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DIREITO E ARTE
Arranjo floral e azulejaria no Direito de Autor
Gustavo Martins de Almeida
23/01/2024
O engenho do ser humano produz obras artísticas desde o tempo das inscrições rupestres. Os aprimoramentos tecnológicos que facilitaram a reprodutibilidade e o comércio das obras artísticas, principalmente a partir da invenção dos tipos móveis por Gutenberg, iniciam movimento de proteção do trabalho criativo.
O direito contempla as criações artísticas e assegura proteção ao seu modo de expressão por um tempo determinado. Não é perpétuo esse direito, pois constitui uma forma de proteger aquilo que o artista criou com base nos conhecimentos que obteve ao longo de sua vida, e depois entregar o produto para fruição pela sociedade.
O artista analisa e sintetiza a sua realidade, muitas vezes enxerga além do seu tempo, gera questionamentos, obtém proteção de seu trabalho intelectual para si e para seus herdeiros, e após determinado período a obra cai em domínio público.
Além desse aspecto temporal, importante atentar para a proteção do direito às mais diversas características culturais de cada grupo social.
Nos países nórdicos são protegidas as obras artísticas de gelo, como as esculturas, e também as criações arquitetônicas e bares confeccionados e esculpidos em água solidificada. Na verdade são obras efêmeras, isto é, de curta duração como por exemplo os fogos de artifício, as esculturas de areia, os arranjos florais e as performances.
Diante de próxima exposição sobre o trabalho de Roberto Burle Marx e a comemoração de 115 anos de seu nascimento, destaca-se a proteção do direito sobre as obras de paisagismo.
As leis de direito autoral, grande parte calcadas na Convenção Internacional de Berna (D75699 (planalto.gov.br) estipulam que a proteção da lei se dá sobre obras relacionadas de forma meramente exemplificativa, isto é, que não fazem parte de uma relação de um grupo fechado de obras.
Onde estiverem? a criação do ser humano, a originalidade, o talento, o gênio, a estética e a forma haverá a proteção do direito sobre esta expressão do intelecto.
Novas tecnologias geram novos produtos, que por sua vez recebem proteção da lei, como por exemplo os recentes NFTs (non fungible tokens) e toda uma gama de obras imateriais surgidas com a concepção do metaverso e de um mundo imaginário paralelo contemporâneo.
Mas as tecnologias não afetam apenas o presente e o futuro. Curiosamente o passado pode ser revisto pelas novas descobertas, e nesse particular as leis também protegem criações mais remotas ou de concepção mais antiga ou tradicional, que muitas vezes ganham novos contornos e mais visibilidade.
A lei brasileira de direito autoral (lei 9.610/98, doravante LDA) contempla os projetos paisagísticos, ao estipular, no seu art. 7º que são obras protegidas: ” X – os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência” (destaquei).
Dentro desse conceito, que é jurídico pelo enquadramento legal, e arquitetônico pelo sentido de essência do projeto, residem aspectos não só estéticos, mas que também de envolvem conhecimento da flora, previsão de tempo de desenvolvimento de plantas, visualização do efeito das plantas no ambiente interno ou externo e no âmbito de decoração ou urbanístico.
Assim sendo constituem verdadeiras obras de arte não só os jardins de John Tyndale, que elaborou o paisagismo do Parque Lage, e os de Auguste Glaziou, autor do paisagismo da Quinta da Boa Vista e Passeio Público na época do Império, no Rio de Janeiro, como os arranjos de flores que adornam e dão identidade a interiores de prédios, principalmente os de acesso público.
É sabido o que no Museu Metropolitan de Nova Iorque existem nichos onde permanentemente são exibidos belíssimos arranjos florais, o que ocorre por determinação de Lila Acheson Wallace, fundadora da revista Reader´s Digest, colecionadora que doou verba em 1967 para o museu para manter este ornamento no lobby do renomado museu (https://ephemeralnewyork.wordpress.com/tag/flower-bequest-lobby-met-museum/). As flores são trocadas toda terça-feira e sobre elas disse o New York Times: “Um acréscimo efêmero a um espaço atemporal”.
Em recente artigo da Itsartlaw discutiu-se a proteção de vestidos feitos de flores, típicas obras efêmeras segundo as leis de Artes Visuais dos EUA (https://itsartlaw.org/2022/01/17/copyright-protection-in-short-lived-artworks-a-study-on-fixation-in-contemporary-floral-exhibitions/), com argumentos a favor da proteção dessas obras.
Quantas e quantas obras de caráter efêmero – que pouco após sua concretização perecem – são criadas e exibidas para deleite de frequentadores de prédios de acesso público. A mão, a habilidade e a sensibilidade do técnico que concebem e executam arranjos autorais florais correspondem a uma criação do intelecto e como tal ela merece a proteção do direito.
Basta ler o que estabelece a LDA ao determinar a proteção de criações do espírito por qualquer meio fixadas em qualquer suporte, como se vê abaixo:
“Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro:”
Então o fato de não constar da lei uma determinada ou específica obra não impede a sua proteção.
Assim vê-se que a importância dada aos arranjos florais de conteúdo original, inovador, verdadeiras esculturas vivas, num período em que as pessoas cada vez mais permanecem em casa por conta dos reflexos da pandemia, valoriza o trabalho do artista criador dessas obras, principalmente em estabelecimentos de acesso público, como museus, shopping centers e hotéis.
