32
Ínicio
>
Artigos
>
Eleitoral
ARTIGOS
ELEITORAL
É crime!
Luiz Carlos dos Santos Gonçalves
03/11/2022
Cérbero, a despeito de suas três cabeças, não foi páreo para a campanha eleitoral brasileira. Ela logrou abrir as portas do inferno, expondo à nossa atônita sociedade civil um universo sórdido, de imundícies, mentiras, torpezas e vilanias.
Numa comparação que talvez seja mais próxima a nós, brasileiros e brasileiras, a campanha eleitoral se tornou uma espécie de campeonato de “vale tudo”, a antiga modalidade de luta livre na qual tudo se permitia, inclusive dedo no olho e chute no saco.
Peço respeitosas desculpas pelo uso deste termo chulo, “saco”, mas é que: i) não teria o mesmo alcance falar em “pontapé na bolsa escrotal” e, ii) o meu está mesmo cheio.
Diretamente do inferno saíram, então, algumas condutas que parecem estar sendo “normalizadas”, como se não fossem graves, proibidas e inaceitáveis nas eleições de uma democracia. Acrescento um aspecto técnico nesse desabafo: estes comportamentos são crimes.
Fatos típicos, ilícitos, culpáveis, puníveis: crimes. Estão previstos nas leis vigentes em nosso país e são constitucionalmente válidos, destinados a colaborar para que as eleições sejam uma disputa franca, aberta, programática e intensa, mas não um valhacouto de abusos, sem moral, pudor, juízo ou compaixão pela cidadania.
Algumas das piores situações são as seguintes.
1. É crime constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a votar ou não votar em alguém.
É o que, segundo a imprensa, tem feito dirigentes e donos de empresas, que chamam seus funcionários e “alertam” para as consequências desta ou daquela escolha política, avisando que em caso de derrota do candidato que apoiam, serão feitas demissões.
Diz o Código Eleitoral:
Art. 301. Usar de violência ou grave ameaça para coagir alguém a votar, ou não votar, em determinado candidato ou partido, ainda que os fins visados não sejam conseguidos: Pena – reclusão até quatro anos e pagamento de cinco a quinze dias-multa.
Trata-se de crime doloso, formal, que dispensa a efetiva escolha do eleitor no dia do pleito, perfazendo-se com o emprego da violência ou da grave ameaça – categoria à qual “perda do emprego” facilmente se insere – com o fim específico de viciar a vontade do eleitor no sentido de que certo candidato seja, ou não seja, sufragado.
“Mas e se for uma mera conversa, um esclarecimento ou conselho sobre as consequências econômicas da escolha eleitoral?”
Continua crime.
Primeiramente porque parece que, nesses casos, se tratou de algo similar à famosa conversa entre o leão e sua presa, no qual o primeiro procura justificar, ainda que com palavras amáveis e esclarecedoras, a próxima deglutição de sua vítima. A lei chama isso de coação.
Em segundo lugar, porque empresa não é partido político e a relação contratual que se estabelece entre empregador e empregado não inclui proselitismo eleitoral de nenhuma natureza, nem mesmo de forma amável e esclarecedora.
Não se pretende restringir o debate livre de ideias e informações, muito menos quando o tema é de enorme interesse para a comunidade. Mas a coação não é ingrediente de uma conversa entre iguais e, se ela se apresenta, o debate deixa de ser livre!
É pelo constrangimento à liberdade de voto que se revela o dolo específico imprescindível para a caracterização do crime.
A propósito, esta conduta é também civilmente proibida: captação ilícita de sufrágio. Veja-se a Lei 9.504/97:
Art. 41-A. Ressalvado o disposto no art. 26 e seus incisos, constitui captação de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de mil a cinqüenta mil Ufir, e cassação do registro ou do diploma, observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar n. 64, de 18 de maio de 1990.
§ 1º. Para a caracterização da conduta ilícita, é desnecessário o pedido explícito de votos, bastando a evidência do dolo, consistente no especial fim de agir;
§ 2º. As sanções previstas no caput aplicam-se contra quem praticar atos de violência ou grave ameaça a pessoa, com o fim de obter-lhe o voto […]”
Sem falar que é abuso do poder econômico, sujeitando o infrator à inelegibilidade e o candidato beneficiado à cassação do seu registro ou diploma:
Lei Complementar 64/90
Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:
[…]XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar;
A própria Constituição Federal, no art. 14, previu uma ação em face deste tipo de conduta:
§ 10 – O mandato eletivo poderá ser impugnado ante a Justiça Eleitoral no prazo de quinze dias contados da diplomação, instruída a ação com provas de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude.
Sobre este assunto, o Ministério Público do Trabalho parece estar atuando na vanguarda, subsumindo tais condutas a ilícitos trabalhistas.
Excelente! Parabéns aos Procuradores e Procuradoras do Trabalho!
Mas se trata também de abuso de poder econômico e crime. O abuso do poder econômico e a captação ilícita de sufrágio devem ser levados ao juízo eleitoral da circunscrição (Tribunal Superior Eleitoral, no caso das eleições nacionais e Tribunais Regionais Eleitorais, no caso das eleições estaduais).
Quanto ao crime, a atribuição para agir é dada às Promotoras e aos Promotores de Justiça Eleitorais, perante o juízo eleitoral do local onde os fatos ocorreram. A ação penal é pública incondicionada. A pena, de um a quatro anos, admite Acordo de Não-Persecução Penal. Para começo de conversa, cairia bem uma multa polpuda.
