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Accountability na qualidade de um conceito relacional e de modulação do poder

ACCOUNTABILITY

LGPD

LIVRO

REGULAÇÃO E PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS

REGULAÇÃO E PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS - O PRINCÍPIO DA ACCOUNTABILITY

Bruno Bioni

Bruno Bioni

04/08/2022

Neste trecho do livro Regulação e Proteção de Dados Pessoais – O Princípio da Accountability, Bruno Bioni discute a Accountability na qualidade de um conceito relacional e de modulação do poder, classificando-a como um processo de codeliberação na linha do nomen iuris do princípio adotado pela LGPD.

Continue a leitura e entenda mais!

Accountability na qualidade de um conceito relacional e de modulação do poder: um processo de codeliberação na linha do nomen iuris do princípio adotado pela LGPD

O termo accountability carrega consigo uma alta carga retórica,[9]especialmente quando ele é significado como sinônimo de virtude. O quão virtuoso é um político honesto, uma corporação com responsabilidade social, um país que alcança as metas climáticas e, até mesmo de um(a) esposo(a) que é, de fato, um(a) bom(a) companheiro(a).[10]Em todas essas situações, o termo funciona semanticamente como um adjetivo, a qualidade de um comportamento responsável (accountable). E, como se notou, não diferiu historicamente no campo da proteção de dados no qual o termo é recorrentemente empregado para denotar um ponto de chegada – a virtude de estar em conformidade com a lei.[11]Então, experimentar-se-ia um uso responsável dos dados (vide: capítulo 1). Essa é, no entanto, uma abordagem extremamente elusiva em termos analíticos.

Em vez de enxergar accountability apenas como um fim em si mesmo, deve-se encará-la como um mecanismo[12]para se alcançar tal virtuosidade. Esse é o principal alerta de Mark Bovens para quem essa bifurcação causa menos confusão conceitual, bem como mais precisão metodológica em termos de demarcação do objeto de estudo. Este trabalho está interessado justamente nessa segunda feição instrumental da accountability, que joga luz sobre aquilo que é o seu principal elemento constitutivo: um conceito eminentemente relacional.[13]Voltando ao exemplo mencionado, um político, uma empresa, um país, um(a) esposo(a) somente são virtuoso(a)s quando outros julgam as suas ações e os reconhecem

escrava, insustentável e não dedicado.

Do ponto de vista normativo, mais do que ser um conceito relacional, accountability dirige-se necessariamente a um fenômeno de poder. Isto é, quando a força de todos os agentes acima mencionados é contingenciada pelo escrutínio público (outrem), a ponto de haver, como é chamado por Danielle Rached,[14]respectivamente, uma divisão de trabalho entre quem é o detentor do poder (power-holder) e quem pode sofrer as consequências de um comportamento desviante de sua parte (account-holder). Somente com essa repartição de tarefas entre a parte mais forte – que presta contas – e mais fraca – que julga as contas – é que se brotam comportamentos virtuosos.

Trata-se, portanto, de um liame obrigacional que constrange a autonomia[15]decisória de quem detém mais poder na relação, na medida em que a sua contraparte irá fazer um juízo de valor sobre suas ações. É muito mais do que ser simplesmente transparente,[16]já que a tão desejada virtuosidade deriva necessariamente do reconhecimento de outrem e não apenas de dar publicidade acerca das suas ações. Isto é, do julgamento das contas prestadas que podem ser aprovadas, rejeitadas, enfim, questionadas, desengatilham-se consequências negativas (não accountable) ou positivas (accountable).[17]

A partir dessa abordagem mais restritiva-minimalista,[18]percebe-se que accountability é a relação entre um ator e um fórum em que o primeiro tem a obrigação de prestar contas – explicar e justificar – ao segundo que irá julgá-las.