A recente modificação na legislação urbana do Rio de Janeiro, por exemplo, permitiu a construção de imóveis em que obras de arte, inclusive criações de natureza biológica, biodinâmica são cada vez mais frequentes, como paredes vegetais.
Para arrematar interessante aspecto é haurido do direito português e que representa a exteriorização da cultura de um povo, formalizada no Decreto-Lei n.º 63/85, que aprovou o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos de Portugal (https://diariodarepublica.pt/dr/legislacao-consolidada/decreto-lei/1985-34475475) :
Art. 1º
1 – Consideram-se obras as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas, que, como tais, são protegidas nos termos deste Código, incluindo-se nessa protecção os direitos dos respectivos autores
Art. 2º
1 – As criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, quaisquer que sejam o género, a forma de expressão, o mérito, o modo de comunicação e o objectivo, compreendem nomeadamente: a) Livros, folhetos, revistas, jornais e outros escritos; b) Conferências, lições, alocuções e sermões; c) Obras dramáticas e dramático-musicais e a sua encenação; d) Obras coreográficas e pantomimas, cuja expressão se fixa por escrito ou por qualquer outra forma; e) Composições musicais, com ou sem palavras; f) Obras cinematográficas televisivas, fonográficas, videográficas e radiofónicas; g) Obras de desenho, tapeçaria, pintura, escultura, cerâmica, AZULEJO, gravura, litografia e arquitectura; h) Obras fotográficas ou produzidas por quaisquer processos análogos aos da fotografia; i) Obras de artes aplicadas, desenhos ou modelos industriais e obras de design que constituam criação artística, independentemente da protecção relativa à propriedade industrial; j) Ilustrações e cartas geográficas; l) Projectos, esboços e obras plásticas respeitantes à arquitectura, ao urbanismo, à geografia ou às outras ciências; m) Lemas ou divisas, ainda que de carácter publicitário, se se revestirem de originalidade; n) (Revogada) 2 – As sucessivas edições de uma obra, ainda que corrigidas, aumentadas, refundidas ou com mudança de título ou de formato, não são obras distintas da obra original, nem o são as reproduções de obra de arte, embora com diversas dimensões. (destaquei e grifei).
Destaquei aqui por dois motivos a proteção ao “azulejo”. Primeiro, por representar a bela e antiga arte lusitana, que se vê ao longo de todo o território, e a história de Portugal, com forte influência no Brasil por conta da colonização. O destaque do azulejo como obra protegida constitui amostra exemplar da sensibilidade do legislador ao incluir na lei essa obra artística.
Acrescento, ainda, que o Código de Direito de Autor Português se refere a obras que sejam de qualquer modo exteriorizadas, não limitando a forma de expressão, o modo de comunicação e objetivo.
Assim, aproveito a lei portuguesa para salientar que no Brasil, apesar de não constarem da LDA como obra artística, os azulejos são protegidos pelo direito autoral.
Sejam os criados por Cândido Portinari para a fachada da igreja da Pampulha em Belo Horizonte e para o prédio do Ministério da Educação no Rio de Janeiro, os de autoria de Roberto Burle Marx para a atual sede do Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, os de Djanira para o Túnel Catumbi-Laranjeiras, e os murais de Paulo Werneck (https://museudeartedorio.org.br/programacao/paulo-werneck-murais-para-o-rio/) também no Rio, todos são obras protegidas, independentemente de sua ausência na lei. (Ornamentação Modernista: A Azulejaria De Portinari Na Igreja Da Pampulha, Rafael Alves Pinto Junior, POSFAUUSP, DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2317-2762.v0i23p140-155 in https://www.revistas.usp.br/posfau/article/view/43558)
Invoco ainda o trabalho notório e muito utilizado contemporaneamente do artista Athos Bulcão. Seus azulejos ornamentam o Congresso brasileiro e vários prédios do país, sendo evidente a sua proteção como se vê no site do artista (https://www.fundathos.org.br/), que documenta e comercializa sua obra.
Último exemplo reside na Cerâmica Brennand, de Recife, de igual fama Internacional, espelhada no site que retrata parte da sua obra, exibida no espaço da Oficina Francisco Brennand, na capital pernambucana, para deleite dos seus visitantes presenciais ou virtuais (https://ceramicabrennand.com/ ).
Então o fato de não constar da lei brasileira de direito autoral a referência a azulejos não impede a sua proteção legal.
O mesmo se aplica a arranjos florais de conteúdo que retrate identidade de imóvel ou instituição, pois representam obra de arte efêmera e, apesar de não mencionados expressamente pela lei, se enquadram nos projetos de paisagismo e decoração de interiores.
Muito significativamente, Tim Ingold reflete que “ a paisagem é um arranjo de características relacionadas” (A temporalidade da Paisagem, in A unidade múltipla: ensaios sobre a paisagem. Altamiro Sergio Mol Bessa, organizador, 1ª edição, janeiro de 2021, Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, Escola de Arquitetura | Universidade Federal de Minas Gerais, in https://sites.arq.ufmg.br/posgraduacao/arquiteturaeurbanismo/wp-content/uploads/2021/03/A-Unidade-mu%CC%81ltipla.-Ensaios-sobre-a-paisagem-.pdf ).
Os arranjos florais são espécies do gênero obra efêmera, e gozam de proteção como as esculturas de areia, de gelo, os fogos de artifício e as performances. Da mesma forma, os azulejos não são mencionados na lei brasileira, mas recebem proteção do direito autoral.
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