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Argentina vs Brasil: Incapacidade civil das crianças e adolescentes e sua autonomia progressiva

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Argentina vs Brasil: Incapacidade civil das crianças e adolescentes e sua autonomia progressiva

Carlos E. Elias de Oliveira

Carlos E. Elias de Oliveira

21/05/2024

Cuidaremos de como o Código Civil Argentino (CC/Ar)1 trata das situações de incapacidade, com foco na situação das crianças e adolescentes.

Para esclarecimentos de alguns pontos, tivemos a oportunidade de conversar com a professora Aida Kemelmajer de Carlucci, que foi uma das integrantes da Comissão de Juristas para Elaboração do Código Civil argentino/15 e que é umas das civilistas mais importantes da Argentina.

Ao final, realizaremos comparações com o direito civil brasileiro.

Antecipamos que a conclusão é no sentido de que a legislação brasileira não precisa ser explícita sobre a autonomia progressiva da criança e adolescente, pois essa afirmação genérica não representaria nenhuma inovação legislativa efetiva, tudo conforme sugestão da Comissão de Juristas para atualização do Código Civil brasileiro.

O caminho é a doutrina e a jurisprudência ir amadurecendo os casos concretos que forem surgindo, no que a experiência argentina poderá ser útil para enriquecer as reflexões. A positivação deverá acontecer de modo mais específico, a partir dos consensos que vierem a ser formados a partir de casos concretos.

Argentina

O CC/Ar admite a categoria de capacidade de exercício (capacidad de ejercicio) e estabelece que toda pessoa é apta para exercer, por si só, os seus direitos, observada as limitações previstas em lei e em sentença. É o art. 23 do CC/Ar:

Sob essa ótica, o art. 24 e 25 do CC/Ar indica que são incapazes de exercício:

  1. as pessoas a nascer, ou seja, o nascituro;
  2. as pessoas com idade inferior a 18 anos (pessoas menores de idade);
  3. as pessoas declaradas incapazes por sentença judicial na extensão dela. 


Veja os referidos dispositivos:

  1. la persona por nacer;
  2. la persona que no cuenta con la edad y grado de madurez suficiente, con el alcance dispuesto en la Sección 2ª de este Capítulo;
  3. la persona declarada incapaz por sentencia judicial, en la extensión dispuesta en esa decisión.

Seccion 2ª – Persona menor de edad

ART. 25.- Menor de edad y adolescente. Menor de edad es la persona que no ha cumplido dieciocho años.

Este Código denomina adolescente a la persona menor de edad que cumplió trece años.

No caso das crianças e dos adolescentes2, a regra é a de elas exerçam seus direitos por meio de seus representantes legais.

Todavia, o art. 26 do CC/Ar reconhece que, mesmo para quem idade inferior a 18 anos, é preciso reconhecer-lhes autonomia para a prática de alguns atos jurídicos sem representação. Para essas hipóteses, o referido dispositivo refere-se a mirins com idade e grau de maturidade suficiente (“edad y grado de madurez suficiente”).

A vontade da criança e do adolescente é, ao máximo, respeitada pelo CC/Ar, respeitado o seu grau de maturidade.

Nesse sentido, o art. 26 do CC/Ar estatui que essas pessoas menores de 18 anos, no caso de conflito de interesse com os representantes legais (como os pais), podem “intervir com assistência letrada”, ou seja, podem buscar um advogado para acessar a Justiça contra seus pais3.

A propósito, em conversa pessoal, a professora argentina Aida Kemelmajer esclareceu que, na Argentina, após muitas dificuldades operacionais, quase todas as províncias possuem uma estrutura que permite as crianças e adolescentes obterem assistência judiciária para acessarem a Justiça. A propósito, transcrevemos excerto de suas considerações lançadas por conversa eletrônica com este autor:

Também se assegura à pessoa menor de idade o direito de ser ouvida em qualquer processo judicial que lhe diga respeito. Também tem o direito de participar das decisões que digam respeito à sua pessoa.

No caso de tratamentos médicos, o art. 26 do CC/Ar é mais detalhado a depender da idade do mirim.

