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DIREITO E ARTE
O Caso Göring-Ventura
Marcílio Toscano Franca Filho
28/01/2020
No final de 1942, um comboio diplomático alemão parou na estação ferroviária de Santa Maria Novella, no centro de Florença, chamando atenção. O trem trazia de Berlim o marechal Hermann Göring, número dois do regime nazista, para um raro e importante encontro na capital da Toscana.
Apaixonado por arte, o que motivara o Feldmarschall Göring a vir a Florença era prestar uma visita pessoal a Eugenio Ventura (foto), um reputado colecionador de arte e antiquário, de modos refinados e com estreitas relações com os círculos de poder fascistas.
Desde a década de 1920, Eugenio Ventura (Roma, 1887 – Florença, 1949) havia-se tornado um dos maiores nomes do colecionismo e do antiquariato italianos, permitindo-lhe, nas décadas de 1930 a 1940, gozar de grande prestígio junto à burocracia cultural do seu país, comprando, vendendo, importando e exportando obras de arte sem os necessários procedimentos legais. Já havia feito fama no mundo do antiquariato ao intermediar negócios, por exemplo, com os “Busti Vanchetoni”, a “Pietà di Palestrina”, atribuída a Michelangelo, e obras de Giovanni Battista Tiepolo, Bernardo Strozzi e Giovanni Bellini.
Ventura era o rico proprietário da “Galleria Ventura”, na Via Pescia 8, Florença, e há tempos gozava do título de “Commendatore”, conferido pelo regime. Como parte de uma iniciativa cultural fascista, em 1938, Eugenio Ventura foi enviado à América como delegado-chefe do Ministério da Educação Nacional da Itália para a realização de algumas exposições de obras-primas da arte italiana nos Estados Unidos. Fora nomeado “comissário extraordinário” para a Exposição Internacional da Golden Gate, uma feira mundial realizada em São Francisco, de 18 de fevereiro de 1939 a 29 de outubro de 1939. Ainda em 1939, o Commendatore Ventura também foi indicado “Administrador Responsável” pelo real governo italiano para a gerir a exposição “Mestres Italianos”, exibida no Instituto de Arte de Chicago e no Museu de Arte Moderna de Nova York, entre 18 de novembro de 1939 e 7 de abril de 1940, que incluiu obras de nomes como Raphael, Botticelli e Michelangelo.
Todas essas exposições na América foram um gigantesco sucesso de público e um dos ícones da diplomacia cultural italiana, que pretendia fazer propaganda fascista e aumentar seu prestígio no exterior. Ventura aproveitou aquelas mostras monumentais não apenas para fazer dinheiro (já que era o encarregado de pagar as despesas e obter o lucro com a venda dos ingressos), mas também para explorar uma agenda de contatos com potenciais clientes americanos, entre os quais Nelson Rockefeller.
De volta à Itália, no outono de 1941, Eugenio Ventura foi visitado pela primeira vez por Walter Andreas Hofer, um dos consultores de arte a serviço do Reichsmarschall Hermann Göring. Depois de conhecer a sua impressionante coleção de arte italiana do Renascimento, Hofer ofereceu a Ventura a troca de algumas das peças mais preciosas do tesouro particular do antiquário toscano por obras que estavam em poder de Göring. Após alguma negociação, fecharam um acordo.
Voltemos ao ponto inicial deste texto: foi em 8 de dezembro de 1942, graças à reputação internacional de Ventura, que o marechal Hermann Göring em pessoa foi visitá-lo em Florença, em sua maravilhosa Villa di Marignolle, um antigo palácio da família Medici, construído no século XIV ao sul de Florença. A visita tinha uma razão precisa: selecionar algumas obras a serem trocadas por “arte degenerada” da coleção amealhada por Göring como botim de guerra, em países invadidos pelas tropas de Hitler.
Hermann Göring escolheu dezessete peças, das quais já levou oito consigo imediatamente, em seu trem diplomático de volta a Berlim. Segundo Ventura, Göring disse que não havia necessidade de obter licenças de exportação para as obras. O Reichsmarschall lhe garantiu que já havia acordado com o próprio Mussolini a exportação.
