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FINANCEIRO E ECONÔMICO
Centenário de Rui Barbosa e suas lições sobre orçamento público e tributação
Marcus Abraham
16/03/2023
Rui Barbosa de Oliveira nasceu no dia 5 de novembro de 1849, em Salvador (BA), e morreu no dia 1º de março de 1923, na cidade de Petrópolis (RJ). Ao longo de seus 73 anos de vida, inscreveu seu nome no rol dos intelectuais e juristas mais importantes da história do Brasil. Como se isso não bastasse, foi jornalista, diplomata, advogado e fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL). Como político, passou 32 anos no Senado Federal, sempre representando o seu estado da Bahia. Antes, no Império, havia sido deputado provincial e deputado geral. Seus discursos, sempre substanciosos e eloquentes, costumavam demorar até quatro horas.[1]
Rui Barbosa e lições sobre finanças e orçamento
No centenário de sua morte, recém-lembrado, além do seu exemplo de cidadania e todas as suas lições sobre democracia e justiça, neste espaço destacamos suas lições sobre finanças públicas, federalismo fiscal, tributação e orçamento público, sobretudo por sua atuação e experiência como ministro da Fazenda no último decênio do século 19.
Em sua homenagem, destaco trechos de memorável discurso de Rui Barbosa proferido na Assembleia Constituinte perante o Congresso em 1890[2], na época como ministro da Fazenda do primeiro governo republicano, em que – visionariamente – já apontava para desafios financeiros e orçamentários que hoje, mais de 130 anos depois, ainda vivemos e nos afligem.
“É, senhores, sobretudo à luz dos interesses financeiros da nação que eu, desde o começo, encarei a conveniência da reunião desta assembleia. Foi esta a preocupação que me levou, um dia, a reclamar dos meus companheiros de governo a convocação do Congresso Constituinte como a mais urgente de todas as medidas financeiras”.
Mais adiante, proclamou fortes e assertivas palavras sobre o equilíbrio e a sustentabilidade fiscal:
“Do plano que adotardes sobre a discriminação da renda para o orçamento geral e para os dos estados, depende, senhores, a durabilidade ou a ruína da União, a constituição do país, ou a proclamação da anarquia, a honra nacional, ou a bancarrota inevitável”.
De outro giro, Rui já destacava a importância da solidariedade e da cooperação entre os entes federativos na seara fiscal, enfatizando a nossa formação como federação:
“Senhores, não somos uma federação de povos até ontem separados, e reunidos de ontem para hoje. Pelo contrário, é da união que partimos. Na união nascemos. Na união se geraram e fecharam os olhos nossos pais. (…) se há no Brasil estados mais fortes e menos fortes, mais fracos e menos fracos, a condição necessária da existência de todos, fracos ou fortes, grandes ou pequenos, pobres ou ricos, é a sua coesão, a solidariedade da sua vida integral no seio da federação…”
Interessante narrativa neste discurso refere-se ao desenho tributário que pretendia estabelecer, em crítica ao modelo então posto, o qual gerava um desequilíbrio entre a União e Estados, fortalecendo estes e enfraquecendo aquela (a propósito, situação inversa a que temos hoje).
“Aqui, porém, só se reserva ao orçamento nacional o imposto de importação. Aos estados, como domínio exclusivo seu, deixamos o imposto de exportação, e, além desse, o imposto sobre a transmissão da propriedade e o imposto territorial. Quanto aos demais, fica aos estados o direito de taxarem livremente as fontes de renda, e a federação taxar. É mais, incomparavelmente mais do que o que os estados da União americana desfrutam sob a sua carta generosamente federativa. E não basta! E fere-se a mais renhida batalha, para favorecer ainda os estados, e empobrecer ainda a União! Prolonga-se indefinidamente o prazo de existência ao imposto de exportação, cujos termos nós limitáramos ao ano de 1898, e pretende-se associar os estados ao governo federal na faculdade de tributar os impostos de importação, ou reduzir a União unicamente ao produto destes. (…)”
Após, Rui Barbosa apresenta números concretos para demonstrar a sua tese:
“Volto, pois, à minha tese: fora da União não há conservação para os estados: quereis ver a prova matemática, a demonstração financeira desta verdade, aqui a tendes neste quadro, organizado no Tesouro: Os dados deste mapa são os do exercício de 1889, o último exercício terminado. Nas suas colunas se nos deparam discriminadamente, por estados, a receita e a despesa. Nele encontrareis o quantum da contribuição de cada estado para a renda nacional e a quota da arrecadação nacional despendida com os estados nos vários ramos de serviço localizados em cada um, acrescentando-se a este passivo o cálculo aproximativo do contingente deles no pagamento dos compromissos da nação. Em presença destes algarismos não podemos chegar a conclusões definitivas a respeito de todos os estados; porque, a respeito de Minas e do Rio de Janeiro, estados centrais, cuja importação se efetua pela alfândega da capital federal, não é possível fixar a parte que lhes toca na receita, para concluir ao certo a parte que no débito se lhes há de carregar. O déficit, pois, com que figuram pode não ser real, e é de crer que não seja. Mas, todos os demais estão em déficit, todos, menos o Pará e São Paulo. Pernambuco, apesar do seu ativo de 10.950:521$252, não evita o déficit, que é, para ele, de 337:012$968. O Maranhão apresenta 1.306:419$961 de déficit. Sergipe 1.875:521$163. O Amazonas, 1.891:305$539. Goiás 1.987:805$181. (…) O déficit do Espírito Santo é de 1.990:003$421. O do Piauí está em 2.042:595$033. O de Alagoas orça a 2.353:516$827. O de Santa Catarina toca a 2.554:840$937. O do Paraná chega a 2.905:176$464. O do Rio Grande do Norte, a 3.402:966$119. O de Mato Grosso a 3.503:686$025. O da Paraíba a 3.519:066$795. O do Rio Grande do Sul a 6.987:637$978. (…)
