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Acabou o Foro Privilegiado? Longe Disso. A Corrupção Ainda Campeia.
Elpídio Donizetti
24/05/2018
Sou obediente aos leitores. Eles pediram e cá estou eu, tentando jogar um pouco de luz no nebuloso tema do “foro privilegiado”, que continua firme e forte aqui no Reino da Impunidade, mesmo depois da decisão do Supremo Tribunal Federal.
O Brasil não é afeito a estatísticas. No máximo, conta-se o número de pobres, porque isso interessa na hora da eleição. Já ouvi dizer que quase 60 mil autoridades têm foro especial por prerrogativa de função (no STF, STJ e em tribunais de segundo grau). Ser julgado por um tribunal, principalmente tratando-se do STF, não deveria ser privilégio para ninguém. Basta lembrar-se de que não é à toa que o tribunal recebe o nome de Supremo. As suas decisões não são revisadas por outro juízo, até porque, acima do Supremo, só Deus, que não se dispõe a se envolver nesse lamaçal.
Justificado é o apelido que a sabedoria popular dá a essa tal prerrogativa: “foro privilegiado”. Mas o STF privilegia os políticos que constituem o grosso da sua clientela em matéria penal (deputados, senadores e Presidente da República, entre outros)? Os ministros são parciais? Não, absolutamente. Os ministros, sem qualquer exceção, são pessoas de notório saber jurídico e reputação ilibada. O que ocorre é que o constituinte, premeditadamente ou não, alargou de tal forma a competência do STF que deveria ser apenas corte constitucional, que os seus ministros, atolados em processos, sequer conseguem respirar. Dizem as “confiáveis” estatísticas que no STF tramitam 106.623[1] processos. Basta ver quantos processos são julgados anualmente para se ter uma noção do ano em que o dono da mala ou o solicitante do “empréstimo” ao Sr. Batista serão julgados. Possivelmente o autor deste texto nem mais estará entre nós. Jogaram tanta terra no pé da planta que acabaram por matá-la. A voz do povo é a voz de Deus: o foro é privilegiado e o Supremo transformou-se no tribunal da impunidade. Essa é a razão por que os políticos fazem tudo para não perderem o foro. Segundo o bordão de Cristiana Lôbo, “quem não tem foro, é Moro”. E não sei por qual razão falar desse juiz de primeiro grau com políticos acusados de corrupção é a mesma coisa de mostrar a cruz para o capeta.
E quando teve início essa farra? Perguntou-me um amigo do Facebook. Não sei, respondi. Mas o que posso afirmar é que, quando da outorga da primeira Constituição do Brasil (Império, de 1824), o privilégio já estava presente. Não é por outro motivo que a Carta de 1824, no art. 179, com todas as letras, proibia o foro privilegiado. Ora, se proibiu, era porque havia. Como o jogo de palavras sempre permeou as Constituições, ao Supremo de então, em matéria penal, foi atribuída competência para “conhecer dos delictos, e erros do Officio, que commetterem os seus Ministros, os das Relações, os Empregados no Corpo Diplomatico, e os Presidentes das Provincias” (inciso II do art. 164). Era uma competência diminuta, mas que havia, havia. A Constituição cidadã “liberou geral” não só criando inúmeras hipóteses de foro privilegiado, como permitindo que os Estados, em nome da simetria, também privilegiassem os seus políticos e outras autoridades.
O art. 102 da CF/1988 traz um extenso rol de autoridades que serão julgadas pelo STF. Mas o foro privilegiado se estende para o STJ e os tribunais de segundo grau. Se o processo não inicia perante o juiz de direito ou juiz federal, como ocorre com todo e qualquer mortal, a população, que não é míope, enxerga como privilégio. Nessa linha, a lista dos “privilegiados” inclui o Presidente e Vice-Presidente da República, ministros, juízes, membros do Ministério Público, deputados estaduais, governadores, prefeitos, comandantes das Forças Armadas e mais uma infindável lista de autoridades.
