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Direito Civil Soviético – Parte I

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Direito Civil Soviético – Parte II

Carlos E. Elias de Oliveira

Carlos E. Elias de Oliveira

20/09/2024

Damos prosseguimento ao que expusemos na coluna passada sobre o Direito civil soviético.

O desenvolvimento científico do direito na Rússia foi historicamente refratário1, comparativamente com a Inglaterra e a França. Só na segunda metade do século XIX é que surge uma literatura jurídica russa. A primeira universidade russa – a de Moscou – só nasceu em 1755. A universidade de Petesburgo é de 1802. A criação de tribunais profissionais, separados de funções administrativas, só ganhou corpo com a reforma judiciária de 1864: Até então, imperava uma promiscuidade entre polícia, justiça e administração.

A unidade do povo russo não repousa no direito. Historicamente, os juristas russos não buscavam os fundamentos do direito, ao contrário do que se dava nos demais países europeus. Atuavam como mero servidores operacionais do Estado ou do czar, formalizando juridicamente a vontade arbitrária do autocrata, tudo dentro da máximo romana do princeps legibus solutus est2 (Tierney, 1963, pp. 378-4003). O direito privado russo era essencialmente urbano, voltada aos comerciantes e à burguesia. Os camponeses seguiam os costumes. Para eles existe, por exemplo, apenas (David, 2014, p. 1874):

…uma propriedade familiar (dvor) ou comunal (mir), com exclusão da propriedade individual que está norteada por critérios de equidade, tal como a administra o tribunal do volost’, composto por juízes eleitos, que não são juristas; o tribunal volost’ depende do Ministério do Interior, e não do Ministério da Justiça.

No campo do Direito Civil, a tônica dos sistemas jurídicos socialistas não é a proteção da propriedade individual, e sim da propriedade coletiva. Perde sentido a própria divisão entre direito público e direito privado (a summa divisio das famílias romano-germânicas, originada do direito romano). São clássicas estas palavras de Lênin em uma carta a Kourski5: “No que se refere à economia, deixou de existir direito privado, tudo se tornou direito público” (David, 2014, p. 3306).

Os juristas soviéticos reportavam-se a elas frequentemente. Essa fórmula leninista precisa ser interpretada adequadamente. Ela refere-se primordialmente ao âmbito econômico. E também externa a visão soviética de que o direito não é uma decorrência de soluções de justiça ou de moral, e sim um instrumento de imposição forçada da vontade estatal. O direito é uma ferramenta da política; direito é política. É nesse sentido que se deve interpretar a frase de Lênin. Não se deve, portanto, extrair dela a ideia de que, do ponto de vista científico, o direito público teria absorvido o direito privado (René David, 2014, p. 3307).

Daí decorrem algumas consequências, ligadas a um caráter imperativo do direito civil. Reprimem-se severamente ilícitos de natureza civil. Um exemplo é a imposição de sanções penais por descumprimento de contratos nos setores coletivizados da economia soviética, por trabalho inferior ao mínimo exigido para o camponês integrante do kolkhoz8, por simulação na criação de empresa privada disfarçada de cooperativa ou por compras de bens para revenda.9

Apesar do modelo socialista, a União Soviética não rejeitou as ferramentas jurídicas desenvolvidas pelos países progressistas ocidentais, conforme alerta V. M. Thckhikvadzé (1968, pp. 20-2110). Lênin estimava importante valer-se dessas ferramentas na construção do sistema jurídico soviético. Rejeitava, apenas, uma imitação servil do direito burguês. Em carta a Kourski sobre a ideia de elaboração de um Código Civil, Lênin aconselha: “Utilize tudo o que existe na literatura e na experiência dos países da Europa Ocidental para a proteção dos trabalhadores” (Thckhikvadzé, p. 21).11

O conceito civil de propriedade das famílias de direitos socialistas distancia-se do construído nas famílias romano-germânica.

Distinção entre bens móveis e imóveis é de pouca relevância, por exemplo. Importa mais distinguir os bens entre os de produção e os de consumo.12

No lugar de uma visão aparentemente unitária de propriedade – própria da família romano-germânica -, o regime soviético contemplava três regimes de propriedades: O da propriedade pessoal, o da propriedade cooperativa e o da propriedade estatal.

A propriedade pessoal é a utilizada para a satisfação pessoais do titular, e não para a obtenção de rendas ou de lucros com especulação. Substitui o conceito de propriedade privada, vigente nas famílias romano-germânica e do comoon law. Veda-se o emprego da propriedade para fins lucrativos. Por essa razão, os objetos sucetíveis de propriedade pessoal são aqueles necessários ao uso para fins pessoais do seu titular.13

A propriedade cooperativa e a propriedade estatal eram expressões da propriedade socialista na União Soviética, fruto de uma nacionalização dos bens.

