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Combate ao tráfico ilegal de bens culturais exige cooperação internacional

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TRÁFICO ILEGAL

Marcílio Toscano Franca Filho

Marcílio Toscano Franca Filho

22/02/2018

Por Marcílio Franca e Inês Virgínia Soares*

Às vésperas de mais uma edição do Oscar, repete-se a pergunta: a vida imita a arte? Ou seria o contrário? Bem, em 2003, o filme Um Golpe à Italiana, realizado em 1969 por Peter Collinson ganhou um remake, dirigido desta vez por F. Gary Gray (a nova versão chamou-se Uma Saída de Mestre no Brasil). No filme, ladrões roubavam milhões de dólares em barras de ouro em Veneza (na primeira versão era Torino), num plano espetacular que envolvia lanchas velozes, mergulhadores audazes e os enfurecidos Mini Coopers que já haviam garantido o sucesso da versão original.

O ano de 2018 estreou imitando a arte: passava um pouco das dez da manhã do dia 03 de janeiro, quando, no Palazzo Ducale, no coração de Veneza, houve um furto no último dia da exposição “Tesouros do Império Mogol e dos Marajás”, que exibia uma extravagante coleção de 270 joias indianas de até 400 anos, todas em ouro e platina, incrustadas com diamantes, rubis, jades, pérolas e esmeraldas, de propriedade do hipermilionário xeque Hamad bin Abdullah Al-Thani, mandachuva da Qatar Investment & Projects Development Holding Company.

Numa ação que durou menos de 20 segundos, dois ladrões abriram uma das vitrines da Sala dello Scrutinio e levaram um broche e um par de brincos avaliados em três milhões de euros. A dupla escapou habilmente pelas galerias do museu lotado, misturando-se entre os visitantes, num truque parecido com o utilizado por Pierce Brosnan em Thomas Crown – A Arte do Crime (filme de John McTiernan, de 1999), uma referência elegante a Le Fils de l’Homme, o famoso quadro de René Magritte.

O furto deve ter sido uma ação encomendada, pois, nos últimos anos, vender diamantes no mercado negro tem dificuldades adicionais, graças ao chamado “Sistema de Certificação do Processo de Kimberley” (SCPK), um mecanismo internacional de rastreamento da origem das gemas que visa evitar a comercialização de “diamantes de sangue”, isto é, pedras oriundas de zonas de conflito e que possam financiar guerras civis e o tráfico de armas, como bem mostrado em Blood Diamond, dirigido por Edward Zwick em 2006, estrelado por Leonardo DiCaprio. No Brasil, o SCPK foi instituído pela Lei 10.743/2003.

Mas as peças furtadas em Veneza não eram apenas diamantes incrustados em ouro e platina: são bens culturais de rara beleza, que contam histórias de povos e fazeres e que devem ser conhecidos e apreciados por todos, em exposições mundo afora. Essa visão do patrimônio cultural como patrimônio comum da humanidade tem realçado a necessidade de impedir a sua destruição ou o desaparecimento e justificado o empenho de Estados para o enfrentamento ao seu tráfico ilícito.

A atenção ao tema não é de agora: tem seu marco na Convenção Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais (Unesco, 1970). Mas foi com a Convenção UNIDROIT sobre Bens Culturais Furtados ou Ilicitamente Exportados, de 1995, que as medidas mais práticas surgiram. Para além da UNESCO e do UNIDROIT, a Organização Mundial de Aduanas (OMA), o Conselho Internacional de Museus (ICOM), a INTERPOL, a ONU e a União Europeia, que declarou 2018 como o “Ano Europeu do Patrimônio Cultural”, tem dedicado recursos humanos e financeiros à prevenção da pilhagem e do tráfico de bens culturais.