Mas esse descalabro ocorre também em outras plagas? Não. Apenas os espanhóis se assemelham a nós em benevolência com os políticos. Portugal, por certo, indicou o caminho do privilégio, mas dele se afastou. Lá apenas os chefes de Estado, de governo e do Legislativo têm foro privilegiado, assim como juízes do Supremo e membros do MP que nele atuam. Acredite se quiser, mas na terra de Maradona o foro especial é apenas para o chefe de gabinete ministerial, que é julgado pelo Congresso. Nos Estados Unidos, na Alemanha e na Inglaterra, o privilégio de foro é impensável. Todos vão para as mãos dos temidos juízes de primeiro grau.
Mas, e agora, o nosso Supremo acabou com essa farra? Longe disso. No julgamento realizado no dia 3 de maio (questão de ordem na AP 937), o STF apenas restringiu as hipóteses em que incidirá o privilégio de foro para os deputados federais e senadores. A restrição levou em conta a natureza do delito e o momento do seu cometimento. Essas altas autoridades da República somente serão processadas no Pretório Excelso – perdão, sou advogado em Minas, daí o gosto pela linguagem barroca –, se praticado durante o exercício do mandato e que com este guardarem relação. Para exemplificar, lembremo-nos da tentativa de homicídio praticada em 1993 pelo então governador da Paraíba, Ronaldo da Cunha Lima, contra o seu antecessor, Tarcísio Burity. O processo subia ao Supremo (AP 333) e descia à primeira instância, dependendo do cargo ocupado pelo acusado. Quatorze anos depois do crime (em 2007), o Ministro Joaquim Barbosa pôs o processo em pauta para julgar o então Deputado Federal Cunha Lima, que renunciou ao mandato e então o processo voltou à origem. O Relator (Ministro Barbosa) esbravejou: “isso é um escárnio!”. Mas era a lei e a jurisprudência a ampararem a manobra. O acusado pode ter recebido o juízo final do divino Supremo, mas aqui pela terra passou impune.
Pois é, de acordo com o precedente firmado, nesse caso, o Supremo ficaria longe do caso – poderia até ter outro foro privilegiado, uma vez que governador de Estado é julgado pelo STJ. Primeiro, porque quando Cunha Lima cometeu o crime não era Deputado Federal ou Senador, e também porque o crime nada tinha a ver com o exercício do mandato. Condenado ou absolvido, se o foro privilegiado não existisse, o autor do célebre “habeas pinho” seria julgado pelo tribunal do júri de João Pessoa.
Mas então o Supremo só arranhou a questão do privilégio? Isso mesmo. A alteração foi somente para deputados e senadores. Se um deputado praticar um latrocínio, será julgado na justiça de primeiro grau – pelo juiz de direito ou juiz federal, dependendo do bem vulnerado. Se o deputado utilizar o gabinete para traficar droga, não será julgado no Supremo, porque o crime não é relacionado ao mandato. Se durante uma votação no Parlamento disser que a colega deputada merece ser estuprada, creio que o caso vai parar (com trocadilho) no Supremo. E, se um senador receber ou exigir uma quantia para aprovar uma lei, Supremo nele!
Mas essa decisão vai acabar com a festa das autoridades ou pelo menos esvaziar o STF? A festa continuará, mas creio que já tem hora para terminar. Segundo as “melhores” estatísticas, há aproximadamente 60 mil autoridades privilegiadas no que diz respeito ao foro para julgamento. A decisão do STF, pelo menos em princípio, nem fará cócegas nesse exército. Quem tem foro no STJ e nos tribunais de segundo grau lá continuará. Contudo, acredito que tais tribunais darão uma interpretação extensiva à decisão do STF e, com base nessa interpretação, aplicando-se simetria, igualmente vão limitar a aplicação do privilégio de foro. É de se lembrar de que a simetria tem mão dupla. A Constituição Federal serviu de fundamento para criar os privilégios nos Estados; o precedente do STF há de servir de fundamento para derrubá-los, permanecendo apenas uma ou duas hipóteses, como ocorrem nos países republicanos. O próprio Supremo – é o que se espera – de futuro limitará o foro também para outras autoridades. O furúnculo vai ser estourado.
A decisão suprema deu a primeira chibatada no lombo de deputados e senadores. E assim deveria ser, em razão da especificidade do caso julgado: uma ação penal iniciada na Justiça Eleitoral do Rio de Janeiro em face do ex-Prefeito de Cabo Frio e deslocada para o STF depois da diplomação deste como Deputado Federal. Tratasse de Súmula Vinculante, o caso poderia ter outro desfecho. Mas, a julgar pelos votos vencidos (Ministro Gilmar e Dias Toffoli), o restante da tropa pode esperar. Todavia, o próprio nome do tribunal indica a força do seu precedente. Pode não fazer coisa julgada em outros casos, que serão examinados na concretude de cada um. Mas o precedente, que por todos deve ser obedecido, está fixado.
