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Avestruzes, Pulgas e Urubus no Zôo do Direito

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Avestruzes, Pulgas e Urubus no Zôo do Direito

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Marcílio Toscano Franca Filho

Marcílio Toscano Franca Filho

22/01/2018

Por Inês Virgínia Soares[1] e Marcílio Franca

Há alguns meses, uma restauração na Sala de Costantino, no Vaticano, revelou um tesouro em meio aos afrescos: uma exótica alegoria da justiça pintada a óleo pelas mãos do próprio Rafael Sanzio há quase cinco séculos!

Pouco antes de morrer, em 1520, Rafael teria iniciado a decoração da quarta e última das suas Stanze, abandonando o afresco e experimentando a pintura a óleo. Após sua morte, no entanto, seus alunos optaram pela retormada da técnica tradicional, mais rápida e de eficácia já comprovada, e adicionaram querubins, soldados e dragões às paredes, fazendo com que as pinturas do mestre sumissem dentro do cenário detalhado e multicolorido do cômodo.

O tema da justiça não era inédito para Rafael. Na Sala de Constantino, ele, na verdade, retomou um mote que já havia pintado anos antes, na primeira das salas, a Stanza della Segnatura, quando retratatou uma justiça rodeadada de anjinhos, dotada de espada e balança, sem venda, mas de olhos semi-cerrados. Ao voltar à mesma alegoria, agora na Sala de Costantino, Rafael, porém, retratou uma justiça de olhos bem abertos e que tem na mão esquerda uma balança e na mão direita um esguio e elegante avestruz. Um avestruz? Isso mesmo, a maior e mais pesada das aves.

Mas o que um avestruz, em pleno Renascimento, teria a ver com a alegoria da justiça, nos corredores do poder do Vaticano? Seria uma referência respeitosa à mitologia egípcia, que dizia que o coração de um justo pesava menos que uma pena de avestruz? Ou uma crítica ao apetite voraz da espécie, capaz de devorar até metal? Quem sabe, um elogio à longa distância que separa coração/emoção de razão/cérebro na ave que tem um pescoço enorme. Ou ainda uma metáfora da igualdade, já que todas as suas penas são iguais. Não há, enfim, consenso entre historiadores da arte. A única certeza é que o avestruz de Rafael é apenas mais um capítulo da exótica história do diálogo que as artes e a justiça mantém com os animais.

Outro desses capítulos passou-se em 1839, quando o editor alemão Alexander Duncker publicou em Berlim uma traduçao de Goethe – ele mesmo! –  para um tratado em latim de Otto Philipp Zaunschliffer sobre o estatuto juridico das pulgas, originalmente publicado em Marburgo, em 1688. A “Dissertatio” de Zaunschliffer recebeu de Goethe o titulo de “Juristische Abhandlung über die Flöhe” (ou “Tratado Jurídico sobre as Pulgas”) e do seu índice constam questões complexas como “as pulgas estão sujeitas ao Direito Civil?”, “pulgas nobres e plebeias”, “o usufruto de pulgas”, o “o casamento entre pulgas” etc. Tudo isso está à disposição dos zoojuristas na prestigiosa Biblioteca Estatal da Baviera, em Munique.

Na biblioteca Bobbio da Faculdade de Direito de Torino há outro livro curioso dessa seara: “Animali al Rogo: Storie di Processi e Condanne contro gli Animali dal Medioevo all’Ottocento”, de Edward Payson Evans. Ali, se contam vários processos em que animais aparecem como réus, com direito a advogados, citação, contraditório e defesa técnica, desde o ano de 824, quando toupeiras foram condenadas à excomunhão por um tribunal eclesiástico no Vale de Aosta, região noroeste da Itália.

Registre-se, todavia, que processos assim, que constituem as raízes da proteção jurídica dos animais, não estão restritos à Europa medieval. Conta-se que, na São Luís do Maranhão colonial, os religiosos da Província da Piedade processaram as formigas que saquearam a despensa dos frades em meados do sec. XVIII. E no último mês de novembro, um cavalo foi “preso” pela Polícia Militar na cidade de Nossa Senhora Aparecida (SE), após dar um coice em um veículo durante a realização de uma cavalgada. Em 1937, perante o Tribunal de Segurança Nacional, o grande Sobral Pinto recorreu à Lei de Proteção aos Animais para que a polícia do Estado Novo parasse de torturar o preso politico Harry Berger. Não há notícia, porem, de que o tal cavalo de Nossa Senhora Aparecida (SE) tenha conseguido um habeas corpus.

Nesse quadro, o que dizer de obras de arte que usam animais vivos? Estes seriam sujeitos ativos na composição? Um episódio de 2010, ocorrido na 29ª Bienal de São Paulo, com Nuno Ramos, é ilustrativo de novas complexidades. O artista plástico paulistano criou a instalação batizada de “Bandeira Branca”, composta por três grandes esculturas que lembravam grandes túmulos. No topo de cada uma foram instaladas caixas de som que veiculavam as canções Carcará, Boi da Cara Preta e Bandeira Branca. No alto das esculturas, poleiros que se pareciam com chaminés, onde ficavam urubus vivos. As aves sobrevoavam a instalação, que era cercada de telas e impenetrável para o público. Em entrevista dada em 2012, Nuno Ramos explicou que os urubus davam vida à obra de arte e que “eram acionadores de um mecanismo interno da obra. Eles comiam, faziam cocô, voavam, sujavam.” A presença das aves causou protestos com repercussão suficiente para que o IBAMA cassasse a licença para a permanência dos urubus, que retornaram ao seu cativeiro em Sergipe, sob argumento de maus tratos. Apesar de protagonistas da obra, foram mandados para casa sem qualquer reconhecimento de direitos (autorais) ou talentos…

Em 2015, polêmica semelhante ocorreu na 10ª Bienal Mercosul, quando uma vereadora de Porto Alegre ingressou com uma ação judicial e conseguiu a retirada de parte de uma instalação do tropicalista Hélio Oiticica (1937-1980): uma jaula com papagaios! Restaram apenas duvidas: Essa obra, sem os animais, pode ser considerada a mesma obra? E o público deve ser privado de conhecer a obra em sua concepção original? Ou as adaptações da instalação aos direitos dos animais faz parte da sua “sustentabilidade” ao longo dos anos?

Em 1974, na galeria Renè Block, em Nova York, o artista alemão Joseph Beuys montou a performance “Eu gosto de América e América gosta de mim”, em que se trancou, durante três dias, numa jaula, com um coiote selvagem. Aos poucos, a tensao deu lugar a uma comunicação entre homem e animal, gerando um tipo de reconciliação entre natureza e cultura. Em todos os sentidos, esse diálogo dificilmente seria mantido nos dias de hoje.

Se, como visto, a associação do avestruz à justiça de Rafael não encontra consenso na história da arte, tampouco é facil conciliar, nos dias de hoje, a liberdade de expressão artística (ou de manifestação cultural) com o direito de integridade dos animais, constitucionalmente assegurado. Ah, mundo-cão…


[1] Inês Virgínia Prado Soares é Procuradora Regional da República em São Paulo, Doutora em Direito pela PUC-SP, com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e autora do livro “Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro” (Ed. Forum). Marcílio Franca é membro do Conselho Executivo da International Law Association (ILA) e árbitro suplente do Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL.. É Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra, fez pós-doutorado no Instituto Universitário Europeu de Florença (Itália) e é coautor do livro “Direito da Arte” (Ed. Atlas). É membro do Ministério Público de Contas da Paraíba e professor da UFPB.

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