A propriedade cooperativa era chamada também de colcoz (kolkhoz). Os camponeses (colcozes ou kolkozes) não são proprietários, mas meros usufrutuários perpétuos. O usufruto aí não coincide com os dos países das família romano-germânicas. Não pode ser compreendido como um desmembramento da propriedade nem como um direito real. Tampouco pode ser comparado com a noção de propriedade das famílias romano-germânicas nem com a ideia de estate da família do comoon law. O usufruto soviético dos colcozes atraía deveres a estes e era perpétuo. Eles eram obrigados a explorar o solo nos moldes impostos pelo Estado, à luz das regras do direito kolkoziano.14

A propriedade estatal, por fim, pode recair sobre capital fixo (solo, edifícios, instalações e máquinas) ou sobre capital circulante (matérias-primas e produtos). Reporta-se a bens no domínio da agricultura (como as fazendas do Estado, chamadas de sovkozes) e no domínio da indústria (como os trusts, empresas do Estado incumbidas da produção industrial). A titularidade aí é do povo, do qual o Estado é um representante provisório. O conceito de titularidade não deve ser pensado sob a ótica das famílias romano-germânica. Na família socialista, a noção de propriedade é diferente. O mais importante no conceito de titularidade soviética não é saber quem é dono, e sim quem e como são explorados os bens.15

Outra marca do Direito Civil soviético é a rejeição da noção de direito real por ser inconcebível vincular uma pessoa a uma coisa. “Nada mais capitalista há do que essa ideia”, diriam os juristas soviéticos. O direito endereça-se a regular relações jurídicas entre os indivíduos, e não entre a pessoa e a coisa.

Em matéria de contratos, a diferença da família de direitos socialistas em relação ao da família romano-germânica está mais na sua destinação do que na conceituação. Em princípio, o conceito de contratos é igual. A distinção é que, no regime socialista, o contrato é empregado sem o apelo burguês de enriquecimento individual. Essa particularidade não está evidenciada nos contratos corriqueiros do quotidiano dos indivíduos, os quais não oferecem grandes questionamentos. Está, sim, descortinada nos contratos relativos ao setor planificado da economia. Alguns juristas chegam a tentar enquadrar esses contratos como administrativos, e não como contratos civis, o que não é tecnicamente suficiente. Os contratos empregados no setor planificado da economia assumem um perfil próprio, indicativo da originalidade do direito soviético.16

Fonte: Migalhas

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NOTAS

1 A tradição jurídica de outros países que foram envolvidos pelo socialismo antes da queda do Muro de Berlim é diferente. René David (2014, pp. 188-190) destaca os países europeus incorporados ao socialismo nessa época. Lembra que, ao contrário da Rússia, a tradição jurídica era diferente nesses países. De um lado, há os países socialistas de tradição ocidental: Hungria, Polônia, Tchecoslováquia, Croácia e Eslovênia. O desenvolvimento do direito neles seguiu as pegadas do direito na Alemanha, na Áustria e na França. A tradição jurídica era forte, o direito era uma das bases da sociedade e o corpo de juristas era numeroso e respeitado. De outro lado, há os países socialistas dos Bálcãs: Albânia, Bulgária, Romênia e Sérvia. Neles havia certa semelhança com a história jurídica russa por conta da influência do direito bizantino e da estagnação jurídica ocorrida nas épocas de expansionismo mongol e turco-otomano. A diferença, porém, é que esses países europeus balcânicos só se libertaram da dominação com a ajuda externa, o que os conduziu a submeter-se à influência cultural das nações da Europa Ocidental e da Europa Central. A Rússia, a seu turno, livrou-se do domínio sem ajuda externa, fato que colaborou para a manutenção de sua autonomia jurídico-identitária. Nesse contexto, com a superveniência do domínio soviético nos países europeus de tradição ocidental e nos países balcânicos, houve certa resistência a abandonar a tradição jurídica romano-germânica e a incorporar instituições jurídicas que faziam mais sentido na Rússia (país de fraca tradição jurídica e de falta de um corpo de juristas).  

2 “O princípio está livro da lei” (tradução livre).

3 TIERNEY, Brian. “The Prince is Not Bound by the Laws”. Accursius and the Origins of the Modern State. In: Comparative Studies in Society and History, Cambridge University Press, vol. 5, nº 4, jul., 1963.

4 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

5 Dimitri Ivanovitch Kourski era o comissário de justiça (Douroux, 2017).

6 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

7 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

8 O colcoz (?????? ou kolkhoz) (plural: colcozes, kolkhozy) era a unidade de produção coletiva soviética. Era uma espécie de propriedade rural coletiva, que era explorada em forma de cooperativa de produção agrícola. O Estado fornecia os meios de produção (Vucinich, 1949).

9 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 331.

10 THCKHIKVADZÉ, V.M. L’évolution de la science juridique soviétique. IN; Revue Internationale de droit compare. Anné 1968, pp. 19-34 (Disponível aqui).

11 Tradução livre deste excerto: “Prendre absolument tout ce qui existe dans la littérature et l’expérience des pays d’Europe occidentale pour la protection des travailleurs” THCKHIKVADZÉ, V.M. L’évolution de la science juridique soviétique. IN; Revue Internationale de droit compare. Anné 1968, pp. 19-34 (Disponível aqui).

12 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 337-341.

13 René David destaca (DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 338):

…. O art. 13 da Constituição soviética de 1977 estabelece que: “Podem ser de propriedade pessoal os objetos de uso e de comodidade pessoais, os bens da economia doméstica auxiliar, uma residência e as economias provenientes do trabalho …”. Em alguns países socialistas, como a Iugoslávia, as pequenas empresas artesanais (com até cinco empregados), que fazem parte da “pequena economia”, podem ser objeto da propriedade pessoal.

14 René David realça que “um novo estatuto dos kolkozes foi adotado em 1969 pelo Congresso Nacional Kolkoziano e aprovado pelo Comitê Central do Partido Comunista e pelo Conselho dos Ministros da União Soviética” (DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 339).

15 Ut DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 339, pp. 339-341.

16 Ut DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 341-349.

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