Para não dizer que não falei das flores… O Supremo modulou o julgamento. Ainda que o processo, à vista dessa nova orientação, devesse ser remetido para outro “juízo inferior”, no Supremo deve permanecer e ser julgado, caso já tenha encerrado a fase de instrução (de provas). Trata-se do princípio da “não perda de tempo”. Lembra-se do caso do “poeta” Cunha Lima? O processo passou a maior parte do tempo (19 anos) no trecho de 2.235 quilômetros que liga João Pessoa a Brasília. Aqui não há tontos ou idiotas. Uma pena que o Ministro Barbosa apenas constatou o escárnio, mas não deu um chega pra lá na turma. O Ministro Barroso levou mais a sério o princípio da intolerância e deu a primeira chicotada. Outros ministros (inclusive do STJ) e também os desembargadores esfregam as mãos, não vendo a hora de pegar o chicote. Privilégio de foro, de republicano nada tem! É hora de invocar o princípio – a principiologia está aí para assegurar o ativismo judicial – e reduzir o foro por prerrogativa de função a uma ou duas hipóteses.
Ao longo dos anos – já se vão quase duzentos anos desde a Constituição do Império do Brasil –, o caldo dos privilegiados foi sendo engrossado, a pretexto de garantia da liberdade de atuação no exercício do mandato, bem como para evitar perseguições. Na verdade, para os políticos desonestos, essa suposta garantia serviu de carta branca para a corrupção. É hora de nos compararmos a países civilizados.
Todos sabem que como está não pode ficar. A corrupção degenera a sociedade. Não se desconhecem os casos de demora. O processo contra o ex-governador Eduardo Azeredo (mensalão tucano) foi instaurado em 2007. Em 2015, sobreveio a condenação. Mas até hoje – haja recursos! – não se iniciou o cumprimento da pena. É ao Supremo que cabe definir o tom da música. Em tempos de neoconstitucionalismo, a Constituição é apenas uma sinfonia ou, na letra de La Salle, apenas uma folha de papel. Ah, se eu pudesse recomendar alguma coisa àqueles senhores de ilibadíssima reputação. Infelizmente, Deus não dá asas às cobras. Convocação de juízes e desembargadores por esse país afora para fazer a instrução dos processos – é o que estão a recomendar as circunstâncias e o princípio republicano. A caneta ministerial tem essa força! Que se fixe prazo máximo de um ano para o julgamento de todos os processos até então instaurados. Acho que o julgamento seria mais técnico e ágil se fosse longe das câmeras. Sem mídia, sem dó nem piedade – a não ser do sofrido povo brasileiro –, sairão como salvadores da República.
A imprensa anunciou que o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, não mais tolera essa impunidade. A PEC que restringe o foro privilegiado está em trâmite. Me engana que eu gosto! Não passa de uma cortina de fumaça para tudo permanecer como está. Há pouco dias presenciei a cavalaria correndo pela rua atrás de um sujeito que furtou uma lata de leite em pó no supermercado. Caia ou não o foro privilegiado — que, até agora, só foi restringido –, deputados e senadores somente podem ser presos antes da condenação se forem pegos com a cabeça no vaso e mão no buraco do tatu; em outras palavras, a prisão só é admissível em crime inafiançável (é o caso de racismo, tráfico de drogas e terrorismo, entre outros). Mesmo assim, se um desses parlamentares for preso nessa remota hipótese, basta que a maioria da respectiva Casa vote pela derrubada da prisão. Como não são tontos – principalmente os que utilizam a inteligência para o mal –, sequer põem a boca na botija.
Têm a caneta os Senhores Ministros.
[1] Disponível em https://stf.jusbrasil.com.br/noticias/1424232/levantamento-mostra-que-mais-de-106-mil-processos-tramitam-no-supremo
Veja também:
- Eleições 2018. Exigindo e Prestando contas – arts. 550 a 553 do novo CPC
- Os Prazos Processuais no Novo CPC
- Forma dos Atos Processuais
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