Se ele tem mais de 16 anos, ele é considerado adulto para tomar as decisões em relação ao seu próprio corpo.

Se, porém, sua idade é de 13 a 16 anos, o adolescente poderá decidir sozinho apenas se o tratamento médico não for grave (ou melhor, invasivo ou arriscado à vida ou à integridade física). Caso o tratamento seja grave, o adolescente terá de decidir com assistência dos seus pais.

Veja o art. 26 do CC/Ar:

Comparação com o Brasil

No Brasil, o texto legal não é detalhado. Mas, doutrinariamente, a tendência é o respeito da vontade da criança e do adolescente a depender de sua idade e de seu grau de maturidade. Reconhece-se, na prática, a autonomia progressiva da pessoa menor de idade.

A regra geral é a de que, até os 16 anos, o mirim é absolutamente incapaz e, por isso, precisa ser representado por seus pais ou, se for o caso, outro representante legal na prática de atos jurídicos. Em palavra mais populares, só o representante legal assina os contratos ou manifesta a vontade em nome do mirim. Este sequer é ouvido. Se a pessoa menor de 16 anos praticar o negócio jurídico solitariamente, haverá nulidade absoluta.

A partir dos 16 anos, a pessoa é relativamente incapaz e, nessa condição, tem de manifestar pessoalmente a vontade para a prática de atos jurídicos. Seus pais ou, se for o caso, outro amparador4 precisam consentir também: atuam como assistentes do adolescente de mais de 16 anos. Sem a assistência do amparador, o negócio jurídico praticado pela adolescente de mais de 16 anos será anulável.

Esse é o figurino legal textual, conforme arts. 3º, 4º, 166, I, 171, 1.634, VII, e 1.747, I, do CC5.

Entretanto, o art. 185 do CC – em uma regra extremamente elogiável – deixa uma abertura para o juiz analisar cada caso concreto quando se tratar de ato jurídico stricto sensu, e não de negócio jurídico. Isso, porque as regras de invalidade dos atos praticados pela pessoa menor de 18 anos são endereçadas a negócios jurídicos.

A diferença é que o ato jurídico stricto sensu tem seus efeitos predeterminados pela lei, ao passo que os efeitos jurídicos dos negócios jurídicos são desenhados pela vontade da própria pessoa.

Isso significa que os negócios jurídicos exigem uma vontade incrementada da pessoa, para garantir que ela tenha pleno discernimento acerca dos deveres e direitos que está a assumir. Já o ato jurídico stricto sensu pode satisfazer-se com uma vontade menos incrementada do indivíduo, pois os efeitos jurídicos procederão da lei (efeito ope legis).

Ao lado desse quadro geral, há alguns pontos em que a legislação brasileira é mais específica. Por exemplo, ela:

condiciona a adoção ao consentimento do adolescente, definido no Brasil para quem tem mais de 12 anos6, conforme art. 45, § 2º, do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90)7;
permite o trabalho a partir de 16 anos e, no caso de aprendiz, a partir de 14 anos, conforme inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal8;
autoriza o testamento por adolescente de mais de 16 anos (art. 1.860, parágrafo único, CC9);
credencia testemunhas com idade a partir de 16 anos (art. 228, I, CC10).
Em outros pontos, a legislação é silente, abrindo espaço para debates doutrinários.

A doutrina majoritária é no sentido de reconhecer a relevância da vontade da pessoa incapaz para situações existenciais, respeitado o seu grau de discernimento. Veja o enunciado 138 das JDC – Jornadas de Direito Civil:

Enunciado 138/JDC: A vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inc. I do art. 3º é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento bastante para tanto.

A doutrina também é pacífica em admitir atos-fatos jurídicos praticados apenas por crianças e adolescentes, especialmente em questões de pequeno valor e toleráveis socialmente. Por exemplo, é válido o contrato de compra de um sorvete por uma criança ou um adolescente, mesmo sem a participação de seus pais.

O problema, porém, é discutir casos concretos, tarefa da qual a doutrina e a jurisprudência brasileiras vêm se desincumbido paulatinamente.

De qualquer forma, entendemos que a solução do CC/Ar merece atenção nas reflexões a serem feitas diante dos casos concretos que forem surgindo.