Em janeiro de 1943, Ventura recebeu um telegrama de Walter Hofer, convidando-o a ir a Berlim para escolher algumas pinturas da Coleção Göring, como pagamento pelas dezessete obras italianas. Em troca das peças escolhidas pelo marechal em Florença, Ventura recebeu três Monets, dois Sisleys, um Cézanne, um Degas, um Renoir e um Van Gogh, todos saqueados de coleções de judeus na França ocupada pelos nazistas, incluindo as coleções das famílias Rosenberg, Rotschild, Kann e Lindon (Lindenbaum). As pinturas enviadas por Göring foram recebidas por Ventura em Florença em 15 de março de 1943, apenas com uma licença de importação temporária.
Em maio de 1945, a Segunda Guerra Mundial chegou ao fim na Europa. Em 10 de agosto do mesmo ano, a pedido do Escritório de Recuperação de Obras de Arte, liderado pelo antigo agente secreto italiano e partigiano Rodolfo Siviero, os Carabinieri (um corpo especial da polícia italiana) prenderam Eugenio Ventura, para que revelasse onde havia escondido algumas de suas obras de arte, adquiridas durante a guerra. Rodolfo Siviero já acompanhava o tráfico de bens culturais entre a Itália e a Alemanha desde 1943, quando ingressou na resistência antifascista na Toscana e certamente mantinha o importante Ventura sob seu “radar”.
Após duros interrogatórios, Ventura confessou que peças de seu acervo estavam escondidos no convento de San Marco, no centro de Florença, e que foram resultado de uma troca com o marechal alemão Hermann Göring. Após um longo processo, Ventura conseguiu ser inocentado das acusações de receptação, exportação ilícita de bens culturais e fraude, mas ficou com a obrigação de devolver aquelas obras à França imediatamente. As peças foram então entregues ao embaixador francês em Roma para envio aos seus legítimos proprietários judeus.
Em 27 de setembro de 1946, algumas das peças italianas dadas por Ventura a Göring foram encontradas por uma Delegação Italiana no famoso “collecting point” de Munique, para onde os Aliados enviavam obras de arte encontradas na Alemanha e Áustria após a guerra. Foi, porém, apenas graças a um acordo celebrado entre os primeiros-ministros Alcide De Gasperi, italiano, e Konrad Adenauer, alemão, em 1953, que a restituição daquelas pinturas à Itália foi finalmente acertada. Todavia, apenas uma parte das obras de arte retornou a Roma em junho de 1954.
Outras obras de Ventura foram misteriosamente entregues à então Iugoslávia e seu paradeiro foi perdido. Segundo o general Roberto Riccardi, atual comandante do mítico Comando Carabinieri per la Tutela del Patrimonio Culturale, sabe-se apenas que um recibo foi assinado na época por um certo oficial iugoslavo chamado Ante Topi?, também conhecido como Mimara, Pasko ou Midura, que, no pós-guerra, teve passagens pelo Uruguai, Argentina e Brasil, sempre acompanhado de uma enorme carga de obras de arte. A sua grande quantidade de bagagem chamava atenção das alfândegas por onde passava, mas não chegou a ser detido.
As autoridades policiais nunca conseguiram por as mãos em Ante Topi?. Sabe-se apenas que ele casou-se com uma alemã, Wiltrud Mersmann, funcionária do central collecting point de Munique e, nos anos de 1980, vendeu algumas obras do seu acervo particular ao governo comunista iugoslavo. Hoje essas obras estão reunidas no Mimara Museum, em Zagreb, Croatia, e incluem Rembrandt, Raphael e Rubens.
Nunca se conseguiu recuperar todas aquelas peças de arte italianas da coleção Ventura. Desde então não há notícias de algumas obras milionárias de pintores como Paolo Veneziano, Spinello Aretino e Paolo di Giovanni Fei. Ventura morreu em 1949 sem receber de volta as pinturas que havia permutado com Göring. O Comendador, que teve endereços nobres em Florença, como a Torre degli Angiolieri e um palacete na Via Guicciardini, casou-se com Teresa Termini Ventura e teve dois filhos, Paola Ventura e Eugenio Ventura Jr. Durante sua vida, sua secretária e confidente fora a senhora Herta Kessler.