Um vínculo que os aproxima para um encontro reflexivo[19]com o objetivo de deflagrar um processo de codeliberação. Seu produto ideal é a constituição de um circuito decisório colaborativo que seja contingente à assimetria de poder existente dessa relação.[20]

Não foi por outro motivo que a LGPD traduziu o princípio da accountability como o da “responsabilização e prestação de contas”. E, diferentemente da OCDE e da GDPR, prescreveu-se uma conceituação que deixa claro que o grau de responsabilidade de uma atividade de tratamento de dados é correspondente ao nível de demonstração das medidas adotadas para o cumprimento das normas de proteção de dados. Parafraseando e invertendo a ordem do nomen iuris do princípio, é da prestação de contas que se verifica se o uso que se faz de um dado é responsável.

Nesse sentido, accountability é a melhor expressão de que um vínculo obrigacional[21]não é estático, mas sim dinâmico. Nas palavras de Clóvis Couto e Silva,[22]um processo pelo qual as partes de uma relação devem cooperar entre si para a consecução de um fim. No campo da proteção de dados, isso significa que práticas virtuosas só florescem quando há o encontro dialógico, mesmo que combativo, entre quem faz a extração de dados e quem os produz. Para ser mais preciso entre quem tem poder para legitimar uma atividade de tratamento de dados e quem pode contingenciá-lo. Uma análise que, como será visto, não se resume nem se limita ao que é enunciado expressamente no art. 6.º, X, da LGPD, mas que deriva da racionalidade do regime jurídico nela estipulado.

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NOTAS

[9]Quem critica o emprego retórico do termo e o atribui a uma falha do campo do direito em deixá-lo na porta dos fundos é: RACHED, Danielle Hanna. The International Law of Climate Change and Accountability. The University of Edinburgh, 2013.

[10]Os exemplos encontram-se em: MASHAW, Lerry Louis. Accountability and Institutional Design: Some Thoughts on Grammar of Governance. Yale Law School. Public Law Working Paper n. 116; Public Accountability: Designs, Dilemmas and Experiences, cap. 5, p. 124, 2006, p. 124.

[11]Um diagnóstico similar e que ultrapassa o campo de proteção de dados é o que faz Mashaw ao traçar paralelos entre o processo de significação entre o que é accountability e o que é regulação. Ver: Ibid., p. 123.

[12]Essa diferenciação é feita por Bovens. Ver: BOVENS, Mark. Two Concepts of Accountability: Accountability as a Virtue and as a Mechanism, p. 946-967.

[13]Valemo-nos dos alertas conceituais, mas, ao mesmo tempo, metodológicos de Bovens, que bifurca investigações conceituais da accountability na esteira da virtude e como mecanismo. Ver: Ibid.

[14]Esse é o alerta de Rached que dissecou o princípio da accountability no campo das mudanças climáticas: “A accountability orienta-se para o fenômeno do poder. Diz respeito à divisão entre detentores de poder e sujeitos ao poder. Estabelece um tipo peculiar e contingente de relação entre ambos os lados (por meio da conversão deste último num ‘account-holder’) […] A conceituação da accountability a ser proposta aqui, como é o caso de qualquer outra das suas várias conceituações, deriva de uma estipulação proposital. O seu teste decisivo, portanto, deve ser a sua capacidade de iluminar um aspecto preciso das relações de poder” – Tradução livre (RACHED, Danielle Hanna. The International Law of Climate Change and Accountability, p. 26).

[15]RACHED, Danielle Hanna. The International Law of Climate Change and Accountability.

[16]“A transparência, que é frequentemente utilizada como sinônimo de accountability, não é suficiente para constituir a accountability tal como aqui definida. Um governo aberto e a liberdade de informação são pré-requisitos muito importantes para a accountability no contexto da governança europeia, porque podem fornecer aos fóruns de prestação de contas as informações necessárias. Contudo, a transparência enquanto tal não é suficiente para ser qualificada como uma forma genuína de accountability, porque a transparência não envolve necessariamente o escrutínio por um fórum específico” – Tradução livre (BOVENS, Mark. Analysing and Assessing Accountability: A Conceptual Framework. European Law Journal, v. 13, n. 4, p. 453, 2007).