Se todos os estados incorrem em déficit, pergunta S. Exª de que vive a União? Nem todos os Estados apresentam déficit: o Pará e São Pauto beneficiam a União com um saldo de quase 13.000:000$000. Depois, a receita federal na Capital Federal sobe a 88.000:000$000, isto é, a mais da metade da receita total da república, que, em 1889, não excedeu a 160.000:000$000. Essas duas adições, reunidas, perfazem a soma de 101.000:000$000, que explica a existência dos recursos necessários para acudir ao déficit dos estados na importância de cerca de 64 mil contos e às nossas despesas financeiras em Londres, onde gastamos, anualmente, perto de 35 mil contos de réis. (…)
Qual é o orçamento presumível da União? O orçamento anual, no penúltimo exercício, liquidou-se com um déficit: de 25 mil contos sobre a despesa calculada em 150 ou 151 mil; o que quer dizer que, no exercício de 1888, as nossas despesas apuradas ascenderam a 176 mil contos. De então a esta parte, já por efeito necessário do nosso desenvolvimento e da expansão dos serviços administrativos que ele nos impõe, já por exagerações e desvios, que as circunstâncias arrastaram, que mais tarde se poderão talvez reprimir, mas que atualmente criam compromissos inevitáveis para a fazenda nacional, as nossas despesas elevaram-se a uma importância que não podemos calcular em menos de 200 mil contos. É um acréscimo de vinte e cinco mil contos para dois anos excepcionais, que encerram em si a maior das revoluções: a substituição completa das instituições nacionais e as tateações inevitavelmente caras de uma crise de reorganização radical do país”.
Modelo tributário
Ao defender o modelo tributário que entendia como adequado àquela quadra da história, Rui Barbosa assim manifestou:
“E seria monstruoso adotarmos uma constituição, que encadeasse o país a uma unidade tributária viciosa e condenada, obrigando-nos à necessidade absoluta de aumentar continuamente o peso de um imposto que, pelo contrário, a ciência nos aconselha a reduzir progressivamente. Um orçamento nacional fadado a se alimentar perpétua e exclusivamente das taxas sobre a importação seria a mais excêntrica, a mais absurda e a mais daninha de todas as novidades econômicas. (…)
Em face destes dados matemáticos, digo-vos eu, e ninguém me poderia contestar, a constituição que se moldasse nessas emendas, não seria a base da nossa organização financeira, seria apenas uma declaração de falência, despejada, formal, imediata: não seria o pacto de nossa União, mas o pacto do nosso descrédito: não seria uma afirmação de renascença e um apelo ao futuro, mas uma confissão de bancarrota e um testamento de suicida. Antes de concluído o exercício de 1891, teríamos de pedir moratória aos servidores e aos credores do país, lesados no pagamento do seu salário, na satisfação de suas contas, no embolso dos seus juros. (…)
Não havemos de cingir-nos, em matéria de impostos, aos instrumentos enferrujados, às fontes escassas, de que se sustentavam as províncias no antigo regímen. Muitos ramos de matéria tributável estão por aí ainda virgens; e esse campo, sobre o qual a antiga administração passava, e repassava, sem utilizá-lo, é vasto, seguro e de considerável fecundidade. A incidência do nosso sistema tributário concentra-se em direções, de que poderia desviar-se assaz, sem desvantagem acentuada para a renda; e deixa por ocupar um largo terreno, onde há toda uma colheita incalculável, que tentar. Cada governo copiava, a esse respeito, o seu antecessor; as câmaras, que a política e a oratória absorviam, nunca tiveram tempo de estudar a reorganização tributária do País; e as províncias, devoradas pelos interesses eleitorais dos partidos, vegetavam no regímen tradicional, incapazes de devassar horizontes novos”.
Rui falava então à nação da necessidade de serem renovados os mecanismos tributários para que se pudesse fazer frente à arrecadação imprescindível ao atendimento das necessidades coletivas em todos os âmbitos federativos. Na transição de um Estado unitário para um modelo de Estado federado, o custeio da federação era o que se punha na ordem do dia. Todas essas palavras aqui trazidas retratam desafios fiscais de época, tal como atualmente temos aqueles embates próprios de nosso tempo (não exatamente no mesmo modelo fiscal).
Também hoje pensamos em melhorias e mesmo numa reforma tributária para otimizar o regime da tributação. Novas ferramentas, voltadas a superar os antigos “instrumentos enferrujados”, têm se apresentado no cenário fiscal, tais como a dação em pagamento, a transação tributária, o protesto de certidão de dívida ativa, o uso de robôs de inteligência artificial e mesmo projetos de um novo Código Tributário Nacional fazem parte desse esforço da administração tributária nacional do século 21.
Ao fazermos memória dos cem anos do desaparecimento deste brasileiro ímpar que foi Rui Barbosa, que continue a ecoar em nossas mentes e corações sua advertência: das decisões fiscais de hoje depende a futura prosperidade ou ruína do país e das vindouras gerações.
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[1] Fonte: Agência Senado Federal.
[2] BARBOSA, Rui. Organização das Finanças Republicanas – Sessão em 16 de novembro de 1890. In: Pensamento e ação de Rui Barbosa – Organização e seleção de textos pela Fundação Casa de Rui Barbosa. Brasília: Senado Federal, 1999.