Pense, por exemplo, no caso de um adolescente, de 17 anos, que precisa realizar uma cirurgia de amputação da perna para tentar salvar-se de um sério problema de saúde. Seria necessário consentimento de seus pais para tanto? Ou bastaria a vontade do adolescente? O médico teria de aguardar o consentimento dos pais para realizar a cirurgia?

Entendemos que, se a vida do adolescente está em flagrante perigo, não há por que aguardar consentimento dos pais, especialmente se o próprio adolescente manifestou sua vontade favorável ao procedimento. Afinal, além da recomendação médica, a vontade do adolescente de 17 anos é juridicamente relevante.

Há vários casos concretos sensíveis ainda a serem enfrentados, como a autonomia da criança ou do adolescente para fazer cirurgias meramente estéticas sem o consentimento dos pais. Trata-se de assuntos ainda não amadurecidos na comunidade jurídica.

Nesse contexto, consideramos que a legislação brasileira não precisa ser textual acerca da autonomia progressiva da criança e do adolescente. Isso, porque essa autonomia progressiva já é um lugar comum na doutrina e na jurisprudência. Afirmar isso textualmente não importaria em nenhuma novidade legislativa. O que realmente importa é definir casos concretos, o que, em um primeiro momento, deve ficar a cargo da doutrina e da jurisprudência. Futuramente, com amadurecimento da doutrina e da jurisprudência, convirá a positivação dessas regras específicas e pontuais.

Aliás, essa foi a posição da Comissão de Juristas para Atualização do Código Civil do Senado Federal, da qual tivemos a honra de ser membro11. O anteprojeto entregue ao Presidente do Senado não positivou a autonomia progressiva da criança e do adolescente por mera desnecessidade legislativa. Durante os debates da comissão, o tema foi levantado para debates, com o surgimento de um texto muito bem escrito nesse sentido12. Todavia, a Comissão preferiu manter o silêncio no texto legal, o que nos pareceu adequado.

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LEIA TAMBÉM


1 Referimo-nos ao Codigo Civil y Comercial de La Nacion (Ley 26.994), que entrou em vigor no ano de 2015. Disponível aqui.

2 O CC/Ar não emprega os termos criança e adolescente. Ele apenas se refere a pessoas menores de idade para se referir a todos que têm menos de 18 anos, além de se referir a adolescente para se reportar a quem tem mais de 13 anos (art. 26 do CC/Ar).

3 Deixaremos para tratar do tema em outra ocasião.

4 Chamamos de amparador aqueles que recebem o munus de algum instituto de amparo (como a tutela, a curatela e a guarda do Estatuto da Criança e Adolescente).

5 Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. 

(…)

Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: 

I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

(…)

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:

I – celebrado por pessoa absolutamente incapaz;

(…)

Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico:

I – por incapacidade relativa do agente;

(…)

Art. 1.634.  Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: (…)  VII – representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;

(…)

Art. 1.747. Compete mais ao tutor: I – representar o menor, até os dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-lo, após essa idade, nos atos em que for parte;

6 Art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990):

Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.

Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade.

7 Art. 45. A adoção depende do consentimento dos pais ou do representante legal do adotando.

(…)

§ 2º. Em se tratando de adotando maior de doze anos de idade, será também necessário o seu consentimento.

8 Art. 7º, XXXIII, CF: “proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos”.

9 Art. 1.860. Além dos incapazes, não podem testar os que, no ato de fazê-lo, não tiverem pleno discernimento.

Parágrafo único. Podem testar os maiores de dezesseis anos.

10 Art. 228. Não podem ser admitidos como testemunhas:

I – os menores de dezesseis anos;

11 Sobre os trabalhos da Comissão, ver aqui.

12 O texto é este, fruto de sugestão da Relatoria-Geral da Comissão de Juristas (a Relatoria-Geral foi composta pelos geniais Professores Flávio Tartuce e Rosa Nery):

Art. 4o-A. E’ reconhecida a autonomia progressiva da criança e do adolescente, devendo ser considerada a sua vontade em todos os assuntos a eles relacionados, de acordo com sua idade e maturidade.

Fonte: Migalhas

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