[17]Bovens destaca que da obrigação de prestação de contas deve derivar necessariamente um julgamento com consequências. O autor utiliza o termo consequências justamente para destacar que, muitas vezes, pode-se premiar e não necessariamente punir (vide: subcapítulo 6.4) Ibid., p. 452.

[18]Os termos são respectivamente de Bovens, em seu texto, abordado como narrow, e de Rached, como minimalist. Ver: BOVENS, Mark. Analysing and Assessing Accountability: A Conceptual Framework; RACHED, Danielle Hanna. The International Law of Climate Change and Accountability.

[19]“Os mecanismos de responsabilização induzem abertura e reflexividade nos sistemas políticos e administrativos que, de outra forma, seriam voltados principalmente para dentro” – Tradução livre (BOVENS, Mark. Two Concepts of Accountability: Accountability as a Virtue and as a Mechanism, p. 956).

[20]Esse é um conceito derivado de abordagens que julgamentos complementares uma a outra, de Bovens e Rached. Enquanto a primeira desvenda o aspecto relacional de accountability, a segunda aponta porque normativamente exsurge tal vínculo obrigacional que é de uma relação assimétrica de poder. Ver: “Neste artigo o conceito de accountability é utilizado num sentido bastante restrito: uma relação entre um ator e um fórum, em que o ator tem a obrigação de explicar e justificar a sua conduta, o fórum pode colocar questões e emitir juízos, e o ator pode enfrentar consequências” – Tradução livre, BOVENS, Mark. Analysing and Assessing Accountability: A Conceptual Framework, p. 447; “De acordo com um conceito tão minimalista, a accountability orienta-se a um fenômeno do poder. Diz respeito à divisão entre detentores de poder e sujeitos por ele impactado. Estabelece um tipo de relação peculiar e contingente entre ambos os lados (por meio da conversão deste último em ‘account-holder’)” – Tradução livre (RACHED, Danielle Hanna. The International Law of Climate Change and Accountability, p. 320).

[21]Fizemos uma análise mais detida e focada no dever de informação dos aportes da obrigação como um processo no campo da proteção de dados no capítulo “Boa-fé e tutela da confiança como vetores da privacidade contextual” (BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. 2. ed. São Paulo: GEN-Forense, 2019).

[22]Acabamos por usar a expressão de: SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2006. p. 20. Contudo, outros privatistas encampam uma abordagem semelhante para denotar esse vínculo de solidariedade nas relações jurídicas: a) obrigação como organismo (Heinrich Siber e Savingy): MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Tratado de direito civil: parte geral, pessoas. Coimbra: Almedina, 2011. p. 291; b) obrigação como uma relação quadro: Ibid., p. 290; c) complexidade intraobrigacional: VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. Coimbra: Almedina, 2012. p. 68; d) regra moral nas obrigações: RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis. Campinas: Bookseller, 2009. p. 23.

Definições do princípio da accountability
Fontes

Normativas

OCDEGDPRLGPD
Definição“Um controlador de dados deve ser responsável (accountable) pelo cumprimento das medidas que dão efeito aos princípios acima enunciados”- Tradução livre Artigo 14“o controlador deverá ser responsável e poder demonstrar o cumprimento do disposto no parágrafo 1 (‘accountability’)”- Tradução livre Artigo 5 (f)Responsabilização e prestação de contas: demonstração, pelo agente, da adoção de medidas eficazes e capazes de comprovar a observância e o cumprimento das normas de proteção de dados pessoais e da eficácia dessas medidas.

(Art. 6º, X)

ClassificaçãoConceito menos prescritivo e cuja definição dá ênfase à accountability como

virtude

Conceito menos prescritivo e cuja definição dá ênfase à accountability como virtudeConceito mais prescritivo e abre espaço para dar ênfase à accountability na qualidade de mecanismo
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