No Brasil, há um conjunto legislativo que veda a saída definitiva do país de bens tombados, de objetos de interesse arqueológico, pré-histórico, histórico, numismático e artístico, de obras de arte e ofícios produzidos no Brasil até o fim do Período Monárquico e de livros antigos e acervos documentais. Além dessas normas, há o Banco de Dados do IPHAN, que implementa a Convenção da Unesco de 1970 e a Convenção UNIDROIT, de 1995, das quais o Brasil é signatário. Esse Banco de dados é mantido pelo IPHAN, conta com a colaboração da Receita Federal e tem na Polícia Federal um braço ativo de investigação e repressão, por meio da Divisão de Repressão a Crimes Contra o Meio Ambiente e Patrimônio Histórico da Polícia Federal.

A alimentação do Banco de Dados é de responsabilidade não apenas dos órgãos públicos, mas também dos proprietários dos bens culturais. Os colecionadores logicamente não devem adquirir peças sem garantia de procedência lícita (sob pena de praticarem crime de receptação) e têm também obrigação de preservar essas peças, para não incorrer no crime tipificado no artigo 62, da Lei 9. 605/98.

No mais, os negociantes de obras de arte e os agentes de leilão devem ser inscritos no Cadastro Nacional de Negociantes de Antiguidades e Obras de Arte (Cnart). Essa inscrição deve estar sempre atualizada, com manutenção do histórico registro das transações por cinco anos, para cumprimento da Lei 9.613/98 (que dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores e que foi atualizada pela Lei 12.683/12) e na Portaria IPHAN 396/2016. O artigo 13 da Portaria IPHAN 396/2016, acompanhando uma preocupação mundial, menciona a vinculação do tráfico ilícito de bens culturais não somente à lavagem de dinheiro, mas também ao terrorismo.

Mas esse aparato normativo e administrativo não tem impedido os furtos e o sumiço das obras de arte no Brasil. E os casos reais fornecem bons enredos para filmes e livros.

Por aqui, a história do ladrão de livros raros não precisou lançar mão da ficção. O documentário Cartas para um ladrão de livros, 2017, dirigido por Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros, retrata a vida de Laéssio Rodrigues de Oliveira, criminoso conhecido das bibliotecas públicas brasileiras por furtar livros e outros papéis de grande valor, aproveitando-se das fragilidades de segurança nas bibliotecas. Seu furto de maior impacto foi os originais de desenhos feitos por Debret e Rugendas, do século XIX, quando viajavam pelo país e retratavam pessoas e paisagens. Mas o ladrão também surrupiou, dentre tantas raridades, as fotografias do funeral de Dom Pedro II e um dos atlas do Brasil, feito no século XVII, por um artista holandês. Desde 2004, o criminoso tem ingressado no sistema prisional para cumprir penas por esses furtos. Ao sair, comete novos delitos. Atualmente está preso. A maioria das obras furtadas por Laéssio não foram recuperadas. Devem estar em mãos de colecionadores mundo afora. E fica a sensação de que crime compensou; ou de que o Estado ganhou (pois prendeu o bandido), mas a comunidade não levou (pois não teve de volta as obras raras furtadas).

Entre o escurinho do cinema e o brilho dos diamantes, há a atenção da comunidade, dos órgãos e dos Estados para a recuperação das obras de arte traficadas. A prevenção e repressão internacional ao tráfico ilícito de bens culturais só faz sentido e só tem eficiência por meio de cooperação internacional, conectividade e compartilhamento de informações. Nossos vivas ao Ano Europeu do Patrimônio Cultural!


* Inês Virgínia Prado Soares é Procuradora Regional da República em São Paulo, Doutora em Direito pela PUC-SP, com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e autora do livro “Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro” (Ed. Forum). Marcílio Franca é membro do Conselho Executivo da International Law Association (ILA) e árbitro suplente do Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL.. É Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra, fez pós-doutorado no Instituto Universitário Europeu de Florença (Itália) e é coautor do livro “Direito da Arte” (Ed. Atlas). É membro do Ministério Público de Contas da Paraíba e professor da UFPB.

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