2. É crime usar a máquina administrativa em prol de partidos e candidatos
É o que dizem, conjugados, os artigos 377 e 346 do Código Eleitoral:
“Art. 377. O serviço de qualquer repartição, federal, estadual, municipal, autarquia, fundação do Estado, sociedade de economia mista, entidade mantida ou subvencionada pelo poder público, ou que realiza contrato com este, inclusive o respectivo prédio e suas dependências não poderá ser utilizado para beneficiar partido ou organização de caráter político.
Parágrafo único. O disposto neste artigo será tornado efetivo, a qualquer tempo, pelo órgão competente da Justiça Eleitoral, conforme o âmbito nacional, regional ou municipal do órgão infrator mediante representação fundamentada partidário, ou de qualquer eleitor.
Art. 346. Violar o disposto no Art. 377:
Pena – detenção até seis meses e pagamento de 30 a 60 dias-multa.
Parágrafo único. Incorrerão na pena, além da autoridade responsável, os servidores que prestarem serviços e os candidatos, membros ou diretores de partido que derem causa à infração”.
A pena é ínfima e, a nosso ver, desproporcional por proteção insuficiente do bem jurídico. Mas é crime. De pequeno potencial ofensivo, vá lá, mas continua crime.
Além disso é abuso de poder político, conforme o art. 22 da Lei Complementar 64/90 e conduta vedada aos agentes públicos nas campanhas eleitorais:
Lei 9.504/97
“Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:
I – ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, ressalvada a realização de convenção partidária;
II – usar materiais ou serviços, custeados pelos Governos ou Casas Legislativas, que excedam as prerrogativas consignadas nos regimentos e normas dos órgãos que integram;
III – ceder servidor público ou empregado da administração direta ou indireta federal, estadual ou municipal do Poder Executivo, ou usar de seus serviços, para comitês de campanha eleitoral de candidato, partido político ou coligação, durante o horário de expediente normal, salvo se o servidor ou empregado estiver licenciado;[…]”
O que dizer?
Tem gente que parece estar usando a máquina pública em prol de candidaturas e não se vexa, inclusive, em anunciá-lo aos quatro ventos!
As consequências da responsabilização por condutas vedadas estão listadas no art. 73 da Lei das Eleições:
“§ 4º O descumprimento do disposto neste artigo acarretará a suspensão imediata da conduta vedada, quando for o caso, e sujeitará os responsáveis a multa no valor de cinco a cem mil UFIR.
[…]
§ 5º Nos casos de descumprimento do disposto nos incisos do caput e no § 10, sem prejuízo do disposto no
§ 4º, o candidato beneficiado, agente público ou não, ficará sujeito à cassação do registro ou do diploma.
[…]
§ 8º Aplicam-se as sanções do § 4º aos agentes públicos responsáveis pelas condutas vedadas e aos partidos, coligações e candidatos que delas se beneficiarem”
E se for caracterizado o abuso do poder político, a sanção é inelegibilidade e perda do registro ou do diploma. Quanto ao crime, admite-se transação penal. Que tal outra multa polpuda? A atuação no caso é das Promotoras Eleitorais e dos Promotores Eleitorais do local dos fatos, perante o juízo eleitoral da respectiva zona.
3. Fake News é crime.
Código Eleitoral
“Art. 323. Divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado: Pena – detenção de dois meses a um ano, ou pagamento de 120 a 150 dias-multa.Parágrafo único. Revogado
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem produz, oferece ou vende vídeo com conteúdo inverídico acerca de partidos ou candidatos
§ 2º Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) até metade se o crime:
I – é cometido por meio da imprensa, rádio ou televisão, ou por meio da internet ou de rede social, ou é transmitido em tempo real;
II – envolve menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia”.
Não se tolhe o direito de crítica, ainda que contundente; não se perde o direito de avaliar – mesmo que com severidade, parcialidade ou injustiça – a conduta de alguém. O tipo não envolve juízos valorativos, mas factuais.
Inexistiu um maremoto na cidade de São Paulo no ano passado, isto é falso. Não se trata de interpretação, opinião sincera ou engano. Não há mares, atualmente, banhando a cidade de São Paulo.
A Rainha Elizabeth não faleceu ao pular de bungee jump numa Ilha do Caribe.
Napoleão Bonaparte não estava a bordo da Caravela de Pedro Alves Cabral. Ele não gostava de sair da Dinamarca, onde residia.
Quando este tipo de mentira é capaz de exercer influência perante o eleitorado e seu divulgador sabe que se trata de mentira, não é liberdade de opinião: é crime.
A ação penal é pública incondicionada, ou seja, dada exclusivamente ao Ministério Público Eleitoral do local dos fatos, exceto se o mentiroso tiver foro por prerrogativa de função.
A divulgação na internet é sempre desafiadora, no sentido de saber onde se deu a publicação. Todavia, desafiador não é impossível e o Código de Processo Penal traz instrumentos para fixação da competência jurisdicional mesmo em situações difíceis.
Conclusão e esperança
Aguarda esta Cachaça Eleitoral que: i) o debate eleitoral, sempre necessário, não perca seu lugar para a indiscriminada divulgação de mentiras; ii) que a máquina pública, sustentada com os tributos de todos e todas, não se convole em comitê partidário e que, iii) maus empresários parem de constranger eleitoralmente seus funcionários e se dediquem, como o fazem os melhores, a criar empregos e contribuir para a riqueza nacional; iv) que as boas práticas do Ministério Público do Trabalho a este respeito se disseminem!
É demais?
Veja aqui os livros do autor!
LEIA TAMBÉM