No final da década de 1950, os herdeiros de Eugenio Ventura processaram o Estado italiano, sem entretanto qualquer êxito. Com base no Protocolo de Munique, eles solicitaram de volta a parte das pinturas que foram trocadas com Göring na década de 1940 e devolvidas à Itália pelo governo alemão na década de 1950. O pedido foi rejeitado pela Corte di Cassazione italiana em 1986, com fundamento na Lei n. 77, de 14 de janeiro de 1950, artigo 1º., que dizia o seguinte: “As obras de interesse artístico, histórico e bibliográfico, que no período de 1º de janeiro de 1936 a 8 de maio de 1945 foram transferidas para o estado alemão, por qualquer motivo, para personalidades políticas do regime nazista ou para assuntos germânicos e dos quais o governo italiano obteve a restituição pelo governo militar aliado na Alemanha, eles são adquiridos pelo patrimônio artístico, histórico e bibliográfico do Estado e mantidos em museus ou bibliotecas públicas. “.
Não seria nenhuma surpresa se algumas dessas obras aparecessem em São Paulo, Rio de Janeiro ou Rio Grande do Sul, trazidas e negociadas pelo tal iugoslavo Ante Topi? no pós-guerra, em algum país do MERCOSUL… O Brasil dos anos 1950 foi um paraíso para obras de arte expropriadas durante a Segunda Guerra Mundial e marchands importantes com atuação no país, como Thadeus Grauer, Pietro Maria Bardi e Georges Wildenstein têm episódios controversos em suas biografias, dadas as suas relações nebulosas com personalidades ligadas a regimes totalitários.
Hoje, algumas coleções brasileiras são alvo de questionamento legais de famílias judias da Europa e dos Estados Unidos – alegam que há nessas coleções obras tomadas à força pelos nazistas. O presidente Fernando Henrique Cardoso chegou a criar uma “Comissão Especial de Apuração de Patrimônios Nazistas”, através de um decreto de 7 de abril de 1997, mas nada, até o momento, foi encontrado sobre as obras que um dia estiveram na Coleção Ventura. Será que você já passou por elas e não as reconheceu?
É bem verdade que o Brasil, nem de longe, seria o único país a fazer vista grossa para essas obras de artes saqueadas pelos nazistas. Nunca é demais lembrar, contudo, que o Brasil participou, em 1998, da “Washington Conference on Holocaust-Era Assets”, de onde saíram os importantes “Washington Principles on Nazi-Confiscated Art”. O país também é signatário do Código de Ética do ICOM. Ambos os documentos mostram grande preocupação quanto à proveniência de obras de arte em acervos públicos e privados.
Há poucas semanas, uma dura matéria no New York Times acusou o governo polonês de não devolver obras de arte roubadas pelos nazistas e deixadas no país depois da Segunda Guerra. O Museu de Gdansk tem tentado se explicar…
No início de 2019, o Parlamento Europeu, ao aprovar a Resolução 2017/2023 (INI), que tratou da devolução de obras de arte e bens culturais pilhados em conflitos armados e guerras, calculou em 600 mil o número de ativos culturais roubados das coleções europeias durante a 2ª Guerra Mundial que ainda podem ser reivindicados… Há ainda muito trabalho a ser feito, apesar do 75º aniversário da libertação de Auschwitz, em 27 de janeiro de 1945.
Em 1998, o rabino Henry Sobel, expoente da comunidade judaica recentemente falecido, fez uma tocante conferência na Cardozo Law School, em Nova York, em que expôs as conexões brasileiras com o patrimônio roubado pelos nazistas. Ali, ele concluiu: “We have two duties to the victims of the Nazis. To those who are still alive, we must insure that the unbearable tragedy of living through the Holocaust is not compounded by an old age marked by the fear and sadness of poverty. We must let them know that we are not indifferent to their plight. To those who died, we have a different duty: to document the facts, to gather the evidence, and to locate the truth. This must be done with urgency.”
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