validade capazes de transcender as contingências históricas imediatas.

John Rawls (1971), ao elaborar sua teoria da justiça como equidade, também se inscreve nessa lógica, propondo princípios básicos que devem reger qualquer sociedade democrática. Sua construção parte de uma posição hipotética — a “posição original” — a partir da qual indivíduos racionais escolheriam princípios de justiça, estruturando um espaço normativo aplicável a qualquer contexto democrático.

Do ponto de vista hermenêutico, Dworkin (1986) reforça esse caráter espacial da dogmática ao defender que existe uma “resposta correta” para cada caso jurídico. Essa resposta não surge da liberdade do intérprete, mas de uma estrutura normativa pré-existente, que deve ser localizada e aplicada com base nos princípios subjacentes ao ordenamento.

A dogmática, portanto, é expressão da dimensão espacial do Direito: ela organiza, mapeia, delimita e oferece estabilidade. Mas essa estabilidade, embora necessária, não é suficiente para dar conta da complexidade e da dinamicidade da vida social.

3. A temporalidade da vida: a experiência histórica do Direito

Embora a dogmática jurídica, em suas regras de conduta, esteja situada na metáfora espacial, o Direito, como um todo, não pode ser compreendido fora de sua inscrição na temporalidade do mundo da vida. A sociedade, enquanto ente histórico, é atravessada por processos de transformação. É no mundo da vida, entendido como realidade sócio-cultural concreta, situada no tempo do evento e marcada pela temporalidade, que se produzem os confrontos e as práticas que estruturam a cidadania democrática.

Como afirma Radbruch (1946), o Direito não é apenas um sistema de normas, mas um fenômeno cultural, profundamente enraizado na história. As categorias jurídicas, por mais estáveis que sejam na dogmática, estão sempre em diálogo tenso, produtivo e, muitas vezes, crítico com as transformações sociais.

Demandas contemporâneas por reconhecimento de minorias, direitos emergentes, sustentabilidade, práticas restaurativas, inclusão digital, equidade de gênero e diversidade revelam que o Direito dogmático é permanentemente interpelado pela historicidade da vida. Essas demandas tensionam a rigidez dos modelos normativos e exigem facilitações sistêmicas que sejam, ao mesmo tempo, juridicamente consistentes e eticamente responsáveis, mediante necessária governança e compliance.

Importante observar que essas práticas, especialmente aquelas orientadas para um Direito ao consenso, à inteligência relacional e às estratégias agregadoras de gestão de conflitos, não conduzem à simples harmonização passiva dos interesses. Elas operam, de fato, como potência transformadora, capaz de produzir o que aqui se denomina combatividade construtiva: um modo de enfrentamento ético, dialógico e humanizado, que se contrapõe à lógica do agonismo violento e autocrático.

Essa combatividade construtiva constitui-se, portanto, como um modo saudável e eficaz de superação dos padrões de violência que historicamente ameaçam a sociedade, as instituições e a democracia. E, nesse cenário, cabe à advocacia dialogal desempenhar papel civilizatório de extrema relevância. Atuar não apenas como defensora de interesses individuais, mas como articuladora de uma cultura jurídica orientada à pacificação e à dignidade da justiça.

4. Direito Democrático: o campo de tensão entre espaço e tempo

O Direito Democrático se constrói, inevitavelmente, no campo de tensão entre a estabilidade normativa da dogmática e a dinamicidade histórica do mundo da vida. A dogmática oferece os marcos de coerência, previsibilidade e segurança jurídica, indispensáveis à organização da vida social. Contudo, essa espacialidade normativa é permanentemente tensionada e atualizada pela temporalidade do mundo da vida.

Entre esses dois polos não há subordinação, mas uma relação de tensão criativa e produtiva. É nesse espaço de articulação que se insere a hermenêutica jurídica, a qual não opera como simples reflexo das práticas sociais, nem como expressão arbitrária da subjetividade interpretativa. Ao contrário, a hermenêutica é uma prática normativa qualificada, vinculada a princípios estruturantes, cláusulas fundamentais, direitos fundamentais e fundamentos éticos já consolidados no ordenamento democrático.

Habermas (1997) propõe, nesse sentido, uma racionalidade procedimental, na qual a legitimidade normativa depende da participação dos sujeitos no processo de construção e revisão das normas. A interpretação jurídica, portanto, não se dá no vazio, mas dentro de um horizonte ético, discursivo e democrático.

Dworkin (1986) complementa esse entendimento ao afirmar que o intérprete do Direito não é um mero aplicador mecânico das normas, tampouco um agente livre de qualquer restrição. Ele está vinculado a um tecido de princípios que conferem integridade ao Direito, o qual deve ser interpretado à luz dos fundamentos éticos, constitucionais e políticos que estruturam a ordem democrática.

Dessa maneira, o Direito Democrático é desenvolvido precisamente no espaço-tempo de tensão onde a estabilidade normativa se articula com a historicidade realista do mundo da vida, tendo a hermenêutica como instrumento metodológico de mediação da governança responsável, conforme regras sobre regras e princípios fundamentais do Estado de Direito. É nesse horizonte que a noção de combatividade construtiva ganha centralidade, ao oferecer habilidades e competências civilizatórias frente aos padrões de violência e agonismo que sempre ameaçam a cultura jurídica e a política democrática. 

5. Conclusão: O Direito como medida histórica do humano

O percurso desenvolvido neste artigo permite afirmar que o Direito Democrático não é um sistema de verdades fixas, tampouco uma reprodução inerte das práticas sociais. Ele se constitui como um processo histórico situado, permanentemente tensionado pela necessidade de equilibrar os marcos de estabilidade normativa da dogmática com as transformações que emanam do mundo da vida.

A hermenêutica jurídica, longe de ser mera tradução da vida social, revela-se como uma prática normativa estruturada, que articula dogma e ética institucionalizada, possibilitando que o Direito permaneça íntegro, legítimo e responsivo às demandas da história.

Neste contexto, a combatividade construtiva emerge como um paradigma civilizatório, um modo saudável e eficaz de superação dos padrões de violência, de ruptura e de fragmentação, que ameaçam tanto a convivência democrática quanto a própria integridade do Direito. Trata-se de uma combatividade que não se organiza pela lógica da oposição destrutiva, mas pela construção dialógica, cooperativa e humanizada de soluções jurídicas.

A advocacia, assim compreendida, transcende sua função técnica tradicional e se reposiciona como agente central na promoção da paz social, na defesa da democracia e na construção de uma cultura jurídica de cunho dialógico, comprometida com a dignidade humana e a cooperação interinstitucional. Nesse sentido, fortemente apoiamos o movimento, na OAB, por uma Comissão Nacional de Agregação das variadas estratégias de um Direito multiportas. 

O Direito Democrático, por fim, é e deve continuar sendo a medida histórica do humano: um instrumento de mediação ética entre o espaço da norma de conduta estatal e o tempo da vida complexa, instável e intersubjetiva, referente a uma cidadania crescentemente participativa e exigente. Com o apoio da hermenêutica Constitucional, institucionalizada. Nas autocracias tudo é mais simples. Basta a dogmática dos que dominam e se locupletam.

Referências

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra: Almedina, 1946.
MORRA, G.; ROSSI, A.; BAZZANELLA, C. Metáforas e Direito: Perspectivas Teóricas. Roma: Aracne Editrice, 2010.
LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metáforas da Vida Quotidiana. Campinas: Mercado de Letras, 2002.

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